Eles eram irmãos. Numa
noite de tempestade apanhámo-los a dormir no átrio do nosso prédio. Não tivemos
coragem de os mandar embora, de modo que a situação foi-se prolongando. Durante
um ou dois meses usaram aquela entrada como quarto de dormir e porto de
abrigo. Na condição de não fazeram porcarias ali dentro. A certa altura, já mandavam vir connosco quando acendíamos a luz
das escadas quer porque ainda estavam a dormir, quer porque se preparavam para
fazê-lo. Mas chovia tanto, que nunca tínhamos coragem de os mandar embora.
Embora fossem aldrabões, mal-educados, e ladrõezecos de bairro -- iam ao
minipreço e por encomenda, surripiar bens de consumo que vendiam às velhotas do
Bairro Alto.
Um dia, perante o átrio inqualificavelmente sujo como se fosse uma
latrina, corri os dois à vassourada. Estava tão indignada, tão furiosa, que eles
fugiram mesmo. E acabou-se a parceria. Dois anos depois, um deles foi quase figura pública porque deu uma estalada numa socialite, e ela, com toda a razão, fez queixa e ele foi preso. Só lhe fez bem. Engordou um quilinhos, e durante algum tempo andou todo aprumado.
Houve mais, em anos idos. Mas o último, foi em 2000 e picos. Estivera ligado a grupos extremistas, acabara por fugir e exilara-se na
Holanda, correra Seca a Meca e tinha uma história de resistência de dores e abandonos, desde a infância, dessas que cortam o coração. Bem aprumado, irrepreensivelmente limpo e barbeado, com olhos que viram demais, entrou na nossa vida numa das nossas festa de aniversário. Ninguém
conhecia ninguém, porque cada um foi convidando quem encontrava de onde
resultou o grupo mais heterogéneo que se pode imaginar. Apareceram
músicos, pintores, designers, amigos de várias nacionalidades, uma
fadista/cantora em ascensão, de voz soberba. E este revolucionário desactivado,
que em anos idos vivera num mausoléu do Alto de São João, onde
também, ao que parece, os seus camaradas guardavam armas e munições. Penso que se vestia de viúva,
quando entrava ou saia do cemitério.
Quando o conhecemos, dormia na cave de um prédio em construção, na companhia de uma gata. Lavava-se e à roupa,
num fontanário. No Inverno, e para não ser roubado, chegava a vesti-la molhada.
Arranjamos-lhe casa, já nem me lembro bem como, e praticamente mobilámo-la. Um
dia, inventou um incêndio, que mais não foi que uns fogachos, para vir outra vez
asilar junto de nós. Mandámos pintar a sua casa e arranjar os «estragos», e
por fim, muito a contragosto, ao fim de um mês e tal, lá nos deixou em paz. A situação, ao longo destes anos,
melhorou muito. Sobretudo porque recuperou a filha, holandesa, que
não via há anos e que o recebeu de braços abertos e coração sem mágoas.
«Frio: Lisboa e Porto vão acolher sem-abrigo» cortesia de Boas Noticias |
Pois surge agora uma oportunidade de
poder dar alguns contributos a esta causa que abraço de coração, num melhor enquadramento. O acaso, se tal existe, pôs-me em contacto com o Dr. António Bento, muito sensível a estas mesmas áreas, e cujo trabalho é sobejamente reconhecido: é director
de Psiquiatria Geral e Transcultural, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de
Lisboa ; do Grupo Psicoterapêutico Aberto, com 1062 doentes, dos quais quase 500
são sem-abrigo, migrantes e refugiados; de um Curso de Psiquiatria de Rua
e Transcultural; de outro de “Psiquiatria Intersticial", ligada ao
trabalho na rua com os sem-abrigo, complementar da psiquiatria tradicional que
fazemos nos "silos" (consultas, internamentos, urgência); e muito
mais.
Conhecemo-nos através do meu grande amigo (e compadre) Carlos Poiares, vice-reitor da Universidade Lusófona, a propósito de
um livro que publiquei há uns anos. De
modo que quem nos juntou, por assim dizer, foi uma mulher que já morreu no
século passado, mas continua muito viva. 'Maria Adelaide Coelho da Cunha
«Doida não e não»! ' Este livro, que continua a ser regularmente utilizado
nos CVs da Lusófona, é também um dos que o Dr. António Bento recomenda. Foi
numa palestra sobre a «Vida dos Livros» que trocámos as primeiras impressões. Daqui surgiu o convite
para eu integrar, a 5 de Julho, uma mesa onde voltaremos a falar «Caso D. Maria
Adelaide» no âmbito dos seminários orientados por si, nomeadamente Anton
Tchekov ('Enfermaria nº 6') e 'Ignorância-II.
Maria Adelaide Coelho da Cunha |
Desse evento, voltarei a falar. E de tudo o que lhe está subjacente. Porque é Causa Nossa.
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