terça-feira, fevereiro 28, 2012

Ma cousine, si tu savais comme tu me manques

Isso era o que ele pensava, mas não lho dizia. Pelo menos desta maneira, embora a tratasse por «minha mui querida e amada mulher» em todas as cartas. Ás vezes, chegava a adoecer e os próprios médicos diziam que quando voltasse aos braços da amantíssima rainha sua esposa, todos os seus males, gota inclusive, desapareceriam. Mas o que ele lhe escrevia era muito diferente: havia tanta coisa a tratar, antes de poder pensar em regressos. Que coisas? Oh, o costume. Os negócios da fé, a guerra em várias frentes, as fragilidades do império sem unidade religiosa...
Era sempre a mesma desculpa. Ainda por cima, era verdadeira.

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Eu, Cláudio

Há regressos que se saúdam com a maior das alegrias. Como este livro que a Bertrand reeditou em boa hora. Lê, relê-se, de um folêgo. Apetece riscá-lo, sublinhar muitas das suas passagens, para saborear mais tarde. Leva-nos para dentro da Roma imperial da decadência, com a serenidade e a objectividade do grande historiador, e fá-lo através de uma das mais gentis figuras que a época produziu no seio da família reinante. O pobre Cláudio. O coxo, o gago, o tolo detestado pelos seus, a começar pela própria mãe, a quem as deformidades físicas horrorizam. Afinal, o culto, o inteligente Cláudio que poucos conseguem ver e que numa prodigiosa sucessão de crimes e acidentes vai ascender ao único lugar onde não queria estar. O império.

Num relato cerebral e extremamente bem fundamentado, somos conduzidos por entre o sopro das intrigas, o hálito do veneno, e a brutalidade do punhal, da espada, do chicote, enquanto assistimos à hecatombe que produz novos Césares e os diviniza. Todos os meios são lícitos. Por exemplo, o culto dos deuses e todos os rituais religiosos são excelentes instrumentos de manipulação. Mesmo os mais sagrados como os perpetrados pelas vestais. Através da Boa Deusa, a confissão permitia dominar a consciência das pecadoras e transformá-las em instrumentos perfeitos, levando-as até a matar para aliviar a sua consciência ignorando que esses crimes eram outros tantos serviços prestados às estratégias do poder.

Colocando-os à frente dos exércitos, atiravam-se para as fronteiras do império os heróis indesejados, aos quais e sem qualquer escrúpulo, se tirava a vida se acaso a sua glória ensombrasse quem manda. Através da intriga, da adulação, do medo, da corrupção, do assassínio, perpetrados de acordo com um plano inteligente e implacável, servido por uma total ausência de escrúpulos: eis os alicerces do Império, em cuja origem encontramos a mão firme de uma mulher. A mulher de César. Lívia.
A estrada da glória, que leva a Roma, é um cemitério de famílias. E o seu palácio um covil de feras.
Atento, o intelectual bobo da cesareia família, tudo vê, tudo anota e sobre tudo reflecte.
Admirável.
Robert Grave (2012) -- Eu, Cláudio, Lisboa, Bertrand Editora.


O autor, Robert Graves (1895-1985), é, em língua inglesa, um dos grandes vultos das letras do século XX. Magnífico e controverso poeta, mitógrafo, critico, editor, romancista, tradutor, permanece um peso pesado das letras e da cultura a que deu contributos imorredouros. Entre varias das suas obras, tenho cá em casa, gastos de tanto os manusear, os dois volumes da sua Mitologia Grega, ainda hoje uma referência académica, mas tão maravilhosamente acessíveis, como tudo o que escreve, numa torrencial pluralidade de registos. Para saber mais:
http://europeanhistory.about.com/od/poetrysongsofww1/a/biorgraves.htm

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

A Floresta dos lilazes

O caminho de volta da floresta dos lilazes deve cumprir-se num silêncio imaculado sobre o dorso de uma tartaruga que o cumpre passo a passo, na medida do nem mais, nem menos.
É uma estrada que cruza a solidão de meses sem nome de tempo, de horas sem medida que as defina, e de instantes que pesam eternidades, quando o destino já está tão próximo que é preciso fechar os olhos e algemar vontade para não ceder ao desejo de uma prematura e desafortunada libertação.
Da floresta dos lilazes deve regressar-se com todo o cuidado para podermos voltar sempre que nos chame.

créditos imagem: Malmequer



terça-feira, fevereiro 21, 2012

Lua Vaga II


- Conta-me de novo - pediu ele.
- É só o que te disse. Não me lembro de mais nada.
- Mesmo assim.

Estávamos a nadar num mar  tão transparente que se via a areia dourada no fundo. Não havia peixes, não havia nada. Só nós, naquelas águas profundíssimas. A certa altura pensei que voávamos. Depois percebi que estávamos a voltar à superfície.

- Diz-me mais.
- Não houve mais. Espera, lembro-me de ver o mar cá de cima como se estivesse num avião. Duas coisas me impressionaram de novo. A sua incrível transparência e a sua inconcebível profundidade.
- E nós?
- Ali não havia nós. Desculpa, é só um sonho a mudar, como as formas das nuvens.

Depois percebeu que estava, de novo, junto do Lago. Arrefecera muito, o silêncio do amanhecer encheu-se de sons, e o céu cor de anil foi cruzado pelo voo das garças. «Se ao menos soubesse qual o portal que cruzo quando te encontro» - pensou, o rosto dele a dissolver-se nos primeiros raios da manhã.

Do outro lado do tempo, ele pousou a arma na mesa baixa ao seu lado. Esperara toda a noite uma fera que nunca chegara aparecer. Era um monstro que assombrava a região. Dizia-se que comia gente. Dizia-se que era um homem que se transformava em lobo por causa de uma maldição. «Adormeci outra vez» - pensou. E tentou reter um pouco mais o calor das imagens dela, a diluirem-se no  sopro glacial do amanhecer.  Sorriu. Se dissesse a alguém que a mulher que amava vivia dentro da sua cabeça e só lhe aparecia em sonhos, não faltaria quem dissesse que a floresta o tinha efeitiçado. Depois, talvez lhe fizessem coisas piores.

Mas aqueles não eram tempos de partilhar segredos. Que sabe? Talvez um dia chegasse a descobrir onde ela vivia, se é que viviam no mesmo espaço e  no mesmo tempo.

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O que aconteceu às revistas-cor-rosa?

A minha alma está parva. O último reduto do lalalande nacional, o paradigma da perpétua silly season, o recreio dos humildes e dos menos humildes, e dos não humildes de todo, está, também ele, tarjado de negro. O escaparate das revistas no quisque o Principe Real é um murro: a tragédia da actriz que desceu ao inferno da droga. O abuso e a violência de um rapaz que não conheço (mas deve ser porque não tenho televisão, e há anos e anos que não papo espectáculos da «vida real»). A tentativa de suicídio da filha de uma cantora célebre que morreu na flor da idade, depois de uma vida de dores inconfessadas. A ruína de um actor, e o fim de um império da moda. Eis as manchetes.  Todas, todas sem excepção, falam de dramas: mortes, abusos, violências, ruínas, fim traumático de relações, suicídios ou tentativas de, acidentes esventrados até às suas próprias autópsias. E coroam este horror com imagens em capa de gente com o ar desolado de quem está na iminência de um despejo.

A coisa vem detrás. Durante anos, uma actriz de cinema, teatro e televisão, devorada literalmente por esta última, prestou-se a uma carnificina publica que a mostrou e esgotou enquanto figura pública, ilustrando-a exaustiva e sistemáticamente, no palco de uma vida pessoal feita de dramas, tragédias, dores e psicoses. Por causa da idade, das separações, das re-ligações e novas separações. Por causa dos problemas com filhos. Por causa das separações. E da vontade de ter novos filhos. E do drama do fim dos romances. E de já não poder ter filhos por causa do drama da menopausa. E era, e é uma grande actriz, só que já não se nota. Por acaso, o drama verdadeiro é esse de que ninguém fala.

Eu penso que as pessoas que fazem essas revistas devem ter todas enlouquecido.
Ou então anda toda a gente a pensar que pode pegar na receita do Correio da Manhã (em Portugal um dos diários mais bem sucedidos em termos de vendas e implantação) e adaptá-la ao seu pequeno mundo. Mas os que gostam do género, preferem, naturalmente, o original. Para quê ficar com a cópia?

Recapitulando. As revistas cor-de-rosa deviam ser, obrigatoriamente, cor-de-rosa. Choque, sim, com laivos de lilás, e outras cores do arco-íris. Nunca com formato de uma carreta funerária empurrada por séquitos de gatos-pingados. Mas pelos vistos a psicose colectiva inundou aquele universo e não houve tempo para tomar vacinas.

Mas pensem, por amor da santinha. Para quem tem o telejornal, que importa uma mini reportagem de tragédia humana e circunscrita com fotografias desactualizadas ao fim de meia hora - é que existe uma coisa chamada internet? E que modelos de pessoas são esses que nasceram em estúdio, cresceram durante umas semanas diante de todos, num exercício de voyarismo consensual e nem sequer inocente, e cujas vidas agora se pretende transformar em paradigma? É nisto que desembocam as revistas cor-de-rosa de Portugal? Valha-nos santo Entrudo de bigodes e peruca azul.

A minha alma está para lá de parva. 

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Eu te amo!!!

Jamais me arrependo de dizer eu te amo, mas pesam-me as vezes em que poderia tê-lo dito mais, ou com mais ênfase é só o descobri quando era muito tarde . Ontem, uma amiga muito próxima que está muito longe, enviou-me uma mensagem neste sentido. Aqueceu-me do frio da alma, um dia depois da despedida de alguém tão novo, que mal conheci, mas que era muito querido a pessoas de quem gosto muito.

Por amor, comungámos essa tristeza.

E é assim que nos vêm à memória coisas que calámos, por medo, por hábito, por timidez, por distração? Por mil e um motivos que sejam, serão sempre menores quando chega a altura de querer escancarar o coração e as janelas e rebentar com todas as portas e todos os muros para gritar

Eu te amo!!!

e já não sabemos se, esteja ele onde estiver, o nosso amor nos está a ouvir.

PS: telefonem, escrevam, cantem à pessoa, às pessoas todas que vos merecem afecto, estas três palavras mágicas de que o mundo tão desesperadamente precisa. Não importa se estão perto, longe, nem qual o laço de afecto que vos une. Basta essa centelha mágica que identificamos como sintonia para mudar o painel da nossa vida de um cinzento baço ou de um beje palerma, para uma euforia de cores e formas de desenho de criança feliz.

sexta-feira, fevereiro 10, 2012

Os crimes contra a inocência

têm de ter nova moldura penal. Uma petição está em curso - e a imprensa ficou alerta. É possivel mudar mentalidades? Sim. Mas é preciso começar por mudar e aplicar as leis. Até agora, a pedofilia é escondida debaixo do tapete, e quando chega à barra do tribunal, os juízes que nem se devem recordar que foram, uma vez, crianças, tratam com particular bonomia os predadores pedófilos. Esses que até Cristo dizia que deviam amarrar uma mó de moinho ao pescoço e atirarem-se ao mar (sim, procure nos Evangelhos... está lá.)

Penas para este horror? São mesmo penas. Tipo pluma. E quase sempre suspensas. Com admoestações ligeiras, e obrigatoriedade de passagem pela policia da zona. Ou então, gere-se o escândalo, quando as coisas chegam a este ponto, num tom de «isto é tudo uma brincadeira» e exige-se aos adultos que outrora foram crianças violadas, uma agenda «credível». Como as crianças de há 15 anos (depois prescreve, nao é verdade?) não tinham nem secretárias, nem agendas, diz-se que mentem, porque as datas das violações não coincidem com as datas dos supostos violadores. E o assunto fica arrumado.


O Público, ediçao de 10 de Fevereiro de 2012, traz noticia sobre a petição em curso. Um apelo: assinem, se estiverem de acordo.

quarta-feira, fevereiro 08, 2012

O passageiro dos sonhos

Ele escrevia-lhe poemas que atirava para o espaço virtual onde dois eram de novo um, e um era o passageiro dos sonhos, e algumas palavras perdiam-se e outras cresciam desmesuramente e tomavam corpo na paisagem do desacordar.
E mandava-lhe beijos com outras frases que se distraiam na viagem e ficavam em outros mundos a acordar outros amantes até chegar o tempo de regressarem com seu gume adamantino e seu coraçao de diamante puro e incendiado de luz.

Porque as palavras têm raizes e vontade própria, como eles muito bem sabiam.
E voltam sempre, sempre, sempre, sempre a quem as enviou e esta é uma lei universal.

Ah se todos soubessem ... como ousariam profanar o Verbo em ocultas cavernas de desejos mortais?

O longo pescoço branco de Ana Bolena

Nunca a corte de Henrique VIII foi tão alegre como nos dias em que Ana de Bolena, presa na Torre de Londres, aguarda a sua execução. Festas e banquetes sucedem-se ao som de uma música interminável que não deixa ninguem dormir e traz em sobressalto as populações riberinhas. A alegria não toca todos da mesma maneira. Os próprios cortesãos forçam sorrisos que mal escondem o espanto e o choque e os embaixadores disfarçam o desprezo. Só o rei está exultante o que é mais aterrador.

Na antecamara do túmulo, a mulher pela qual o rei afrontou o papa e criou a sua própria igreja, está reduzida a nada. A bela que levou o soberano inglês a repudiar a esposa legitima, infanta de Castela e irmã do poderoso imperador Carlos V, vive os últimos dias de vida numa masmorra ... e prepara o pescoço para a espada do carrasco, experimentado roupa até se decidir pelo vestido de damasco cinzento cuja gola podia ser removida, tornando visivel o seu longo e fino pescoço branco. E escolhendo penteados, até se decidir pela trança sobre a nuca para não estorvar a espada.
Será decapitada a 18 de Maio de 1536.

Mas o dia passa e... nada. Em vão o condestável a tenta confortar pelo adiamento porque a rainha de Inglaterra está para lá de todo conforto, e rebenta subitamente num ataque de riso histérico. «Vi tanta gente morrer» - escreve o condestável - «mas nunca ninguem que saudasse a morte com tamanha alegria e semelhante prazer».
O resto do dia, Ana Bolena leva-o a falar com as damas que a acompanham, recordando a sua vida passada e projectando a sua fama futura:
- Passarei à história com o cognome de A Rainha sem cabeça - disse-lhes. E voltou a explodir numa gargalhada sem fim.

No dia 19 de Maio de 1536, Ana Bolena enfrentou com coragem o carrasco vindo de Calais com a espada que ela exigira, em vez do machado, indigno de cortar um pescoço real. Nas suas últimas palavras do cadafalso erguido dentro da Torre de Londres, disse à reduzida assistência:
- Não vim aqui para falar, mas para morrer.
Depois isentou-se de todas as acusações de adultério, e repetiu que amava o rei. A seguir ajoelhou, pediu a uma das damas que a acompanhavam que lhe vedasse os olhos, e murmurou:

Oh God, have pity on my soul.


O carrasco foi gentil porque foi de uma imaculada eficácia.


Ulisses avisou-me: muitas querem falar mesmo que só queiramos ouvir uma.
É por isso que estas histórias transversais de personagens que cruzam o pano de fundo da história da minha rainha, se me impõem.
Ulisses disse-me para usar a espada e afastar as instrusas. Não consegui fazer isso com Ana Bolena. Com ela não.

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Um exercício a meio caminho entre a taxidermia e a mediunidade

Como se constrói uma biografia? A pergunta apanhou-me de surpresa, porque foi feita por uma criança. Explicar-lhe o mecanismo elaborado da pesquisa, reflexão e construção do texto seria o mesmo que tapar-lhe os ouvidos com cera. Então pensei nas histórias de terror e dei-lhe dois exemplos:

- Escrever a história de alguém que existiu mesmo é como pegarmos num corpo sem vida e restaurarmos a sua forma, pondo-lhe por fim um par de olhos de vidro. Brilhantes e vazios. Como algumas pessoas fazem com alguns animais. Ás vezes, se a técnica é muito bem aplicada, o animal parece quase vivo. Outras vezes... é tudo tão mal feito tudo que só apetece deitar para o lixo.
- Mas mesmo quando é bem feito o animal morto continua morto, só que está cheio de palha por dentro, é isso?
- É.
- Que nojo.
- Também acho.
- Hum. E a outra maneira?
- Gostas de histórias de terror?
- Pergunta tola - disse a minha interlocutora. - Que criança não gosta de histórias de terror?
- Então ouviste falar das feitiçeiras que se encontram nos quatro caminhos nas noites de lua cheia e chamam os mortos?
- Ui. É isso que tu fazes? És bruxa?
- Não, meu amor. Mas quando estou a escrever, e é lua cheia ou lua nova ou lua vaga, e quero contar a história de alguém que viveu mesmo, mergulho, tão fundo, tão fundo...
- No mar?
- Não, dentro de mim...
- Ah! E depois?
- Depois ando muito longe no tempo até  encontrar os  quatro caminhos cruzados. Aí sento-me, e medito mais ainda, e aguardo que elas cheguem.
- Quem?
- As memórias.
- E depois?
- Tiro um bocadinho de sangue do meu dedo mindinho, deito-o numa taça de cristal que levo sempre comigo, e deixo-as beber.
- E?
- Elas crescem, ficam com corpo de mulher ou com corpo de homem, e as suas vozes tornam-se mais nítidas, mais fortes, porque as suas recordações também crescem.
- E quando voltas, lembras-te de tudo o que elas te contaram?
- Bom... é assim...

A conversa foi longa e maravilhosa, e eu aprendi muito mais com a minha pequena interlocutora do que ela comigo embora ela se tivesse ido embora convencida do contrário. Também lhe podia ter falado de Ulisses que foi quem me explicou este caminho. Mas a verdade é que nada disto teria importância alguma se não mergulhasse, como também lhe exliquei, bem alimentada. Como? Estudando, lendo, procurando saber tudo o que é preciso saber sobre a vida e o tempo dessa pessoa que tento recriar.
O resto, o encontro mágico com as suas memórias, é uma espécie de prémio a coroar esse labor.

A imagem, decalcada de Ulisses interrogando a multidão dos mortos à entrada do Hades, é, obviamente, poética.
Afinal, uma biografia é sempre um exercicio a meio termo entre a taxidermia e a mediunidade.






Créditos imagem: «Picos de Europa»

sábado, fevereiro 04, 2012

Quando voltas, meu rei?

Ele escrevera-lhe a dizer que voltava, e enviara legados em seu nome para lhe transmitirem essa promessa palavra por palavra:

- Em breve, estaremos juntos. Volto ao reino, no ano que começa.
E o ano começou, e ela a sentir-se noiva, dava por si a sorrir sem dizer nada. Em Maio, uma carta desfez-lhe as ilusões. A leste, o Turco ameaçava a Hungria. Na Alemanha, os herejes dividiam o império. O rei, que estava na Flandres, invertia a marcha e embrenhava-se de novo pela Europa adentro.
- Para o próximo ano voltarei, minha muy cara e amada mulher. Assim Deus o queira.

Em Ávila dos Cavaleiros, a rainha não pronunciou uma palavra que, para a história, registasse o desalento que se apossou dela. Naquela terra antiquíssima, feita de granito, solidões e desmesuras, que importância tinham os sentimentos de uma mulher a morrer de saudades do marido? Ali, era a mão de Deus que esmagava as vontades efémeras dos homens tão insignificantes quando vistos do alto daquelas montanhas, dentro da cidade mais amuralhada da Europa, com as suas águas purissimas, o seu ar de gelo, a luz e as sombras, e a voz incansável de sinos e orações.
- Se Deus quiser - terá suspirado ela, pensando quanto tempo mais conseguiria suportar o fardo do poder.