terça-feira, abril 26, 2016

'Os livros são feitos de palavras vivas que se deixam capturar'

Desde o principio, quando comecei a escrevê-lo, até ao momento em que, das minhas mãos o livro passou para as do editor, soube que não era uma obra fácil. Em primeiro lugar porque, após três biografias bem sucedidas, saltava para o romance de uma forma «abrupta». E que romance!! Para começar, a fórmula narrativa que enforma o género não se encontra aqui aplicada na sua grelha mais singela. Os tempos são múltiplos, porque num simultâneo 'agora' onde dois se encontram, há múltiplos caminhos que levam a muitos 'antes'. Os próprios locais divergem. Quem é ela? Quem é ele? O que está a acontecer? Que realidades convergem e divergem nesta peregrinação que uma mulher inicia, despedindo-se do homem que ama, com beijos e histórias enroladas umas nas outras?




Ora, e para mim, os livros não se escrevem a pensar no «leitor» ou na «leitora». Os livros são feitos de palavras vivas que se deixam capturar. Palavras que são a música, a moldura e o molde onde tecemos as vidas da Vida, em suas infinitas mutações. Hoje, mais uma recensão veio encher-me de alegria. Um também escritor, Guilherme Valadão, diz:

«[...] Na breve cerimónia de apresentação de ‘Xerazade’, ouvi o Samuel Pimenta dizer algumas das suas passagens numa toada poética como se se dirigisse a uma multidão de jovens apaixonados, perdida na consciência de cada escritor desiludido. Tudo à minha volta se silenciou naquele instante e senti uma urgência arrebatadora de me entregar àquelas páginas como se me tivessem feito falta durante toda a minha vida!
Xerazade» é um poema vivo de um'«A Última Noite» que nos emociona e nos transporta para as latitudes mais misteriosas e inesperadas da alma humana. Na intimidade daqueles diálogos há mistérios que ninguém ainda decifrou, fechados nas arcas do tempo em torres que brilham longe demais para serem nossas.
«Amor, amo-te até ao fim da memória». «Eu sei. É por isso que tens de me deixar ir».«Xerazade» não é, simplesmente, um livro. Um livro excelente, aliás, nas suas páginas carregadas de um misticismo antigo, de interrogações tão velhas como a memória dos deuses de um Olimpo que o tempo não mudou. É muito mais um cúmplice do espírito rebelde e inquieto que sentimos em certos momentos da nossa vida.Uma tapeçaria, um colar de pérolas, um homem, uma mulher... num livro inesquecível![...]»

Em -  Guilherme Valadão's Reviews > Xerazade - a última noite

segunda-feira, abril 11, 2016

O "caso Dona Maria Adelaide" e a causa dos Sem-Abrigo

Eles eram irmãos. Numa noite de tempestade apanhámo-los a dormir no átrio do nosso prédio. Não tivemos coragem de os mandar embora, de modo que a situação foi-se prolongando. Durante um ou dois meses usaram aquela entrada como quarto de dormir e porto de abrigo. Na condição de não fazeram porcarias ali dentro. A certa altura, já mandavam vir connosco quando acendíamos a luz das escadas quer porque ainda estavam a dormir, quer porque se preparavam para fazê-lo. Mas chovia tanto, que nunca tínhamos coragem de os mandar embora. Embora fossem aldrabões, mal-educados, e ladrõezecos de bairro -- iam ao minipreço e por encomenda, surripiar bens de consumo que vendiam às velhotas do Bairro Alto. 

Um dia, perante o átrio inqualificavelmente sujo como se fosse uma latrina, corri os dois à vassourada. Estava tão indignada, tão furiosa, que eles fugiram mesmo. E acabou-se a parceria. Dois anos depois, um deles foi quase figura pública porque deu uma estalada numa socialite, e ela, com toda a razão, fez queixa e ele foi preso. Só lhe fez bem. Engordou um quilinhos, e durante algum tempo andou todo aprumado. 

Houve mais, em anos idos. Mas o último, foi em 2000 e picos. Estivera ligado a grupos extremistas, acabara por fugir e exilara-se na Holanda, correra Seca a Meca e tinha uma história de resistência de dores e abandonos, desde a infância, dessas que cortam o coração. Bem aprumado, irrepreensivelmente limpo e barbeado, com olhos que viram demais, entrou na nossa vida numa das nossas festa de aniversário. Ninguém conhecia ninguém, porque cada um foi convidando quem encontrava de onde resultou o grupo mais heterogéneo que se pode imaginar. Apareceram músicos, pintores, designers, amigos de várias nacionalidades, uma fadista/cantora em ascensão, de voz soberba. E este revolucionário desactivado, que em anos idos vivera num mausoléu do Alto de São João, onde também, ao que parece, os seus camaradas guardavam armas e munições. Penso que se vestia de viúva, quando entrava ou saia do cemitério.

Quando o conhecemos, dormia na cave de um prédio em construção, na companhia de uma gata. Lavava-se e à roupa, num fontanário. No Inverno, e para não ser roubado, chegava a vesti-la molhada. Arranjamos-lhe casa, já nem me lembro bem como, e praticamente mobilámo-la. Um dia, inventou um incêndio, que mais não foi que uns fogachos, para vir outra vez asilar junto de nós. Mandámos pintar a sua casa e arranjar os «estragos», e por fim, muito a contragosto, ao fim de um mês e tal, lá nos deixou em paz. A situação, ao longo destes anos, melhorou muito. Sobretudo porque recuperou a filha, holandesa, que não via há anos e que o recebeu de braços abertos e coração sem mágoas.

«Frio: Lisboa e Porto vão acolher sem-abrigo»
cortesia de Boas Noticias 


Pois surge agora uma oportunidade de poder dar alguns contributos a esta causa que abraço de coração, num melhor enquadramento. O acaso, se tal existe, pôs-me em contacto com o Dr. António Bento, muito sensível a estas mesmas áreas, e cujo trabalho é sobejamente reconhecido: é director de Psiquiatria Geral e Transcultural, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa ; do Grupo Psicoterapêutico Aberto, com 1062 doentes, dos quais quase 500 são sem-abrigo, migrantes e refugiados; de um Curso de Psiquiatria de Rua e Transcultural; de outro de “Psiquiatria Intersticial", ligada ao trabalho na rua com os sem-abrigo, complementar da psiquiatria tradicional que fazemos nos "silos" (consultas, internamentos, urgência); e muito mais. 

Conhecemo-nos através do meu grande amigo (e compadre) Carlos Poiares, vice-reitor da Universidade Lusófona, a propósito de um livro que publiquei há uns anos. De modo que quem nos juntou, por assim dizer, foi uma mulher que já morreu no século passado, mas continua muito viva. 'Maria Adelaide Coelho da Cunha «Doida não e não»! ' Este livro, que continua a ser regularmente utilizado nos CVs da Lusófona, é também um dos que o Dr. António Bento recomenda. Foi numa palestra sobre a «Vida dos Livros» que trocámos as primeiras impressões. Daqui surgiu o convite para eu integrar, a 5 de Julho, uma mesa onde voltaremos a falar «Caso D. Maria Adelaide» no âmbito dos seminários orientados por si, nomeadamente Anton Tchekov ('Enfermaria nº 6') e 'Ignorância-II. 

Maria Adelaide Coelho da Cunha


Desse evento, voltarei a falar. E de tudo o que lhe está subjacente. Porque é Causa Nossa. 

domingo, abril 03, 2016

Sim! Temos mais um cão! A Lasse.

A Lasse estava à minha espera na montra de uma loja de velharias/antiguidades e livros em segunda mão que calha serem quase todos novos. Muitos até aparecem nesta montra antes de saírem para o mercado. Por exemplo, ainda a minha Imperatriz Isabel de Portugal aguardava o dia de vir a lume, numa apresentação maravilhosa na Casa dos Bicos, e já havia exemplares (dois) à venda nesta loja de bairro. Ainda Moçambique para a Mãe se lembrar como foi estava em vésperas de lançamento na Bicaense, e já marcava presença, em destaque, na mesma montra. Eu sabia destas movimentações por alguém muito próximo que, com  grandes mostras de indignação, me fazia chegar fotos desta «pouca vergonha». Mas que fazer, se, em termos de edição, os livros não são (ainda) numerados? Por outro lado, estas actividades demonstram que são objectos de desejo de modo que, e com desvios aparentemente tão residuais, é melhor deixar andar. 




Lolita meets Lasse

Porém há encontros do destino, e a Lasse, genuinamente old and used e  vintage a olhar-me da montra, tinha de entrar na nossa vida. É um Puro Loiça, como lhe chamou a minha querida amiga Inês de Sousa Real. E fica muito bem com os outros habitantes de quatro patas que invadiram os nossos corações, casa e vidas.  


Timóteo meets Lasse
Maia não quer saber