domingo, maio 17, 2015

O príncipe com orelhas de Dumbo

Hoje num I que apanhei a jeito num café, li uma crónica sobre o problema do rapaz das orelhas grandes que foi gozado num programa de televisão (sobre talentos...) e a reacção da avó que pede uma indemnização à estação televisiva por danos morais causados ao neto. Basicamente, o cronista defende que a avó é uma chica-espera que ilustra uma nova forma de empresariado que está a proliferar (a dos oportunistas pequeninos) e que quer ganhar dinheiro à conta do neto, porque estaria careca de saber que o formato do programa implica este tipo de bondades. 

Pasmei.


Eu sou do tempo em que os cronistas de um jornal tinham de ter uma mais valia qualquer. Até podiam ser mauzinhos (como o Miguel Esteves Cardoso da época aurea), mas a inteligência, o brilho da escrita!, a graça, a cultura, tinham de prevalecer sobre o mero debicar bitates e ocupar espaço porque o espaço de um jornal custa dinheiro e uma crónica é, ou era, uma espécie de consagração que se outorgava a quem merecia por talentos vários. O que não é o caso deste cronista. 


A sua preopinância não mereceria nem um olhar quanto mais uma reflexão, se não fosse de um moralismo trágico que infelizmente, e pelo nível de ignorância que estamos a atingir, está a fazer o seu caminho.


Até eu, que praticamente só consumo a informação em rede, leio jornais na internet (portugueses e não só) e que 'papo' revistas cor-de-rosa onde as apanho (normalmente fora de prazo), sei e soube que o rapaz das orelhas grandes está a ser criado por aquela avó muito pobre e muito doente, porque o pai morreu de overdose ou coisa que o valha e mãe para lá caminha. 


Até eu sei, e sei pouco ou quase nada do chinfrim mediático destas coisas, que o caso do menino (que tem aulas no ensino especial). ilustra as gravíssimas assimetrias sociais do nosso país de pobres, que empobrece a cada ano, mesmo quando há pobres que até vão tendo algum ou muito dinheiro, e que acham, na sua arrogante pobreza endinheirada que ainda cheira a merda mal desincrustada, que são superiores ao resto que chafurda nos restos. 

E até eu sei que o rapaz, menor de idade de mais a mais, é daqueles pobres a quem nunca ninguém vai dar nada, e muito menos à avó, que para além dele cria mais oito ou nove netos e que julgou, na sua boa fé e ignorância desvalida que a televisão, como o totoloto ou a lotaria, poderiam dar-lhe uma ajuda para qualquer coisinha. A pobreza desta avó é nosso espelho. A pobreza deste menino é nosso espelho. A tristeza dele e a vergonha dele são nossa vergonha também. 


Numa sociedade onde a educação tivesse sido dispensada a todos e a jorros, como em sociedades mais evoluídas; numa sociedade onde filhos de deuses menores e de pais mortos de overdose e outras misérias humanas; numa sociedade mais justa,mais equitativa, mais inteligente e saudável, estes meninos e estas avós não precisariam de sonhar com caixinhas mágicas onde freack shows imperam, disfarçados de oportunidades radiosas. 


Desculpem não pôr o nome do cronista. Esqueci-me e não vale a pena recordá-lo. A crónica nem sequer era minimamente bem escrita.



sábado, maio 09, 2015

Livros com contra-indicações

Eu acho que os livros, como os medicamentos, deviam ter assinaladas as contraindicaçoes respectivas, em letra maior do que a que a indústria farmacêutica utiliza. 

Por exemplo, há livros fortemente desaconselhados aos praticantes da monocultura literária. E assim sendo, é perca de dinheiro e de tempo, investir em obras mais exigentes que impliquem a colaboração de quem lê em modo de atenção plena. A menos que a tal presida uma vontade de explorar novos caminhos que passem por alargar níveis de apreensão do real, e uma crescente exigência estética. De outro modo, o ou a leitora, pode ter sintomas de indigestão e dar o dinheiro por mal empregue. E tem toda a razão!! 


Da mesma forma, um ou uma leitora mais habituado a diversificar leituras, com hábitos de concentração e imaginação mais reforçados, e até uma cultura geral mais aprofundada, não consegue passar das primeiras páginas de um romance banal, e mesmo medíocre, por mais na moda que esteja. 


Eu por acaso, consigo. Em casos muito pontuais, e se não houver mais nada à mão.A prova é que li dois Dan Brown e gostei tanto como gosto de ler livros policiais!! É trepidante, intrigante, razoavelmente bem escrito e não insulta a nossa inteligência.A densidade emotiva da trama é zero? É. O voo é muito rasante? É. Mas entretém por umas horas (dois dias, com interrupções, três vá lá, está feito). E é muito melhor do que ir ao cinema ver um medíocre filme de acção, que o são quase todos.

Ora gostar de livros mais «fáceis» não tem nada de errado. Até porque quem lê, já está em claríssima vantagem em relação a quem nunca o faz. Ler implica um extraordinário exercício mental.Trata-se de (re)construir, na fábrica de sonhos que é a nossa imaginação criadora. os cenários, os actores, a paisagem emocional, onde o enredo se desenrola. 

Na verdade, ler implica sempre a nossa colaboração, o que, de algum modo, nos torna co-autores da obra. 

Dito de outra forma: o leitor tem sempre razão. E o livro, também. Acontece é que há muitos desencontros. Como em tudo. smile emoticon 


Em ultima análise, é o crivo do tempo que coloca tudo nos seus devidos lugares.

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quinta-feira, maio 07, 2015

«O lume que veio das cinzas»

O poeta moçambicano Jaime Rafael Munguambe Júnior enviou-me ontem a sua opinião sobre o meu livro que tem Moçambique no título e no corpo de um revisitar de memórias passadas para memória futura. É um texto belíssimo, o dele, como aliás é tudo o que ele escreve. Mas este, e agora para mim, tem um valor acrescido muito especial. Jaime é negro e eu sou branca. Eu nasci em Portugal, no Porto. Ele é filho da Terra que aprendi a amar como minha, Moçambique. Jaime é mais novo que o mais novo dos meus filhos e a nossa amizade virtual nasceu da paixão, do culto, da Palavra. Ele é genial. Tem o fogo sagrado que habita muito poucos, e para além disso, escreve com todos os sentidos e com todos os elementos. Eu escrevo com o corpo todo, com a mesma alegria e seriedade das crianças que brincam.

Mas as nossas memórias só coexistem, eventualmente, num aspecto: a geografia. Melhor, em dois. Quando o livro saiu e ele leu extractos, escreveu-me a agradecer o amor que demonstrava pelo seu país. Depois, quase um ano depois, enviei-lhe por uma amiga dos tempos do colégio Barroso que continua ligada ao ao seu país, um exemplar de Moçambique para a Mãe se Lembrar como Foi que ele começou a ler.

Aos poucos, deixava escapar alguns comentários. Como por exemplo, este:

«Neste momento, não sei dizer em que geografia pouso. Porém, me ocorre no cais da lembrança o barco da viagem que outrora subi quando à princípio fui folhear a obra de Manuela Gonzaga, deixando assim as palavras perseguirem os olhos e as pálpebras criarem barulho, não deu tempo para fazer levitar o coração das montanhas. Por isso agora estou dentro do lume que veio das cinzas.» (Jaime Rafael Munguambe Junior, 3/04/20215)

Só um poeta poderia escrever isto: «o lume que veio das cinzas» a propósito de um livro de memórias de um, neste caso, uma escritora que só conhece de palavra dada e trocada e comungada.

Pensei, como é um miúdo negro, educado, universitário, poeta, vai olhar para as minhas recordações de branca, que por pouco privilegiada que fosse, viveu o privilégio? Pois foi assim que Jaime Rafael Munguambe Junior olhou, e eu chorei ao lê-lo e não tenho palavras para agradecer a beleza e a ternura do seu comentário:




«Puxado pelo destino e seduzido pelo exorcismo da palavra, tive o ensejo de pousar num telhado literário, inter e pluribiográfico de uma autora que reside no coração do tempo, respira nos palácios das magias, arranca a luz que a hora plantou outrora na geografia moçambicana, mescla os momentos dentro da sombra que o presente tem e colabora com a imortalização dos dias. 

Falo-vos da Escritora Manuela Gonzaga, a máquina tricótoma e humana, que tive e tenho a chance de conhecer a cada dia, no oásis artístico das tertúlias. Na obra Moçambique Para se Lembrar como Foi o passado não é um mero lugar onde habitam as cinzas do fogo aceso pelo presente, é uma prateleira onde cada um é fonte que gera lendas, fonte onde jorra a sabedoria da vida. Digo isso, não pela largura do riso que se abre as duas laudas do rosto (na fotografia exposta na orelha do livro). Mas pela magnificiência que é a Moçambique para Mãe se Lembrar como Foi'. A autora ressuscita das cinzas o fogo, para expó-lo onde a multidão respira Invernos, onde o reflexos das íris e o deserto dos ouvidos são a essência do milagre. 

Em Moçambique para a Mãe se lembrar Como Foi. Manuela Gonzaga abre a porta e tira todos habitantes da memória, para mostrar ao mundo a soma dos tesouros que se transportam no coração de uma mãe. Que para além de ser apenas a da autora passa a ser de todo leitor que entornar o olhar sobre a obra.

Jaime Rafael Munguambe Junior
Maputo, 06-05-2015 15:08