quinta-feira, dezembro 25, 2014

Natal em África - Lago Niassa, Moçambique

A seguir ao nosso primeiro Natal em África, passado na Pousada da então Vila Cabral, actual Lichinga, fomos para Meponda, Lago Niassa onde deixámos para trás o ano velho, tão repleto de novidades, emoções e mudanças extraordinárias e saudámos o ano novo. Ao frio das memórias dos meus muito poucos natais passados, sobrepunha-se agora o bafo equatorial da estação quente no seu esplendor. Partilho um extracto de Moçambique para a mãe se lembrar..., que me devolve a memoria daquelas paisagens inolvidáveis.

lago Niassa, Moçambique cortesia de May Duarte

« [...] Aconteceu em Meponda, no Lago Niassa, uma tão grande extensão de água doce que tinha ondas e marés, e águas cor de turquesa riquíssimas em peixe das mais delirantes cores. Um verdadeiro paraíso terrestre, de areias douradas e finíssimas, à distância de umas cinco ou seis horas de Vila Cabral, (actual Lichinga) se tudo corresse bem. O percurso, 60 km, era longo. A estrada, uma picada de terra batida, com as suas valas inesperadas, buracos enormes, lagos de lama no tempo da chuva e os mais variados acidentes e caprichos do terreno, era muito mais apropriada para Land Rover ou viaturas militares, do que para o valente carocha onde muitas vezes nos deslocávamos. Mas aqueles sessenta quilómetros tão compridos resultavam muito recompensadores, pois, assim que chegávamos e arrumávamos a bagagem leve de fim-de-semana, corríamos para a praia, e íamos tomar o primeiro de um número intermináveis de banhos. Na transparência cristalina das águas cálidas, deslizavam os peixes de cores mais alucinantes que alguma vez vi na minha vida. Pura alegria.

Ir para Meponda, tornou-se um programa regular. Sexta-feira, depois das aulas, nós os quatro e a mãe, partíamos rumo ao Lago, às vezes no jipe do senhor Paiva outras vezes com um jovem professor primário que conduzia o Volkswagen. Ali chegados instalávamo-nos em dois quartos da Pousada de Meponda. Os três rapazes num, eu, a mãe e a Bé noutro. Os quartos, diante do lago, eram pequenas construções em pedra e cal, em forma de cubatas, com telhado de colmo à vista, revestidos de traves e de madeira e paredes imaculadamente caiadas, por fora e por dentro. Simples, mas muito bonito. As refeições eram tomadas na casa grande, onde funcionava a recepção, e que era também a morada do casal que explorava turisticamente aquele paraíso tão remoto.

[...]  A noite, que em África cai de chofre apagando as chamas do céu cor de fogo, tornava-se ali ainda mais misteriosa na solidão entrecortada de luzes petromax, e iluminada pela lua e pelas estrelas do hemisfério sul que se reflectiam na massa escura, informe e imensa do Lago onde o luar rasgava uma formidável esteira de prata. Na sala da Pousada, uma árvore de natal tão deslocada naquele calor, cheia de flocos de algodão e bolas de todas as cores, um presépio pequenino, uma ceia muito pouco tradicional, e nós a ouvir Nat King Cole, Mornas de Cabo Verde e The Platers num gira-discos minúsculo, vezes e vezes sem fim. Only youuuuuu

Vila de Meponda, cortesia de Observer

 

domingo, dezembro 21, 2014

Luz

Quando começamos a andar em círculos à procura de salvadores e iluminados, esquecemos que a luz que trazemos connosco é suficientemente forte para criar universos. MG

Tyrrhenian Sea and Solstice Sky 
[Danilo Pivato em Astronomy Picture of the Day]

quinta-feira, dezembro 18, 2014

Onze livros - o 12º está a caminho

Quando a pessoa os coloca assim, já somam 11 - e o próximo está mesmo a chegar. No principio do ano, em data a anunciar pela editora, um romance, que saudades tinha de escrever um! vai marcar a minha agenda literária.

Arranjo gráfico das capas dos meus livros por Pedro Miguel Garcia Marques
não estão contempladas as edições em francês

De fora, estão ainda muitos, em fila de espera, a pedir para serem escritos. Enquanto tiver este horizonte, a vida não me pesa, os anos não me incomodam, os sobressaltos, e que sobressaltos!, serão apenas parte da paisagem que circunda a viagem de viver. Que comporta mágoas e exultações, surpresas e maravilhamentos e terrores. E pausas muito felizes. Ou não fosse viagem. Preciso é de ter sempre histórias para contar a mim própria quando vou dormir - sobretudo nessa altura. Um dia, quando esse dia chegar, serei uma entre muitas outras palavras.

Completamente Vivas.

sábado, dezembro 13, 2014

Mozambique: Pour que ma mère se souvienne

O meu segundo livro traduzido por Laure Collet e editado em francês por Le Poisson Volant:

 Mozambique: Pour que ma mère se souvienne 

Présentation de l'éditeur:

Dans la jungle de ses souvenirs africains, Manuela Gonzaga tente de sauver une extraordinaire histoire d'amour pour l'Afrique et le Mozambique des affres de la maladie d'Alzheimer qui menacent la mémoire de sa mère. Avec la joie et la spontanéité de l'adolescente qu'elle était en arrivant là-bas, elle nous fait découvrir ce monde perdu, merveilleux et violent, qu'était l'Empire colonial portugais.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

O Colégio Dom António Barroso

Na pequeníssima cidade no Niassa onde a mãe tinha sido colocada, Vila Cabral actual Lichinga,  não havia ensino secundário para a minha idade - ou do meu irmão Jorge, que veio também interno para a capital, para o Colégio dos Maristas. Durante anos, recordei os interditos, as muralhas, as proibições e a sensação de ser prisioneira dentro dos muros do colégio D. António Barroso. O tempo ajudou-me a fazer justiça àquela instituição:
 
Aos 13 anos no Colégio D. António Barroso

«Mas o colégio onde aprendi os fundamentos de uma disciplina interior que me tem suportado a vida inteira, e onde fiz amizades que sobreviveram ao virar dos tempos e à sua lonjura, não se esgota nestes confrontos adolescentes, ou em grades morais e físicas que tanto me custavam a suportar, pois, aprendendo a lidar com as contingências da disciplina, as suas vantagens foram imensas. Além disso, duvido que as nossas queridas irmãs da Congregação da Apresentação de Maria pudessem, naquela altura, afastar-se muito deste tipo de registo educativo, sobretudo no que toca à grande responsabilidade que representava a tutela das suas alunas internas.

Ali, era impossível não estudar. A imensa sala de estudo onde internas e semi-internas passavam o tempo, depois do recreio do lanche e até à hora do jantar, era vigiada com olhar de falcão pelas irmãs presentes, uma em cada extremidade da sala, sentadas em bancos altos de nadador-salvador de onde, e à vez, saíam para circular entre as carteiras onde nos debruçávamos sobre livros e cadernos. O requinte desta vigilância chegava ao ponto de confrontarem o livro que estávamos tão interessadas a consultar com o ano que frequentávamos. Foi assim que deixei de estar junto de alunas de anos mais avançados, às quais pedia os livros de Português para me entreter com os textos, em vez de estudar as minhas próprias lições.

A certa altura, e isso aconteceu-me no ano letivo seguinte, era tão cansativo resistir contra o sistema, e tão desproporcionada a energia que aplicava face aos exíguos resultados, já que a única coisa que conseguia era baixar as minhas notas para níveis invulgares, que acabei por entrar no jogo.»

 
 

No colégio da Namaacha em 1964 - da esquerda para a direita: Piedade, Pe. Henrique, Elisabeth Carreira, Teresa Martins Alves, Manuela Gonzaga, Cristina Horta; acima, sala de aula no colégio, em Lourenço Marques, actual Maputo.
[...]
«No Natal, antes das férias, o colégio organizava um sarau aberto às famílias, pessoas amigas das alunas e antigas alunas. Teatro, poesia, música e dança faziam parte de um programa que preparávamos com grande emoção e empenho. O meu ponto forte foi declamar em francês um poema de Guy de Maupassant, com tamanho sentimento e aprumada dicção, que umas pessoas na assistência foram perguntar à irmã do Santo Rosário se eu era mesmo francesa.
 
E finalmente chegava o momento de voltar a ser livre, mesmo que por pouco tempo. Um dia inteiro, entre aeroportos e aviões, entregue a mim própria e antecipando o sabor das férias, a fumar cigarros no aeroporto da Beira, já sem me engasgar, o reencontro com a família, amigos e amigas, o primeiro abraço ao meu querido Rigoletto (o cão), o sono até mais tarde, os bailes, os filmes de cobóis, os dramas musicais indianos, e todos os pequenos grandes nadas que ocupavam a nossa vida de estudantes em férias. Uma vida tão divertida, apesar da guerra que se estava a tornar uma coisa tão terrivelmente séria.» em Moçambique para a mãe se lembrar como foi.

O dormitório - durante anos o ruído metálico das argolas das pesadas cortinas, abertas  ao som da sineta e da oração do acordar, pelas 6.30 da manhã, perseguiu-me.