sexta-feira, julho 18, 2014

Moçambique e os nossos universos paralelos

Uma não leitora - a quem muito agradeço os comentários - fez-me repensar sobre este refazer de memórias escondidas, que muitos de nós nunca partilharam até por não terem sequer com quem.
 
Miducha Duarte Silva Eu ainda não comprei o livro, embora tenha muita curiosidade, nasci na ilha, o meu bisavô, está lá enterrado e o meu Avô, também, e ouvia imensas histórias do meu pai sobre o mato, que nunca conheci, ou muito pouco, e da nossa família que também dava um livro, especialmente a do meu bisavô, Luciano Ignácio Félix (nome dado ao meu pai) que muita obra social fez em Maputo..hoje só temos uma Tia sobrevivente, mas está doente, tem 88 anos, e as memórias vão-se perder.. restam fotos, da Inhaca (em tempos do meu bisavô) parte dela, e da Ilha também as minha memórias da Ilha são bonitas mas poucas. Vivi sempre em Maputo.
 
Miducha Duarte Silva Apesar de já lá ter voltado 38 anos depois, achei que tinha vivido noutra dimensão, mas que era a minha terra na mesma!! o que foi e é muito estranho! e Adorei tudo e o ter lá estado.(ainda tenho família lá) Isto tudo para dizer que me é ainda extremamente doloroso ler, ou ouvir contar histórias sobre Moçambique ..não sei ainda porquê!!
 
 
 
As palavras desta não-leitora tocaram-me particularmente., Também para mim,  e desde que aqui cheguei há tantos anos, a nossa vida em Africa entrou numa espécie de universo paralelo mental, a que só eu tinha acesso. E era como se tivesse sido, toda ela, uma vida inventada por mim - ninguém conhecia os lugares onde eu vivera. Ninguém conhecia as pessoas que eu recordava. Ninguém sabia nada sobre o acordar e adormecer sob outros céus, sob outras estrelas iluminados por um Sol e uma Lua tão próximos da Terra. Aliás, ninguém ao meu redor mostrava ou mostrou jamais qualquer interesse por esses mundos de aquém e além mar, já que o rótulo que colectivamente nos embalava, arrumava num grande e cinzento armazém da Historia as nossas histórias da vida que ali definharam por falta de ar.
Pelos motivos que apontei, comecei a escrever Moçambique literalmente para a minha mãe se lembrar como foi. E depois, pelos motivos que também já expliquei, percebi a certa altura que aquelas crónicas avulsas, impressas em folhas A4 iam entrar no caminho da escrita, que é um caminho sem retorno. Então, esqueci-me, melhor, larguei o «eu» de agora, para evocar a vida de todos nós, sem descurar as minhas próprias mutações e a nossa vivencia mais pessoal. 
 
É assim que, neste momento, os meus próximos sabem finalmente de coisas, de lugares, de pessoas, de montanhas e rios e árvores e cidades e vilas e lugarejos, e historias de guerras e de paz, de que nem sonhavam a existência. Eles, tão alheios ao universo africano, estão em plena Viagem e estão a gostar de uma forma que nunca imaginei que gostariam.  Mais do que isso, comecei a perceber que este livro devolve foros de cidadania à minha, à nossa vida escondida, de modo que, através dele, e nada estava mais longe das minhas intenções!, exorcizei eu própria os fantasmas do olvido. A todos os que me louvam a «coragem» de me expor desta maneira, tenho de desiludir. Não foi preciso coragem. O processo tomou conta de mim - e eu esqueci-me do resto.
 
Na verdade, esta é uma historia colectiva. África está-nos no sangue e na memória, evocada ou escondida. Dos que partiram e voltaram. E dos que não tendo partido, logo achando que o assunto não lhes diz respeito, a transportam nas misteriosas estradas do sangue. Sim. No código genético português.
 
 

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