quinta-feira, dezembro 30, 2010

Escritores, poetas

alimentam-se de palavras vivas, dessas que o vento não leva, o fogo não queima, o tempo não esquece, porque nelas habitam todos os ventos, todos os fogos e todos os tempos que existem, existiram e se hão inventar.
Palavras destas matam todas as fomes.
Palavras destas não há palavras que as descrevam.
O que delas nos fica é uma palidíssima imagem que, na vertigem do voo e da queda, conseguimos mesmo assim reter.

Changara, Moatize, Caroeira, Meponda, Metangula, Nacala, Furancungo...

Para nós, para mim, começaram por ser nomes, escondidos nas páginas de ontem, que se fizeram presentes.  Nomes muito antigos com o travo da descoberta, o perfume de muitos reencontros. Nomes de lugares. Palavras musicais em todas suas bem amadas sílabas. Changara, Moatize, Caroeira,  Meponda, Metangula, Nacala, Furancungo, Lourenço Marques, Beira, Nampula, Namaacha, Luanda, Moçâmedes, Cabinda. E tantos, tantos mais.
Juntamente com estes nomes, rostos de quem amamos, em todas as declinações do afecto. E sabores, cheiros, histórias. Paisagens inesquecíveis. Terra escura, terra-mãe, terra nossa, porque é nosso tudo o que amamos sem condições.
Vida. Uma explosão de vida.
Pode-se usar, por uma vez, o tão estafado, o tão abusado vocábulo «Saudade»?
O bom dos bons velhos tempos, é que são sempre novos.
O bom dos bons velhos tempos é que nos estão sempre a acontecer.
Que o coração se dilate para abrigar tanta memória feita presente. E uma amorosa gratidão que nem sei quanta.

domingo, dezembro 19, 2010

Feliz natal toda a gente!

No tempo circular do calendário cristão há uma altura em que se espera por um menino. Um bebé.  Chega nas noites mais escuras e longas do longo Inverno. Rompe o manto das neves, atravessa chuvas, ventos, tempestades, e, a certa altura, até descia pelas chaminés das casas para colocar presentes nos sapatos das crianças. Era, é, um mensageiro do paraíso. O santo e a senha para iludirmos abismos infernais e caminhar com segurança durante a viagem da vida. Para nós, para mim, o lado maravilhoso de toda a duríssima e assustadora e inatingível perfeição que o catolicismo  propunha.
Sem ameaças nem censuras, frágil e sublime, aquele bebé adorado e adorável chega de braços abertos para o mundo inteiro, com o seu destinado de carregar o género humano em peso para o céu do Pai do céu.
Lembro-me muito bem dele. Amá-lo-ei até ao fim da memória.
Também me lembro que não lhe podiamos exigir mais, mas pediamos-lhe muita coisa.
Na nossa lista dos presentes de Natal.
Feliz Natal, gente da minha terra que é a Terra toda.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Guerreiro, de que tens tanto medo?

Era alto, mais alto do que a maior parte dos homens, e estava, sempre, coberto de uma armadura que o protegia dos pés à cabeça. Aliás, tinha várias, consoante andava a pé ou a cavalo. Todas primorosamente executadas e belas, conjugando metais raros e couros de animais desconhecidos. Do rosto, apenas as pupilas se deixavam entrever. Desta forma, dele se podia dizer quase tudo. Que era loiro, moreno, novo ou adiantado em anos. Que nunca sorria, ou que o fazia com frequência. Que desconhecia o amor ou que, tendo-o conhecido, o perdera para sempre.

Ele era uma fonte viva de lendas múltiplas.

As mulheres suspiravam à sua passagem.

Os homens temiam-no e, secretamente, detestavam-no.

Mas ele parecia indiferente ao efeito que produzia à sua passagem e os seus soldados, armados, também eles, até aos dentes, tinham de ser ríspidos com as crianças que, a todo o custo, se queriam abeirar dele. Uma vez, uma menina tocou-lhe. Durante dias foi passeada pela aldeia em triunfo, obrigada a repetir até às lágrimas, até à náusea, até à exaustão, tudo o que se passara no brevíssimo espaço de tempo em que, furando por entre as pernas musculadas de uma dúzia de homens de armas, chegara até ao metal que protegia os pés do guerreiro. Então curvara-se e beijara o pó que embaciava a fivela da armadura, no ponto do tornozelo. A sua boca pequenina deixara ali uma marca em forma de coração.

Ela jurava que tinha sentido o guerreiro estremecer.

Depois, mãos brutais agarraram-na e ela foi jogada ao chão, para longe, caindo na estrada sem se magoar. Estava em êxtase e a queda pareceu-lhe um voo.

Apenas uma criança se mantinha à parte quando o guerreiro passava com a sua comitiva eriçada de lanças e espadas, protegida por grevas, escudos e elmos,  rumo ao castelo de fortes ameias no alto do monte fronteiro à aldeia.

Um dia, o guerreiro parou e fez um sinal a um dos seus guardas, que se aproximou do miúdo, e, pegando-lhe ao colo o levou até junto de si. Então, todas as crianças sustiveram a respiração, todas as mulheres levaram as mãos ao rosto, sustendo gritos e todos os homens se curvaram sentindo um gelo nas entranhas e um nó na garganta.

- Podes fazer uma pergunta ao Guerreiro. Uma só - disse o soldado, numa voz que parecia chegar do outro lado do mundo.

A criança estava calma. Era um menino de seis anos, o tonto da aldeia. A sua mãe, jovem e viúva, era profundamente só. As mulheres temiam a sua beleza, os homens temiam a intensidade do desejo que sentiam por ela. Além disso, tinha um filho que dizia coisas estranhas a propósito de nada, e olhava as pessoas como se as visse à transparência.

O soldado pôs o menino no chão. No silêncio total que se seguiu e que durou uma eternidade, todos retiveram a respiração até se ouvir a sua voz cristalina perguntar:

- Guerreiro, de que tens tu tanto medo?

 
 
 
«Shinto» cortesia de  Wikia

quarta-feira, dezembro 15, 2010

O perfeito silêncio

é a dádiva que recebe aquele que encontrou a perfeita palavra.
É em sua busca que peregrina o poeta que é um místico, um santo, um louco de Deus.
Se conhecerem algum, tratem-no com toda a veneração. A sua vida calcinada e dura, o seu corpo trespassado de feridas visíveis ou encobertas, os seus olhos a arder de febre e de luz, são a sua certidão de identidade.
São tão raros, que é benção encontrar algum. Pode até apresentar-se como mendigo, mas ao bebermos do seu ar reconheceremos, de imediato, estar diante de um rei ou rainha de inatingíveis e sublimes reinos.
Andam entre nós de empréstimo.
A exaltação é a sua medida.
Muito poucos se deixam ver. Muito poucos conseguem vê-los.

sábado, dezembro 11, 2010

a função da memória

é esquecer. Tento lembrar-me disso todas as vezes, ao longo dos nossos diálogos repetidos como um velho disco cuja agulha salta repetindo a mesma fraseologia musical até lhe roubar todo o sentido.
Eu falo ela pergunta, eu falo, ela pergunta. E diz: não sei se já reparaste mas estou tão esquecida. Tão esquecida. Diz que se aborrece infinitamente. E regista o absurdo, na sua dela opiniáo, de estar a viver há tantos anos. Noventa e quase três. Mas o seu cérebro funciona de uma forma táo errática, que até isso esquece. A névoa do tempo embrulha todos os seus pensamentos. É o calor do sangue que lhe mantém vivos os afectos. E esses estão para lá do fim da memória.
Pede-me que lhe escreva as coisas, com os nomes, os factos, as datas. E que lhes some imagens. Para desfolhar nos dias iguais, tantas vezes que se lhes colem com a força do hábito de as repetir. O riso, que ainda solta expontâneo, contagia. E ajuda a esconder as lágrimas. As minhas.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

«Armas de destruição» natural. Onde pára o exército?

No caos que se seguiu aos tornados que assolaram algumas regiões de Portugal, toda a ajuda seria bem-vinda. Por exemplo, por parte daquela multidão de homens na flor da idade, completamente inúteis no que toca ao bem comum, porque a filosofia que preside à sua existência enquanto corpo social, é apenas a intervenção em «teatro de guerra». Entretanto jogam com seus artefactos milionários em circuito fechado. 

Que fragilidade a dos sucessivos ministros de defesa de Portugal, sempre tão impossibilitados de afrontar a «dignidade» dos quartéis ordenando às chefias do exército português, tão estreladas e tão conscientes da sua importância no teatro autista em que se movem, que ponham os mancebos a reconstruir, a remover destroços das estradas, a ajudar as populações. É também lhes podiam servir para isso as magnificas valências que adquirem na Academia Militar, uma das melhores no ranking mundial. E a maquinaria pesada, toda, necessária para a sua execução. E a logística exemplar para optimizar uma acção destas em tempo recorde.
Podia, inclusivamente, servir-lhes de treino.
Assim, quando tiverem de executar o trabalho para o qual foram treinados – matar e destruir –, sempre terão no seu curriculum outras acções igualmente compensatórias e louváveis.
Entretanto já ascende a doze milhões o prejuízo. As lágrimas não tem conto. Nem entram em linha de conta. É o desespero de muitos portugueses que tudo perderam numa brutal rabanada de vento. Em minutos.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/ultima-hora/tornado-prejuizos-de-12-milhoes

terça-feira, dezembro 07, 2010

o Terceiro Lugar


Memórias de infância e pagelas religiosas que reencontrei num armazém no Porto, na Rua da Flores, levaram-me de volta a um livro que li há anos sobre o «nascimento» do Purgatório.
Subsidiário do Tempo Linear, lugar de esperança, reino intermédio, onde todo o sofrimento é redentor, o Purgatório constitui-se destino temporário de almas em trânsito, às quais é possível alcançar a Salvação – o Paraíso – através de uma purificação necessariamente dolorosa pelas «poenae purgatoriae». A conceptualização acabada desse «terceiro lugar» dá-se no meio erudito da Baixa Idade Média – Le Goff situa-a na Escola de Notre-Dame de Paris, entre 1170-1180 – no culminar de um longo processo exegético, cuja etapa última consistiu num sem-fim de debates, querelas e reflexões filosóficas, alicerçadas em conteúdos do Antigo e do Novo Testamento, sem desprezar o recurso às visões e êxtases de santos.
Finalmente enquadrado pelo dogma e cartografado pelos místicos, esse espaço-tempo ígneo, de características e funções muito específicas, ganharia plena autonomia entre os dois extremos que, no imaginário ocidental, balizavam o destino dos mortos: Céu e Inferno. Tratou-se de uma autêntica revolução nas mentalidades, esta transposição do sistema trinitário de fundo indo-europeu para o dualismo religioso judaico-cristão, ou mesmo greco-romano, tão presente nas geografias mais fatalistas do além. Finalmente, com Dante, o Purgatório encontrará a sua magnífica conceptualização final.
O livro, que reli prazeirosamente, ajuda a prespectivar em profundidade esta questão.
Recomendo-o vivamente.
Jacques Le Goff, O Nascimento Do Purgatório, 2ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, col. Nova História, 2ª ed.1995

domingo, dezembro 05, 2010

Envelhecer


Aquele jovem no meio de dois senhores idosos, era o pai. Dias de Verão no Douro, na pequena quinta dos meus avós.


O avô, a bondade em pessoa. Os jovens são o  pai e o tio Rogério. 


Um dia, o tio Rogério disse, a propósito de um livro* que deixei com ele para podermos comentá-lo juntos:
- Não tenho dúvidas acerca da seriedade desta obra. É científica e parece-me, para além de muito credível, muito bem construída. Mas, no meu edifício mental, já não tenho espaço para ela. Não me interessa nada, portanto, aprofundar os meus conhecimentos nessa direcção. Compreendes, construí-me tijolo a tijolo. Sem frinchas. Sem desvios. Com muito trabalho.
- Mas não tem interesse por coisas diferentes? - perguntei.
- Na minha idade, seguir por caminhos tão novos, obrigar-me-ia a abrir frinchas meu edifício. Isso é perigoso. São traves mestras, aquilo de que estamos a falar, entendes?
Percebi que o que me estava a dizer era: «estou velho». Teria, na altura, oitentas e muitos, mas eu nunca pensara nele nesses termos. A lucidez, a clareza com que mo disse, e que não consigo reproduzir por inteiro, não desmentiam essa noção de que o tempo cravara nele as suas garras. E doeu-me muito para além do que ele poderia imaginar. O tio Rogério morreria poucos anos depois.

Lembro-me regularmente desta conversa. Quando o meu entusiasmo esmorece. Quando tenho preguiça para ouvir os outros, quando esses «outros» têm tesouros para partilhar com o mundo. Felizmente, os meus filhos, os meus amores, os meus amigos, o mundo que me rodeia, ajudam-me a estar atenta, a permanecer acordada. Com escolhas, selectivas que implicam, muito naturalmente, exclusões.
Saberei, porém, que envelheci irremediavelmente, no dia em que deixar de me interessar, genuinamente, por aquilo que pensam, fazem, ou amam, os que me são próximos.
E agora, a olhar para fotografias velhas, descubro o jovem que o meu pai foi. Conheci-o sempre tão adulto, tão encerrado num mundo onde, de uma forma misteriosa, não fazíamos parte. Uma muralha sonora separou-o de nós, ao longo de toda a infância. Fechado no escritório, a ouvir música clássica, durante os Domingos inteiros que o tínhamos perto de nós, o pai era um adulto muito velho. Agora, imagens e histórias, devolvem-me parte do puzzle humano que ele foi. Aquele puto bonito, com roupa tão gira, podia ser um dos nossos amigos.

*O livro em questão era o Dicionário dos Símbolos, da Robert Lafont, uma obra de referência que me acompanha há quase 30 anos.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Responsabilidade, disse ele





Recordo os seus olhos escuros, e a pergunta fatal: «quando vê um jovem com um dos seus livros na mão, sente a responsabilidade?» Não falou em «satisfação» ou «orgulho», que é o que normalmente se pergunta a um escritor nessas circunstâncias. Este aluno, de uns dez, onze anos, um dos muitos que me crivaram de perguntas deliciosas, foi muito mais longe. Foi direito ao cerne da questão. Respondi com a verdade: sim! A responsabilidade de colocar um livro no mercado é sempre muito grande. Mas é ainda maior quando o público alvo é tão jovem.
Não sei se lhe cheguei a agradecer a questão, que é fulcral. Em todo o caso, agradeci e agradeço a todos os que ali estiveram. Amigos que vieram de vários lados. E às turmas que professores interessados e sensíveis prepararam para este encontro maravilhoso. E agradeci também ao estabelecimento de ensino quase mítico onde André, um outro André, deixou escritas na memória dos tempos, algumas páginas de história da vida privada dos alunos dos anos 80.

quinta-feira, novembro 18, 2010

André e Timóteo no grande auditório do Passos Manuel

 Foi um belo teste e o Timóteo passou com excelente. Só se levantou quase no fim da sessão de perguntas, quando se sentiu na berlinda. Ou seja, quando depois de muito perguntarem sobre as novas aventuras do André, desta vez no Labirinto, os alunos quiseram saber coisas dele. Tranquilo, subiu as escadas do auditório, e deixou-se afagar por duzias de miúdos e miúdas, posto o que voltou para a primeira fila. Aí deitou-se e assistiu ao espectáculo de magia.
Seria muito útil, para a educação cívica dos nossos futuros adultos, que pequenas palestras sobre animais, com a presença destes, decorressem nas escolas. Alertando-os, quando ainda têm o coração alerta, sobre a responsabilidade que temos sobre tudo o que nos rodeia. Animais de companhia muito particularmente. A história do Timóteo tocou-os. A sua docilidade pachorrenta, encantou-os. Calhou mesmo bem. «O Mundo de André», com as suas aventuras de terror e maravilha, passa muitíssimo por estas vertentes e por estes desafios.

quarta-feira, novembro 17, 2010

Com deus e os anjos

O deus pai da minha infância era tenebroso. Usava barbas e o seu olhar seguia-nos para todo o lado. Um erro, um pecadozinho de nada, levava a nossa alma para as vizinhanças do inferno. Chamava-se purgatório e doía muito permanecer ali. Tinha fogo, onde nos queimávamos horrorosamente. Um pecado um pouco maior, chamava-se pecado mortal, condenava-nos a indizíveis tormentos pelo tempo de uma eternidade que é um tempo que nunca, nunca, mas mesmo nunca, termina.
Eu ouvia estas ameaças sairem da boca de pessoas que me habituara a considerar bondosas e doces. Por exemplo, na missa, na altura do sermão, os padres, muitos deles, transfiguravam-se em ogres. Da sua boca jorravam insultos e pragas que tombavam sobre toda uma assistência extraordinariamente tranquila. Eu olhava à minha volta, aterrada, à espera de ver os pecadores, acusados a eito, cairem fulminados por aquelas palavras. Mas não acontecia nada. Uma ou outra pessoa mais idosa suspirava, outras abanavam a cabeça, algumas sorriam acenavam discretamente aos amigos.
Ficavávamos só eu e o meu espanto e a minha grande tristeza e o meu pavor daquele deus tenebroso que eu não conseguia amar mesmo que quisesse.
Mas disso não podia falar com ninguém. Nem com o anjo da guarda, a quem pedia numa lengalenga que aprendíamos de cor, que viesse em minha companhia e guardasse minha alma de noite e de dia.
O anjo da guarda era mágico. Tinha asas, como as fadas. Era lindo. Parecia mesmo uma menina mas era rapaz. Era só nosso. Cada um tinha o seu, e nenhum anjo confundia a sua criança com outra criança qualquer. Além disso nunca nos abandonava, mesmo que fossemos horríveis e cometessemos pecados muito maus, como cuspir a comida que não nos agradava, deitar a lingua de fora a pessoas de quem não gostávamos, e dizer pequenas mentiras.
O anjo-da-guarda era tudo o que precisávamos para nos defender da vastidão do além e das suas ameças que incluíam deus e o diabo e as almas do outro mundo.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Nhungwes e memórias de um professor de matemática

Cá fora chovia a potes e o vento virava as árvores de pernas para o ar. Lá dentro, ao fim de uns minutos, sentia-se o poderoso bafo equatorial. Voltámos todos a Tete, Lisboa, encontro de 2010. Erámos uns 180, numa grande sala alcatifada, espalhados por mesas, com dísticos ao peito como congressitas. Havia um homem orquestra que produzia música de baile de garagem, ao sabor dos 60s, com eventuais marchinhas e tudo. Um bufê esplêndido. E nós.
Olhávamos para o peito uns dos outros e soletrávamos os nomes. Conheço-te, não te conheci, lembras-te de mim?
De mim, tirando o grupo pequeno dos antigos alunos do 5º ano do colégio liceu de Tete, ninguém se lembrava. Eu vivi apenas três anos na cidade do Zambeze. Mas do pai toda a gente se lembrava. Desconhecidos e desconhecidas falaram-me dele com lágrimas na voz.
Depois a Cilinha contou-me que uma vez numa aula de matemática adormeceu:
- E ele não deixou que ninguém me acordasse. Se ela está a dormir é porque precisa de descansar, disse ele! Imagina. Acordei, o teu pai na secretária a corrigir testes. Já dormiste tudo? Então agora vai, ainda apanhas um bom bocado de intervalo.
O Jorge e eu trocámos um olhar estarrecido. Nós não conhecíamos essa versão do professor Gonzaga. Ela continuou com a história do ratinho da Índia:
- Eu trazia-o no bolso da bata e pu-lo sobre a secretária. Toda a gente a olhar para trás. O teu pai avançou na minha direcção, parou, olhou para o rato, pegou nele e disse: fica comigo até ao fim da aula. Nao quero ninguém a olhar para trás. E levou-o para cima da secretária dele, e o rato ficou a correr de um lado para o outro até o sino tocar, enquanto a aula prosseguia com toda a gente virada para a frente.

Eu não estava naquela aula. Deve ter sido no 4º ano, quando ainda estava no Colégio Barroso, LM, interna. A Cilinha tinha os olhos húmidos: «marcou-me tanto aquele senhor», suspirou. De repente, via-a tal e qual como era naqueles tempos. O mesmo olhar sério e intenso, a mesma quase timidez de quem pede desculpa ao mundo por andar por aqui. Vivia numa espécie de floresta equatorial, no Bairro do Fomento. Uma instalaçaão provisória, que as mãos amorosas e os dedos verdes das mulheres transformaram num jardim edénico, surreal, onde as plantas cresciam loucamente e as pessoas morriam de calor. As casas tinham começado por ser contentores serrados ao meio. Cheias de ares condicionados e ventoinhas. E de plantas e flores e árvores e pássaros e cães e papagaios e macacos. A construção civil não dava vazão ao crescimento avassalador da cidade, que a partir dos anos 60 explodiu de vida. O transitório tornou-se de algum modo perene. A imaginação e o amor fizeram o milagre.
Diante de mim, a Cilinha tem 14 anos. O coração não envelhece. O corpo, o rosto, é que se desfocam como as imagens que caçamos com muita pressa porque estamos emocionados.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Palácio Pidwell, 19 de Julho de 1976


A festa dos 5 anos do André, no palácio Pidwell, Sines. Marta, t-shirt encarnada e chapéu junto do Al Berto, a seguir o João do Ó. Ao fundo, o Pedro. O André, boné de pala e pistola de plástico. Eu,  junto da menina de blusa amarela.
                                                                                                                                                                
O Al Berto ajudou-me. Sobretudo psicologicamente:
 - Não sei fazer como os outros pais e as outras mães fazem, nem tenho dinheiro para isso. Pirâmides de marisco, bolos em forma de campo de futebol, um ror de comida... numa festa para um miúdo que acabou de fazer cinco anos.
Ele riu-se.
- Claro que não! Sabes o que os miúdos gostam mesmo? O que nós gostávamos na idade deles. Um lanche, como as nossas mães faziam. Sumos, pãezinhos de leite com fiambre e queijo, um belo bolo de aniversário com um buraco no meio, cobertura de chocolate e velas.
Hesitei, apesar de tudo extremamente aliviada:
- Eu sei. Mas as festas dos miúdos, aqui... parecem banquetes de casamento!
- Porque são também para os amigos dos pais e para as famílias. Mas nós só precisamos de fazer um lanche para os putos. Até porque os únicos adultos presente somos nós.
O João do Ó interrompeu-nos:
- Podes passar na praça e comprar quatro gambinhas, uma para mim, outra para o Al Berto, outra para ti e outra para o Pedro. Assim sempre podes dizer que também havia marisco.
Deitei-lhe a língua de fora.
No imenso casarão, arranjámos primorosamente o corredor que desembocava nas duas entradas, a principal e a de serviço. Ali pusemos a mesa do lanche, com o menu de acordo com as nossas memórias de festas de aniversário. O Pedro trouxe um braçado de flores, e um belíssimo triciclo para o André e a festa foi um êxito. As várias crianças que apareceram, divirtiram-se loucamente a correr de um lado para o outro.
A luz do dia quentíssimo entrava a jorros inundando o corredor do palácio Pidwell, naquele dia de 19 de Julho de 1976.
Nesse tempo, vivíamos ali.

domingo, novembro 07, 2010

O Professor de matemática

Eu não conhecia aquele professor enquanto tal. Apanhei-o apenas no 5ª ano do liceu, no colégio liceu de Tete. E como morria de vergonha só com a ideia de que ele me pudesse chamar ao quadro e eu fazer má figura, resolvi aplicar-me nas duas disciplinas que mais detestava. Matemática e Fisíco-química. Fui ter com ele pedi-lhe para me dar explicações. Ele recusou-me como aluna particular. Por uma questão de ética, explicou:
- Se tiveres boas notas, toda a gente vai dizer que te passei, previamente, os testes. Fazemos o seguinte. Empresto-te as minha sebentas, e estudas por elas.
- Então os seus outros alunos e alunas a quem dá explicações? Não podem dizer o mesmo?
- Não - respondeu ele, secamente. - É totalmente diferente.
Tive vontade de chorar. Aquela rejeição doía duplamente. Afinal, aquele professor era, também, meu pai.
Em todo o caso, e para não perder tudo, agarrei nas suas sebentas, e atirei-me a elas. Na escaldante cidadezinha dos trópicos, os meus pais estavam a protagonizar uma, na época, muito inédita separação litigiosa de pessoas e bens. Por nada e por tudo. Não queriam continuar juntos. Mas para a miúda de 14 anos que eu era, o peso dos muitos olhos e muitos ouvidos que seguiam a novela chegava a ser esmagador. Ser boa aluna naquelas disciplinas, era uma forma de me tornar invisível e não dar azo a mexericos adicional. Por acaso, o meu irmão não pensava nada da mesma maneira, e arranjou uma forma confortável de passar á tangente, cabulando com todo o desplante. A Mimi, que recorda o professor de matemática num texto que me comoveu, fazia-lhe companhia. A dupla safou-se bem e com resultados razoáveis até nos exames finais.
Eu, porém, jogava pelo seguro.
Muitas vezes, ao fim da tarde, o João Nasi aparecia lá em casa e estudávamos juntos. Evidentemente, falávamos muito mais da nossa vidinha adolescente, do que de equações ou triangulos equiláteros.  Ele estava apaixonado de caixão à cova por uma colega nossa, uma menina alta, séria, de rosto de porcelana, olhos azuis e cabelos negros. A sua primeira namorada, acho. Nas minhas memórias dessas tardes, ela é omnipresente num interminável e eu disse e ela disse e eu disse e ela disse, ou, o que achas que eu devo dizer, o que é que ela quer dizer com o que ela disse?, e coisas mais ou menos assim.
Delicioso.
Mas o resultado final, foi explêndico. O meu irmão até se lembra dos parabéns que o pai recebeu pela aluna que eu fui, no exame oral das suas disciplinas. Uma fascinante prova sobre Geometria no Espaço. Nessa altura, se não fosse tão nítida a minha vocação para outros rumos, a matemática teria sido um apelo poderoso.
discursando na cerimónia de abertura ano lectivo 1969/70
 

quinta-feira, novembro 04, 2010

Facebook | Once Upon Tete o reencontro

Um encontro de gentes de Tete. Dos Nhungwes. Os que nasceram ali, ou que, por ali terem passado uma parte importante das suas vidas, criaram o elo inesquecível às terras do Zambeze. Nas palavras exactas do meu irmão Jorge, colocadas no mural de um dos organizadores, «reencontrar a maior parte daqueles que fazem parte do meu património emocional e memória histórica» transformou aquela tarde num marco para todos nós. A minha adolescência tem o cheiro daquela terra. E o calor inconcebível de uma estação quente que durava quase o ano inteiro. África, Terra Mãe, inoculou-me ali. Para sempre.
No Café Zambeze, um espaço virtual com visitantes do mundo inteiro, a festa passou em directo. Uma equipa filmou todo o encontro a que a diáspora portuguesa esteve atenta. A parte dos Nhungwes, claro. Ou dos Tetenses.

Nota: para ver as fotografias carregue-se no título da mensagem

terça-feira, outubro 26, 2010

O preço justo, o peso exacto. Da palavra.

Ele perguntou-me estás bem? E eu respondi, estou óptima. Do outro lado, uma ligeiríssima pausa. O tempo de uma respiração. Depois a conversa prosseguiu, mas aquela reserva manteve-se. Entre nós, havia uma porta fechada com uma frincha de espreitar estranhos. E eu senti que, com aquele «óptima», ainda por cima dito com entusiasmo, me tinha tornado uma estranha.
O que eu queria dizer depois, se aquele vento frio não tivesse pautado todo o resto do diálogo, era: sim, estou óptima, neste momento exacto. Não penso no antes, porque estou a falar contigo. Já não falava contigo há tanto tempo. E não penso no depois, porque tem muitas implicações. Umas boas, outras nem por isso, outras totalmente imprevisíveis. E não, não estou sempre óptima. Ninguém está. Nunca. Ou sempre.
Carrego, como toda a gente, o meu quinhão de dor, de insegurança, de solidão, de saudades e ausências e de precalços de todo o género. Mas o peso desse tão humano fardo não me impede de receber a alegria dos momentos perfeitos. Ou de viver o prazer da festa. O privilégio do convívio. Ou a plenitude que, por vezes, vem coroar alguma tarefa que concluo.
Sim. Vivo no fio da navalha. Como todos nós, viventes, vivemos. O meu corpo, o meu coração retalhados dão testemunho da aspereza do caminho. Mas aceito sempre o momento singular em que tudo está bem. Foco-me nessa singularidade. Para o qual a palavra certa, o preço justo, é esse «estou óptima». Afinal de contas, um lugar-comum.
Mas não pude dizer-lhe nada disto.A conversa terminou antes que refizéssemos a ponte que outrora ligava a nossa amizade. Fomos, ambos, formais, calorosos e gentis.
Não nos tocámos, portanto.

domingo, outubro 24, 2010

Os nomes novos das pessoas

Os nomes de cada um é uma coisa do caraças. Desculpem, mas foi a primeira coisa que me veio à cabeça,  agora que me preparo para discorrer sobre o tema: pessoas que mudam de nome ao longo da sua vida. Por vontade própria, ou por imposição alheia. Em circunstâncias muito particulares. Ou muito banais.
Por exemplo, na infância distorçem-nos os nomes, adicionando-lhes inhos e inhas, uxas e okas e ekas, itas e totas. Na adolescência, há o petit nom, a alcunha. Livramo-nos dela, como quem despe  um adereço de cena, mal entramos na vida dos adultos.
Mas há alteraçoes mais drásticas. Eu amei e casei com um Anselmo. Tivemos dois filhos. Separámo-nos no vendaval, no tsumani do fim do império. Ambos náufragos, cada um deu à costa em tempos diferentes. Quando nos voltamos a encontrar, ele era o Samuel. E vivia no outro lado do espelho. Ou era eu que atravessara o portal da dimensão onde coincidimos numa eternidade de tempos breves. Nunca o consegui chamar assim. Depois, anos depois, tornou-se o Manuel. Também não me adaptei a tratá-lo dessa maneira, embora Manuel fizesse parte do seu nome. O curioso, é que ele atravessou as suas mudanças com uma consciência tão pungente, que a única forma de as assumir em plenitude, foi nomear-se de novo.
Há dias, falei do reencontro com o Poeta Nair, aqui num post. Ela corrgiu-me: «agora sou a Leonora». E referiu-me a morte da mãe, como detonador da sua nova personalidade. Mudança drástica que exigiu dela um renascimento. E uma forma diferente de se nomear.
Também falei no Sérgio, que cruza os nossos quotidianos com um arquétipo bíblico de pobreza e abandono, ou como o Louco do Tarô. Mas há duas semanas, este homem sempre tão silencioso falou longamente comigo, por motivos que agora não interessam. E corrigiu-me :«o meu nome é Luís». Só que, e neste caso, a mudança não foi prepretada por ele. Fomos nós que o invocámos sempre de forma errada durante dez anos. E isso, de algum modo, é perturbante.
Finalmente, acabo de receber um email meu queridíssimo Ivo, que, de Hamburgo, no términus de mais uma exposição sua, de pintura, me participa que agora se chama «Bassanti, um nome novo para uma consciência nova».
E eu estou muito interessada em saber o que aconteceu com ele. Deve ter sido something. No mínimo uma ressurreição.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Afinal eles gostam é de gordinhas

 









Na longuíssima infância breve há um interlúdio em que as meninas sonham com o dia em que hão-de ter curvas. E a natureza faz-lhes a vontade. Às vezes, até exagera, e é o resto da vida numa cruzada contra a abundância das formas.
E eles? Vejam! Na transição de um espaço, a Miss da Crumbles foi alvo do interesse de uma tribo diversificada que não a queria deixar partir. Um russo, um ucraniano, um holandês e um português agarraram-se a ela. O fotógrafo não os deixa mentir.
Na nova Tomtom Miss Fat Lady já não estará. Faltava mais nada.

sábado, outubro 16, 2010

O chá Milagroso da Rosil

Ele acordou com os olhos amarelos, o corpo amarelo, a cabeça a explodir,  o corpo em chamas. «Estás com hepatite», disse eu. «Oh, cala-te! Tenho de ir fechar o jornal, tenho tanta coisa para fazer, e tu estás grávida e tudo», respondeu ele, a arder em febre. Estava com hepatite. O médico do Correio da Manhã  confirmou o alarmante diagnóstico, acrescentando: «uns meses até ficar bom. Vou já passar a baixa.»
O Zé Ralha olhou-me em pânico, e quando o médico saíu voltou à mesma: «eu não posso estar doente! Isto não dá jeito nenhum nesta altura!»
Penso que foi o senhor da farmácia onde eu levantava os remédios que adiantou esta informação:«Conheço gente que se dá bem com essas coisas. Uns amigos trataram mesmo uma hepatite  com o chá Milagroso e o chá Rosil.  Em poucas semanas. E se não fizer bem, mal não faz.»
Eu, mais a minha formidavel barriga onde o Bernardo já esperneava, fui a correr à Rua da Madalena. Trouxe os dois chás e o Zé bebia  litros e litros daquilo. Um dia tomava o Milagroso, no outro, o Rosil. Duas semanas depois, os indices de bilirubina, que estavam em níveis alarmantes, tinham voltado quase ao normal. E ele a fechar os jornais na cama, com os paquetes dos jornais e das várias revistas, num corropio entre a rua do Poço da Cidade, onde vivíamos naquela altura, e a Ruben A. Leitão, onde se fazia o Correio da Manhã, e a rua da Palmira, nos Anjos, onde ficava a redacção do TV Top e da Música & Som.
O médico ficou radiante, acreditando que as suas prescriçoes de compotas caseiras e multivitaminas tinham tido um resultado «milagroso». Nenhum paciente dele, até então, registara semelhantes melhoras em tão curto espaço de tempo! E se ele já tinha tratado hepatites!
Falámos um com o outro e decidimos não lhe revelar o segredo dos chás. «É um gajo tão porreiro, e está tão contente, não vale a pena desiludi-lo» - disse o Zé, que nem sempre era tão 'caridoso' com as susceptibilidades alheias.
Mas o facto é que, em três semanas o Zé estava curado, e prontíssimo para voltar à vida trepidante das redacções. E esta história com todos os seus detalhes e outros que não vale a pena referir, torna-se inevitavelmente presente sempre que volto à ervanária Rossil. Adoro aquelas duas lojas da rua da Madalena, uma em frente da outra. Apetece-me trazer tudo, a começar pelo perfume das plantas, ervas, raízes, bolbos, folhas, caules. Mas trago sempre várias coisas. Por exemplo, os óregãos, em pacotes de 100 gramas, são preciosos. Nada a ver com aquela porcariazinha que vem nos pacotes minusculos que nos impingem nas grandes superfícies. E chás. Muitos chás maravilhosos.
Antigamente, havia um vaso de vidro com  sanguessugas. «Isso acabou», diz o mais antigo empregado da Ervanária Rosil. Mas o resto continua. E de muito boa saúde. Aquela casa, de onde se evola um perfume inolvidável, é já um marco histórico da nossa Lisboa. Gente de todo o país e do estrangeiro, conhece-a, visita-a, abastece-se ali do melhor da nossa flora silvestre e não poluída. Um orgulho.  

sexta-feira, outubro 08, 2010

O Sérgio cortou o cabelo

O Sérgio foi à loja para buscar a sua bisamanal semanada, que o Dirk lhe instituíu há que tempos num acordo tácito e sem palavras. Nós de férias, o Helder deu-lhe o dinheiro e comentou:
- Cortáste o cabelo, Sérgio. Estás com bom aspecto.
- Vai caralho - respondeu o Sérgio, virando-lhe as costas.
O Sérgio é vagabundo, dorme na rua, vive na rua, mas não admite confianças. Provavelmente porque tresandam a paternalismo e ele é uma criatura cheia de dignidade.
Um dia, a Marta cumprimento-o e ele respondeu, desabridamente:
- Conhece-me de algum lado?
Ela pediu desculpa, e nunca mais o fez.
O Sérgio não fala com ninguém. A única pessoa a quem o Sérgio permite um arremedo intimidade é o Dirk. Nos curtos diálogos que travam, responde-lhe com uma  voz estranhamente baixa e cava. Uma voz que parece vir de muito, muito longe.
Do mundo remoto onde ele se perdeu de nós, de si próprio?

O Sérgio dói. Dói-nos ainda mais no tempo frio e nas noites de chuva. É uma dor toda feita de impotência. Aliás, é uma pré-dor, como uma leve moínha nos queixais a avisar que um dente se prepara para nos dar problemas sérios.
Sabemos o seu nome, graças ao André que o conheceu na noite dos tempos em que ele falava e vivia no bairro, numa casa como toda a gente. E andava pelos bares, bebendo nada. Parece que quando a mãe morreu, ele ficou sem casa e sem capacidade de se reger pelas nossas regras de vida. Há cerca de dez anos.
Nos tempos em que falava era um homem altivo, grande e bem constituído, bonito e assustador. Uma espécie de vicking de cabelo louro desalinhado, que já olhava o mundo com bastante desprezo.
A rua transformou-o, ano após ano, num vagabundo enorme, gordo, silencioso, uma figura apocalítpica de cabelos emaranhados, barba cerrada, que vê televisão diante das montras do Cancela, na Calçada do Combro.
Não pede esmola. Nunca.
Às vezes encontro-o sentado nos degraus da igreja dos Italianos, no Chiado. Nessas alturas, parece-me o Hóspede Desconhecido, esse deus oculto num farrapo humano, que vigia a nossa humanidade ou a falta dela, pela forma como nos comportamos uns com os outros.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Leonora, pós Nair, um Poeta em carne viva

A Nair via a descer a rua do Século. Trazia uma pasta debaixo do braço. Tinha o rosto fechado e duro. Quando lhe disse:
- Olá Nair! Vais vender os teus poemas para o Chiado? Estás tão séria.
Ela precisou de uns micro segundos para me focalizar e reconhecer:
-  Não estou séria, estou a meditar. E já não me chamo Nair. A Nair morreu com a minha mãe. Sou Leonora.
- Desculpa, nunca me falaste nisso.
- Nunca houve tempo. Queres ler um poema meu? Não pagas nada por ler um poema. E sim, vou para o Chiado vendê-los.
- A polícia não te chateia?
- Chateia. Tenho de lhes trocar as voltas. Uma vez até dei alguns ao polícia, para ele ler. Estava perturbado porque a lei, espressamente, não contempla os poetas nessas proibições. Perguntei-lhe se tinha gostado. Ele disse «por acaso até gostei, sim senhor!». E eu «quer comprar?»
- E ele, comprou?
- Não. De maneira que eu recolhi os meus poemas, e disse senhor guarda, agora desculpe mas tenho de ir trabalhar. E virei-lhe as costas.
- Mas os músicos podem. Tocam pela rua, as pessoas deitam moedas!
- Não, não podem. Só os pedintes, que chateiam toda a gente, e nunca dão nada em troca, é que podem andar a pedir. Sobretudo os romenos, os mais agressivos de todos. A esses, a policia não incomoda.

Entrámos na Tomtom, e ela disse-me que tinha acabado de ouvir a voz da mãe. Estava maravilhada por ter ouvido a voz da mãe, e eu respondi-lhe que compreendia. Tenho ouvida tantas coisas ao longo da vida, que estou sempre preparada para o maravilhoso, seja qual for a forma como se me apresenta.
- Espera aí - disse ela, a olhar-me fixamente - tu sabes que a minha mãe morreu, certo? Bom, pois eu ouvi-a na rádio. Hoje, ao meio-dia. O jingle da Rádio Renascença, aquela voz de cristal, é dela.
Chegámos ao balcão, ela pousou a pasta, abriu-a e retirou três poemas. Deu-mos para os ler, e passou outros à Mafalda.
Os poemas da Leonora/Nair são sempre de uma intensidade arrasadora. Seja qual for a frequência em que ela se sintonize, e sintoniza em várias, a Palavra sai da sua boca imaculada e pura, feroz e total.
A Leonora/Nair é o unico Poeta vivo que eu conheço. Sei que há mais, mas não me cruzei ainda com eles, a não ser com o Herberto Helder, nos tempos da Notícia de Angola, há varias reencarnações (minhas) atrás. E com o Al Berto, em Sines. Até vivi no Palácio Pidwell que era dos avós dele. Há tanto tempo.
- Os teus poemas são magníficos, Leonora, porque não editas?
- Estás louca? Morria de fome! Assim dá para comer, e viver. 
Começou a rir.
- Sabes que o Bocage fazia o mesmo? Descobri isto por acaso, há pouquíssimo tempo. Ele vendia os poemas no Rossio, e depois ia para as tascas empifar-se. Bebia a poesia toda. Toda.
- Abençoado seja - disse eu,
- Amén - concordou ela.
Depois trocámos as nossas palavras. Ela levou um «André» meu, o último, eu ganhei  três poemas dela.




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«à Manuela clepsidras vertendo
Luz com aquários de Palavras subtis
Transposições da clave
de fá ao Dó da Dor»
 

quarta-feira, outubro 06, 2010

Aljezur: arte de rua e cozinha regional












Este mural encantador tapa as misérias de um prédio a cair de velho, dando vida às suas paredes gastas. Este tipo de intervenções é arte, digam o que disserem. Arte de rua, expontânea, popular e generosa. Mesmo ao lado, um monumento à gastronomia do Sul. Restaurante pequeno, nada pretencioso, mas com uma cozinha soberba. Só para abrir o apetite, espreite-se a lista: Entradas: Percebes da costa e Morcela de farinha. Sopas: Sopa do quintal. Peixe: peixe cozido; Carapaus alimados com batata doce; Arroz de tamboril; Grão com chocos; Peixe grelhado e Feijoada de Búzios. Carne: Galinha de cabidela com batata e Ensopado de borrego à moda de Aljezur. Doces: Pastel de batata doce, Fritos de Aljezur e Bolo de batata doce. É tudo entre o bom, o óptimo e o excelente.  Nomes e moradas, please? Com o maior prazer: Restaurante Ruth o Ivo, Rua 25 de Abril, 14, Aljezur.

Outono, chuva e ventos fortes

 Um contratempo de nada, no regresso a Lisboa, este último Domingo. Sob a violência do vento, rajadas de 80km por hora, as árvores caíram a eito, por este país fora. Uma delas, na estrada que cruzámos. Os carros iam chegando e parando face à estrada intransitavel. As pessoas saíam, cumprimentavam-se e reagiam com alegria. Como se tirar troncos pequenos e pinhas enormes do caminho fosse uma bela brincadeira. Por momentos, adultos pareceram crianças. Ninguém resmungou, nem se queixou. Os que não ajudaram, esperaram tranquilamente. Alguém disse «que pena nao ter um saco de plástico, para carregar aquelas pinhas todas para a minha lareira». Sorte um dos jipes ter um cabo para arrastar a árvore morta para fora da estrada.
Quando nos pusémos a caminho, uma outra árvore vizinha da «nossa», mas ainda de pé, gemeu e inclinou-se. Ninguém quis ficar para ver o que ia acontecer-lhe de seguida. Muita gente, porém, ligou o 112.

domingo, outubro 03, 2010

A ultima borboleta do Verão

«Onde estão todos?»
A pergunta pairou no ar sob a forma de uma música que quase nenhuma das criaturas que a circundavam conseguia ouvir.
Ela repetiu:
«Onde está o meu povo?»
Ao seu redor, o vento agitou-se mas não lhe trouxe respostas. Só perfumes.
Ela subiu por um ramo. Era um ramo de medronheiro. A árvore estava carregada de bagas duras, vermelhas e alaranjadas. Muitas mais atapetavam o chão em seu redor. 
Ela ficou ali parada, a tentar segurar-se ao ramo, as asas caídas, as antenas vibráteis. No ar fresco da manhã não havia mensagens para si.
Ela era a última borboleta do Verão.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Quinta do Lago Silencioso, agora, sempre






preciosas memórias do tempo sem tempo no Lago Silencioso. Time to go. Mas alguma vez deixamos de voltar? Impossível. Este paraíso que Andrea sonhou, e construíu, entrou-nos na pele, e desde então a sua música corre pelas nossas veias. Somos deste chão. E destas estrelas impossíveis de caçar, nas noites furadas por incontáveis diamantes de todos os tamanhos. O nosso recado para Andrea e Zé do outro lado do mundo, agora que caminham sobre as minas de cristais de quartzo, ali onde João de Deus fez o seu trono: sonhem mais, sonhem muito, alimentem o Lago. E deixem-se embalar por ele. Como nós fazemos. Mesmo quando cá não estamos.

terça-feira, setembro 28, 2010

Once upon a dog

A entrada de um cão na minha vida mudou totalmente as rotinas. Felizmente aconteceu em Agosto, numa Lisboa bastante pasmada e, com a grande migração do Estio, muito mais transitável.
Depois, as férias foram «negociadas». A Andrea ainda hesitou, mas depois acabou por admitir o nosso «amigo de quatro patas» na casinha da quinta. Rendeu-se à história que lhe contei com soma de detalhes... «coitado do cão, tá bem». E aqui estamos, há dez dias.

Já não passeamos para lado nenhum, sem tomar em atenção se ele pode, ou não, acompanhar-nos.
Já ficámos com o carro em fanicos porque uma noite, e durante dez minutos, o deixámos no carro enquanto, numa tasca aqui perto, parámos para tomar um café.

Já acordámos a meio de uma noite riscada de relâmpagos, seguidos de trovões impressionantes, com os seus quarenta quilos de músculo e pêlo a espremerem-se entre o mosquiteiro e a parede da nossa cama baixa, enquanto ele tentava abrir caminho para se enroscar no meio de nós.


Já corremos atrás dele na estrada nacional, por acaso com muitos carros a circularem, porque era Domingo, enquanto ele corria à toa, à nossa procura. Eu tinha saído para fotografar burros. E ele saltou pela janela atrás de mim. Tudo em segundos.

Falo com dúzias de pessoas que metem conversa comigo unicamente por causa dele. Do Timóteo. Em português, inglês, alemão, holandês, castelhano... . Pessoas com cães pela trela, ou em fotografias. Cheias de memórias, e às vezes de saudades como a senhora que rompeu em lágrimas enquanto me pedia no seu doce castelhano de andaluza, que a deixássemos afagar «el perro» que lhe fazia lembrar tanto, mas tanto!, os dois que tivera até há quatro meses atrás. Morrendo, um após o outro, com 14 e 18 anos, respectivamente.

Nunca, em quatro filhos que tive e tenho, e carreguei comigo para todo o lado, fui tão interpelada como  por causa deste novo membro da família. Aos meus bebés, as mulheres, e nem todas, achavam graça. Os homens, abstinham-se. Algumas pessoas de idade, nos jardins públicos onde passeava com eles, faziam perguntas e demonstravam interesse. Mães e pais de outros miúdos e miúdas interagiam por vezes mas apenas quando as crianças estabeleciam contactos entre si.

A República dos cães é outra realidade.

Sem barreiras, nem passaportes, nem diferenças de cor, de idade, de cultura, de sexo. Nada. Salta-se o muro, e corre-se para a fogueira e em segundos estamos todos sentados à volta a falar com uma espontaneidade de  nómadas. É uma coisa muito muito muito antiga. É um amor primordial e selvagem, este que liga a tribo dos que amam os animais.

quarta-feira, setembro 15, 2010

Timoteo got a family


primeiro o spa: banho profissional no Prazer do Cão.

depois, mais tarde, a visita ao veterinário: e a necessidade do chapéu.
o Tim virou um cãodeeiro.
finalmente, livre de dermatites e outras ites, um cão livre a feliz a correr na floresta
e pela vizinhança

O que é a moralidade, papá?

Well, it depends. Coronel Walter Kurtz would tell you this:
«They teach boys how to bomb villages with napalm – but don’t allow them to write the word 'fuck' on their airplanes.»(Apocalypse Now).

terça-feira, setembro 14, 2010

André e o Segredo dos Labirintos

«E foi nesta altura que o tigre resolveu irromper pelo quintal, com tanto entusiasmo ou tamanha falta de pontaria, que se enredou nas cordas dos varões, deitando ao chão os livros que ainda se encontravam ali. Finalmente, cuspiu um Ágis de rosto iluminado de alegria, que foi aterrar um pouco mais longe da barafunda criada pelo animal.
– Voltei!! – gritou o tigre, com uma corda de livros à volta do pescoço.
– Voltámos – secundo-o Ágis num tom de voz muito mais baixo.
Parecia mais crescido, mas continuava extremamente esguio. Desfizera-se das roupas com que André o conhecera, e vestia agora uma túnica branca, muito macia, que lhe chegava um pouco abaixo dos joelhos. Na cabeça, em vez do chapéu que o tigre lhe arrancara, usava um turbante amarelo. Nos pés, três tiras de couro e uma palmilha, faziam de sapatos.
Aproximando-se de André que ainda não tivera tempo de reagir, o rapaz pôs-lhe uma mão no ombro:
– Já sei como podemos salvar Violante. Mas precisamos, eu e o tigre, da tua ajuda. Para libertar a Dama do Lago.
– O tigre passou a ser teu? – André não conseguiu reprimir a pergunta, nem dissimular a inveja que sentia, mas Ágis pareceu nem se dar conta, porque lhe retorquiu com um sorriso cheio de luz:
– Tornamo-nos um, André. Separados, eu e ele, éramos incompletos e frágeis. Juntos, temos agora um poder imenso. Se soubéssemos por onde andámos! Quanto tempo achas que passou desde que saímos daqui?
– Muito – resmungou o rapaz. – Umas quatro horas, pelo menos.
– Aqui, sim. Mas num dos lugares onde ficámos, para eu aprender o que devia aprender, vivemos quase dois anos. Voltámos à terra onde o tigre nasceu, André. Estivemos na Índia. No planeta Terra de onde tu vieste.»

pequeno extracto da próxima aventura da colecção «O Mundo de André». Brevemente darei mais informações e irei postar a capa, identificando o autor da magnífica ilustração...

 

quarta-feira, setembro 01, 2010

um gato grande, gordo e amarelo

Era grande, gordo e amarelo. Era o gato mais gordo que conheci em toda a minha vida, disse ela. Era o gato da mãe e a mascote de uma família que adora felinos. Um dia a mãe foi-se deitar mais cedo do que era costume. O pai ficou na sala. Adormeceu no sofá de orelhas. Acordou com o gato grande e amarelo a  dar-lhe pancadas suaves na careca. Sacudiu-o e voltou a dormir. E voltou a acordar. E voltou a sacudir o gato amarelo. E voltou a dormir. À terceira vez ficou acordado. Sentou-se e olhou para trás. O gato estava parado à entrada do corredor. Miava, e sem desfitar os olhos, movia o corpo como se esperasse por ele para recomeçar a andar. O pai dela estranhou e foi atrás do gato amarelo até  à cama onde a mãe estava tão mal, mas tão mal, que nem conseguia falar quanto mais mexer-se. Depois veio o médico, a ambulância, o internamento no hospital.
Depois o médico disse à minha mãe, disse ela, que mais um pouco e ela não teria resistido.
O gato, gordo e amarelo, se até então era amado, passou a ser adorado e a familia teve um desgosto brutal quando ele morreu. O fim da história coincidiu com o fim da lavagem do meu cabelo no fantástico salão do Sandro, onde posso ir e levar o meu cão. A Paula, que tem gatos e cães e mora no campo, passou a partilhar estas e outras histórias de bichos desde que me vê com o Tim. E a seguir, enquanto o Sandro me penteava, levou-o até à porta onde, ainda de gola azul, ele se sentou a namorar os pombos.

sexta-feira, agosto 27, 2010

Once upon Tete

A Mimi Teixeira começou: várias fotografias do tempo do colégio S. José, Tete, apareceram pelos nosos murais devolvendo-nos a memória de uma adolescência dourada e breve. Estimulante exercicio que motivou outras procuras. Aos pedaços, o mozaico de múltiplas vivencias dispersas, refez-se nas legendas, nas trocas de informações, nos reencontros. África no coração e nos sentidos, poderosamente presente. 


Depois eu descobri que tinha um scaner excelente nos confins de um armário. E caixas, e albuns, e sacos com  imagens de muitas épocas por muitos locais deste mundo por onde reparti o tempo que a vida já me deixou viver. Uma colecção de fotografias de Tete emergiu. Pequenas, com pouca defenição - o scaner corrigiu - todas juntas em harmónio. Compravam-se numa papelaria local, um recuerdo da cidade escaldante. Postei-as. Encontrei outras. Postei-as. Muita gente começou a encontrar muita gente. Muita gente anda à procura de mais imagens. A Mimi, incansável Mimi, a Violante, a Lina, e tantas outras, ajudam a legendar espaços e locais.
Começo a pensar seriamente se não seria de levar a cabo uma exposição de imagens e memórias deste espaço. Alguém tem ideias de locais, apoios, etc.? A nossa diáspora é uma página de história comum.
Para ver album:
http://www.facebook.com/photo.php?pid=4722370&id=611698151#!/photo.php?pid=4722399&id=611698151&ref=fbx_album

terça-feira, agosto 24, 2010

A morte é a vida ausente

O avô (centro), o meu pai (esqdª), o tio Rogério
A morte é esta perplexidade sem respostas. É estarmos vivos a morrer de saudade. É o vazio, a porta fechada que nem sequer é porta, e tudo o que nos disserem, ou que nós digamos a nós próprios, não retira uma virgula a esta indizível sensação de abandono.
A morte é mexer em coisas que não são nossas, com um grande desconforto e nenhuma curiosidade. É abrir gavetas fechadas para deitar fora muitos papéis. É tocar em roupas inúteis, tentando descobrir-lhes utilidade. É sentarmo-nos a olhar para fotografias que vemos pela primeira vez. Mesmo as que já conheciamos, porque só agora, no silêncio da ausência sem remédio, encontramos os outros rostos da pessoa que julgávamos conhecer. A morte é pedir ajuda ao tempo, sabendo que nalguns casos, o tempo não nos vai ajudar.
A morte é a vida ausente e nós a sentirmo-nos intrusos.