sábado, outubro 31, 2009
He's back, ou reflexões em torno de um portátil
Ao fim de quase duas semanas, o meu computador voltou. Sem memória, e com as configurações de origem. Ao longo do dia, dediquei-me ao trabalho metódico de o «ressuscitar». Está rápido, esperto e nada conflitual. Estamos em boa harmonia, mas a intimidade ainda não é nada por aí além. Estas coisas demoram o seu tempo. Em todo o caso, têm muito que se lhe diga. Há várias questões filosóficas envolvidas e tudo.
sexta-feira, outubro 16, 2009
De novo para o Hospital Conde de Ferreira
«Sob uma chuva torrencial, montada a cavalo no «tal selim» e embrulhada num cobertor, Maria Adelaide teve sempre ao seu lado, a ampará-la, o Manuel. Não fosse ele e teria caído mais do que uma vez. Chegados à taberna para passarem a noite, tinham à disposição dois molhos de palha. Os agentes tinham ficado com a única cama disponível que havia. O frio era intenso, mas muito pior do que o frio era a multidão que enchera a venda. O sentimento de humilhação era esmagador. Sentada no chão, «como qualquer animal», sentia-se trespassada pelos olhares dos captores e dos curiosos, num ambiente «saturado do fumo do tabaco, do cheiro do vinho e da comida, um ambiente de taberna, enfim». Manuel queria convencê-la de que, por certo, não a levariam mais para o Conde de Ferreira, e Adelaide sentiu, mais forte do que a angústia, «rugir dentro de mim uma cólera indomável».
Tinha pedido, ainda no alpendre da casa do Alberto, que lhe mostrassem o mandato de captura. Só lho mostraram quando ali chegara. Lera-o à luz desmaiada de um sujo candeeiro de petróleo. Sem sombra de dúvida era o seu nome: Maria Adelaide Coelho da Cunha. E agora aqui a tinham, por ordem de Alfredo da Cunha, presa e guardada à vista na taberna do Rossão, «como qualquer gatuna vulgar». [Maria Adelaide Coelho da Cunha..., p. 141]
Nota: na imagem a porta da outrora taberna, no Rossão, onde passaram essa terrível noite Adelaide, Manuel e Alberto.
Tinha pedido, ainda no alpendre da casa do Alberto, que lhe mostrassem o mandato de captura. Só lho mostraram quando ali chegara. Lera-o à luz desmaiada de um sujo candeeiro de petróleo. Sem sombra de dúvida era o seu nome: Maria Adelaide Coelho da Cunha. E agora aqui a tinham, por ordem de Alfredo da Cunha, presa e guardada à vista na taberna do Rossão, «como qualquer gatuna vulgar». [Maria Adelaide Coelho da Cunha..., p. 141]
Nota: na imagem a porta da outrora taberna, no Rossão, onde passaram essa terrível noite Adelaide, Manuel e Alberto.
Rossão, os dias felizes
«O dia amanheceu belíssimo. Da janela do quarto o panorama era deslumbrante. Aninhada num vale, sobre uma terra generosa e áspera, a aldeia oferecia-se numa paz de campos semeados, horizonte vasto, pastoral e sereno, com as casas cobertas de colmo a despontar no puríssimo ar da serra, recortada no horizonte. Mais perto, o gado a pastar. À distância, pequenas aldeias com casas brancas destacando-se sobre o verde das árvores e dos campos, e o escuro do granito. Em frente, um cruzeiro. Maria Adelaide lembrou-se, mais uma vez, da mãe, e pôs-se a pensar que tinha sido numa casa como esta que ela nascera. Depois, quando a filha mais velha de Alberto saiu a apascentar o gado, lembrou-se de novo da mãe lhe contar que também pastoreara rebanhos. Apaixonada, e mais do que nunca decidida a enterrar o seu passado de mulher sofisticada, cosmopolita e infeliz, fez apelo às raízes maternas, nem sequer tão remotas, e escreveu:
«Senti circular nas minhas veias o seu sangue campesino.»
Para todos os efeitos, Maria Adelaide era agora a «rapariga do Manuel», a mulher que ele trouxera consigo para casar logo que lhes fosse possível fazê-lo. E foi isto mesmo que ele disse à mãe, mais tarde, depois do jantar, — à hora que nas cidades se come o segundo almoço — quando a senhora «se aproximou de nós». A descrição do encontro tem, no registo autobiográfico, a importância de ilustrar uma cena «com qualquer coisa que fala ao coração dos bons», permitindo também que se avalie melhor «os sentimentos do homem» por quem ela se apaixonou, e que por esse «crime de amor» viria a ser preso.»
«Senti circular nas minhas veias o seu sangue campesino.»
Para todos os efeitos, Maria Adelaide era agora a «rapariga do Manuel», a mulher que ele trouxera consigo para casar logo que lhes fosse possível fazê-lo. E foi isto mesmo que ele disse à mãe, mais tarde, depois do jantar, — à hora que nas cidades se come o segundo almoço — quando a senhora «se aproximou de nós». A descrição do encontro tem, no registo autobiográfico, a importância de ilustrar uma cena «com qualquer coisa que fala ao coração dos bons», permitindo também que se avalie melhor «os sentimentos do homem» por quem ela se apaixonou, e que por esse «crime de amor» viria a ser preso.»
[Maria Adelaide Coelho da Cunha: «Doida não e não!», p. 136]
Memórias do Rossão: o ar da liberdade
«Tinham sido acolhidos de braços abertos em casa de Alberto, o primo de Manuel, cuja mulher a tratara com todo o carinho, conduzindo-a à lareira para se aquecer. Estavam todos a morrer de fome. A caminhada, o ar da serra, os sobressaltos da véspera e o cheiro que saía das panelas, penduradas sobre o fogo, ainda mais lhes abria o apetite. Esta cozinha, enegrecida pelo fumo da lareira, com a arca de pão e os enchidos nos fumeiros, lembrava-lhe a cozinha de Carregal do Sal, onde fora feliz nos descuidadosdias da sua meninice.
Ceia simples, mas «saborosíssima». Uma tijela de caldo «como nunca o comera igual», um «copo de água finíssima» e um bom naco de alvo pão, satisfizeram «as primeiras necessidades do meu estômago». Depois um arroz de bacalhau «muito bem feito» e, após as rezas nocturnas -- prática habitual na casa -- um serão de conversas... [in Maria Adelaide Coelho da Cunha: Doida não e não!, pp. 135-136]»
As imagens [Outubro de 2009] documentam a entrada da casa do Alberto Cardoso, no Rossão, a cozinha que Adelaide descreveu e que ainda guarda o cheiro de saudosos sabores tradicionais, com a sua janela que dá para a rua, onde ela assomou tantas vezes. Felicidade intensa mas de curta duração. O hospício aguardava-a. Para eles, Aberto e Manuel, a cadeia.
quarta-feira, outubro 14, 2009
Histórias da família de Manuel Claro em Rossão
Cresceram a ouvir, quase em segredo, a «história». Era uma vez uma senhora que dizia a quem a queria ouvir: «Não sou, não estou, nunca estive doida.». Depois acrescentava: «Louca, sim. De amor». A senhora à esquerda era uma criança, mas lembra-se do seus tios Manuel e Adelaide, que costumavam aparecer pela aldeia, já a poeira do escândalo e o perigo das perseguições movidas pelo marido dela e seus familiares assentara de vez. A criança que a senhora idosa era, vive na casa que foi também da mãe de Manuel Claro. Chama-se Cidalina Lopes, é filha de Virgínia Lopes, irmã que foi de Manuel. A irmã de Cidalina chamava-se Minervina: «Foi para o Porto viver com os meus tios. A Tia Adelaide ensinou-lhe tudo. Depois ajudaram-na a abrir um restaurante». Coincide com o que escrevemos. É tão bom confirmar!
O casal sorridente está também ligado a esta história. Maria da Encarnação Cardoso Barbedo tem mais quatro irmãs. Por um triz as cinco meninas podiam nem ter nascido! O pai, José Dias Cardoso, estava acabar o seminário em Lamego quando o «crime» foi conhecido. Não lhe dizia respeito, a não ser de forma indirecta. Seu pai e sua mãe tinham recebido Maria Adelaide Coelho da Cunha em sua casa. Alberto Cardoso estava na prisão quando o filho foi expulso do seminário. O futuro padre, excelente aluno, não tinha nada que se lhe apontasse, a não ser o «crime» de solidariedade cometido por seu pai.
Maria da Encarnação recorda que o avô Alberto, quando saíu da cadeia, teve de emigrar para o Brasil para fazer face às dividas. «As terras ficaram todas empenhadas, foi muito dificil. E o meu pai começou a trabalhar como serralheiro e como armeiro, também para ajudar a pagar essas dívidas». Era um músico, um artista, fundou na aldeia uma orquestra de cordas. Violino, guitarra, cavaquinho, acordeão. Escrevia as cartas dos conterrâneos analfabetos. Desenhou os altares da igreja, concebeu a sua escadaria. Quando acabou de pagar tudo, ele e o pai com as remessas da emigração, poucos mais anos viveu. Aos 39 anos, de uma febre, partiu. «Deixou-nos a maior riqueza que pode haver. Todas nós estudámos. Umas são professoras, outras funcionárias. Tivemos um modo de vida».
O marido, Manuel Fernando Duarte Barbedo, também tem ligações colaterais à família de Manuel Claro. Os dois mostraram-nos a aldeia e ajudaram-nos a encaixar as imagens nas memórias.
Maria Adelaide Coelho, memórias do Rossão
Quando fugiu a primeira vez do hospital Conde de Ferreira, ainda em 1918, foi nesta pequena e remota aldeia, na serra de Montemuro, concelho de Castro Daire, que Maria Adelalaide Coelho se acolheu. Era a terra de Manuel Claro, o homem por quem ela tinha abandonado fortuna, um palácio em Lisboa, uma vida de sociedade. Nunca se arrependeu... apesar do preço elevadíssimo que todos pagaram: ela, o companheiro, a família dele que lhes abriu o coração e os braços.
Em Rossão, esta história está a céu aberto. A casa que foi de Alberto Cardoso, o generosíssimo primo de Manuel, onde Adelaide viveu dias de felicidade intensa, ora em ruínas, está a ser recuperada. A casa, onde Manuel vivia com a sua mãe, ainda está de pé. A taberna onde Adelaide, Manuel e Alberto passaram uma noite medonha, à guarda da polícia e dos esbirros do marido que os foram prender, já não existe com essa função, mas as pedras ainda dão testemunho do lugar. Aos poucos, a memória refaz os seus caminhos e recupera um Amor inesquecível. Com um orgulho que já ninguém disfarça.
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