sexta-feira, agosto 26, 2011

Tempo dos Milagres: A Coisa

Extracto da minha crónica deste mês no nosso BOAS NOTÍCIAS:
«Eram batatas-doces, esqueci-me delas, e quando reparei estavam a despontar. Já não serviam para comer, mas estavam tão vivas, que não consegui deitá-las no lixo. Tempos depois, coloquei-as num pequeno alguidar de plástico. Cresciam simplesmente sobre si próprias. Estavam cheias de raminhos, folhinhas, coisas de plantas. Borrifei-as e reagiram escandalosamente àquelas gotas de água, derramando-se por tentáculos eufóricos. Coloquei-as, finalmente, em evidência, sobre uma prateleira e espalhei um bocado de terra sobre elas, que já estavam a espreguiçar-se para todos os lados, procurando abraçar candeeiros e torneiras. “Isto está fora de controlo” – disse ele. – “Um dia entro em casa e estás estrangulada, diante do lava-loiças.”
[...] para ler o resto:
O Tempo dos Milagres: A Coisa

quarta-feira, agosto 24, 2011

estes vivos que já morreram

e entram nas nossas vidas erguendo-se do pó das histórias velhas que os livros velhos conservam. Sou eu que os procuro, ou são eles que me encontram? Só sei que me chamam. Com vozes claras anunciam as suas vidas que ressaltam como imagens febris de um album de família muito gasto de tanto se olhar para ele.
Nessas alturas, sou mais deles do que de mim própria, seja o que for que signifique «eu».

domingo, agosto 21, 2011

De que se fala quando se fala de relíquias?

«A turba enlouquecida despejava directamente dos cálices de ouro para o chão, sem cuidar que pisavam aos pés, o próprio corpo de Cristo, que lhes importava tão pouco como os crânios dos apóstolos São João e Santo André, que, arrancados dos sarcófagos, foram usados como bolas nos jogos dos soldados. Em São João de Latrão, o Santa Santorum onde estavam os corpos de São Pedro e São Paulo foi saqueado. Jamais se vira nada assim em terra cristã.» Mas de que se fala quando se fala de relíquias?


O culto das relíquias – partes do corpo de um santo ou seus objectos pessoais – é comum a várias religiões, nomeadamente o budismo e várias denominações cristãs, nomeadamente o catolicismo. No geral, as religiões da Reforma contestam-nas violentamente. Este culto, que vem desde os primórdios do cristianismo, atingiu o seu esplendor ao longo da Idade Media, sobretudo após a tomada e a destruição brutal de Constantinopla, pelos soldados cristãos da IV Cruzada (1204). A partir de então, foram «encontrados» e vendidos, para além das relíquias de santos, retalhos das fraldas de Jesus, garrafinhas com água do rio em que Ele foi baptizado, ampolas com gotas do leite da Virgem, saquinhos com o barro utilizado na criação do primeiro homem, Adão, chegando a ser contabilizados em centenas os pregos da Vera Cruz. O negócio das relíquias tomaria assim proporções alucinantes, com algumas peças a atingir valores incalculáveis.


Em pleno século XIX um principe das nossas letras, Eça de Queiroz (1845-1900), publica a Relíquia (1887), pequena obra-prima de humor e crítica social, tão raro nas nossas letras. O universo português, conservador e beato, e de uma asfixiante estupidez, emerge destas págínas intemporais...
Recordo Eça de Queiroz nesta entrevista de Carlos Loures.

terça-feira, agosto 09, 2011

O nariz das suecas

Um ano em Malmo, longas incursões pelo Báltico, e o maior denominador que o André trouxe daquele povo foi o nariz. Esqueçam a história dos sueco serem todos altos, loiros, brancos. A grande marca que os distingue de todos os outros povos é o nariz, explicou. E nós bebíamos as suas palavras, acompanhadas de um vinho soberbo e um jantar muito português, filetes de sardinha panados e uma porção de acompanhamentos.
- O nariz??
- É lindo. É absolutamente perfeito.
Feita pelo André, a descrição do nariz das suecas - «reparei mais no delas, mas vai dar ao mesmo para eles, é um molde genético daquele povo» - é todo um compêndio de antropologia filosófica pós moderna. E enquanto comíamos, bebíamos, e nos atropelávamos a falar e ríamos à gargalhada, ele prosseguia:
- O nariz das suecas é como o nariz dos pretos. Esperem, não acabei! Só que afila. E projecta-se para o lado com duas narinas perfeitas, muito alinhadas em cima da cara. E  é direito, mas termina numa bolinha, e essa bolinha é ligeiramente arrebitada.
Olhou para um de nós, com atenção, e escolheu o holandês:
- Tu não tens nariz. Tens uma quilha no meio da cara. Nós temos uma cana, mais ou menos direita, e eis tudo. 
- Fizeste amigos, amigas?
- Nem um único. Eles são impermeáveis a novas amizades, desde o fim da escola primária. É uma sociedade de solidões e muros, os velhos não convivem com os jovens, as crianças só convivem com crianças. Por decreto lei, todos se tratam por tu, mas ninguém consegue partilhar intimidade, a não ser na cena do álcool.
Outra coisa que nos contou sobre as suecas: ao fim de dezoito, vinte anos anos de casamento, os filhos «vão à vida deles».
- E os maridos?
- Também os põem a andar. Precisam de tempo para elas próprias, o que implica espaço para si mesmas.
- Sem mais nem porquê?
- Exactamente.  As suecas são tramadas. Terríveis. Não podem ver um sueco sentado. Estão sempre a dar ordens, vai fazer isto, vai fazer aquilo.
- E eles?
- São muito bem mandados.
- Então e a história multirracial, com os africanos? Como pode funcionar?
- Muito bem, porque os pretos, em casa, não mexem uma palha, ficam muito bem sentadinhos a ver televisão, e dão ordens: traz-me uma cerveja, mulher.
- E elas?
- Vão a correr buscar a cerveja deles, claro. Respeitam profundamente estas demonstrações de virilidade.

sábado, agosto 06, 2011

A dona Joaquina das Zebras do Combro

Um destes dias, estimulei-a a recolher as suas receitas e publicar um livro de cozinha com os seus deliciosos pratos tão tradicionais. Escusou-se. As receitas, disse ela, não são suas para as poder divulgar como se lhe pertencessem. «E o seu toque? E as suas inovações?». Abanou a cabeça. Convicta, sem falsa modéstia, declarou que o «toque» não é traduzivel em palavras e não justifica que ponha em seu nome um património que é de todos. Não houve como fazê-la mudar de ideias. Já o filho, Henrique, tentara em vão. Até porque, na sua forma alquímica de misturar ingredientes da terra, fazendo-os passar pelo fogo, aromatizando-os com  perfumes do campo e temperando sempre a olho e por instinto, há sempre mudanças subtis. Como o humor.
Então falámos da vida. Da vida dela. E esta mulher inteligentíssima, que teve as letras a que podia almejar uma menina que vinha do campo servir para cidade, refere a forma como eram olhados todos os que desembarcavam na cidade, recém-chegados do Portugal profundo:
- Era como se, e por isso, fossemos estúpidos. E sendo mulher, ainda era pior. Ninguém acreditava que pudessemos ter inteligência e raciocínio. Era tão estranho, tão estranho, que ainda hoje eu sinto espanto pela maneira como nos olhavam.
Por essas e por outras, a menina donzela que a dona Joaquina era então, nunca quis servir em casas particulares. Porque, para além de acharem estúpidas todas as pessoas que vinham do campo para a cidade, e as mulheres mais ainda, achavam que as «criadas de servir» - como na época se designava o seu ofício - serviam para tudo, até para desenfastiar patrões. Por mais honesta que fosse a conduta de uns e de outros, nenhuma rapariga escava ao labelo que lhe colavam e que servia de mote e de riso quando, a serviçal despia a bata e ia de férias a casa.
Ainda hoje a dona Joaquina, mãos de ouro, cozinheira de excelência, mulher com uma inteligência acima da média, se espanta também com isso. Ouvi-la, é sempre uma lição.

sexta-feira, agosto 05, 2011

Portugal ou Texas? Inquisição ou pena de morte? Ou ambas?

Uma grande reportagem da RTP1 dava conta do calvário que sofrem duas mulheres que casaram uma com a outra, ao fim de anos de luta para o conseguirem. Casaram, é como quem diz. Foi no registo. E como toda a gente sabe, no registo não conta para a Igreja. Casais hetero só casados pelo registo nem sequer têm direito aos sacramentos. Portanto, vamos a deixar a Igreja de fora, e se a Igreja quiser ser honesta, fique de fora também. A César o que é de César.
Registado portanto e pelo civil esta união de facto, o mundo saudou a abertura que o país demonstrava ter na evolução das mentalidades locais. Elas estava radiantes. Mal sabiam no que se estavam a meter.A vitória pírrica obtida, mais atenção global que a coroou, conseguiu-lhes cadastro em todas as sacristias deste abençoado rincão. Uma tragédia.
Assim, a população logo que as detecta, tem podido persegui-las impunemente, descaradamente e sem quaisquer consequências. Já perderam vários empregos. Mudam constantemente de casa. Quando conseguem um lugar nas limpezas, ou nas caixas de um super-mercados, ou a servir às meses de uma tasca qualquer, correm-nas com a desculpa que a sua presença causa «falatórios» entre os colegas. Das casas que alugam, são sistematicamente corridas, porque os senhorios, pelos vistos, têm medo que o lesbianismo seja um virus que se pega, aliás como a homosexualidade em geral...
Infelizmente, a maior praga humana que existe é a estupidez, uma malformaçao parcialmente genética, parcialmente adquirida. E pega-se, sim senhor. Só por muita estupidez é que em nome da moral (qual delas?) se tem vindo a acossar estas mulheres como animais perigosos. Em bolandas pelo norte do País, a RTP foi encontrá-las a passar fome, numa situação aflitiva,  assustadora. E tão humilhante para todos nós.
Vivemos numa sociedade que, mal ou bem, convive serenamente com pedófilos - não consta que os mesmos sejam corridos das suas casas. Aliás, grande parte dos pedófilos é aparentemente «normal». Casam e procriam. Outros, vêm das fileiras do clero. E em nome do perdão, foram ao longo de séculos (exacto, os arquivos históricos também registam a sua actividade...) «admoestados» quando muito. Em todo o caso, as vitimas eram ameaçadas de excomunhão se os denunciassem fora da Igreja... que os mantinha no mesmo posto e à mercê das suas próprias pulsões sem freio.
Vivemos numa sociedade onde o ranking de violência domestica sobre as mulheres e as crianças é aterrador. Já era, só que agora consta dos autos. Sabemos mais ou menos quantas morrem por ano. Este, que ainda não acabou, já vai na 40ª assassinada. Mas nem os padres nos púlpitos, nem as beatas nas suas rondas pavorosas de intriga e má lingua, se assanham contra eles. É destino, é vontade de Deus? O facto é que não são corridos das suas casas, dos seus empregos, das suas freguesias.
Voltemos ao princípio. Duas mulheres amam-se. Andam de mão dada. Assumem-se como casal. O que temos nós a ver com isso? Honestamente, o que é que isso nos afecta?
Resposta estúpida, primária: ai, meu Deus que o mundo está perdido. Reacção, estúpida e primária: toca a destruí-las de todas as maneiras legais, ou nem por isso.
Mas afinal o que esconde esta reacção tão primitiva? Quem tem medo da diferença? Que diferença faz que as pessoas que se amam sejam do mesmos sexo, ou de sexos diferente, da mesma raça ou de raças diferentes, com diferença de idades, ou da mesma faixa etária, ou seja lá o que for que se afasta dessa aberração a que se chama a «normalidade»?
Deus castiga? Sério? Então deixemos ao Senhor o cuidado de executar essa tarefa. Mas já agora, encomendemos-Lhe outros demónios para exorcizar e castigar severamente. O da maldade, o da intriga, o da inveja, o da calúnia. E peçamos-Lhe ardentemente que nos livre do pior de todos. O que goza com o sofrimento alheio, considerando-se na sua estúpida e incomensurável arrogância, detentor único da verdade.
Os puros, escolham lá  o raio da pedra para lhes atirar.
Conhecem algum? Onde está, onde está, onde está?

quinta-feira, agosto 04, 2011

Toda a felicidade é pouca para curar as feridas do mundo

Começo as manhãs, quase invariavelmente, a juntar a minha assinatura a petições várias. Pela libertação da mulher condenada à morte por lapidação num país islâmico. Pela libertação de animais em cativeiro, condenados a serem esfolados vivos para gente sem alma se sobrir com as suas peles estampadas de uivos de agonia. Para travar pedófilos. Salvar gorilas órfãos. Para acabar com os meninos soldados. Com o tráfico de órgãos. Com a escravatura humana. Com o extermínio de espécies animais, vegetais, pela gula de multinacionais acéfalas cujo fito é um apenas, o lucro a qualquer preço. Para defender países e suas populações. Para travar genocídios. E tanto mais.
Não tenho coragem de apagar essas mensagens que me chegam de instituições que vim a admirar pelos seus esforços incríveis, e que me (nos) dão regularmente conta dos seus resultados. Mas abrir o email é tropeçar nestas cruzadas e sentir-me tão impotente.
Uma assinatura, é quase só o que posso dar. Isso, e passar para o mural do FB com a esperança de que outras assinaturas se juntem às nossas. Ás vezes, muitas vezes, há vitórias. A soma de muitas centenas de milhares de vozes, trava processos, inflecte destinos, altera legislações. Gota a gota, assinatura a assinatura. Somos uma tribo de uma aldeia global. Não nos conhecemos. Temos pés na Terra, mas encontramos-nos a navegar por mundos virtuais. Aí, interferimos. Fazemos a diferença. E mesmo que não fizessemos, como ficar indiferente?
Mas dói. Dói sempre.
A consciência desta dor, não pode porém ensombrar a nossa alegria. Toda a felicidade é pouca para curar as feridas do mundo.
Aqui ficam alguns endereços que já entraram nos meus quotidianos: PETA: THE PETION SITE,
AVAAZ - THE WORLD IN ACTION