domingo, janeiro 31, 2010

Mudar de ideias, ou once upon a book

Mudei de ideias sobre o e-livro. Na verdade, já leio muitas coisas directamente na net, e afinal o suporte da palavra tem sido muito diverso ao longo da história. Escrevemos na pedra, em tabuinhas de argila, sobre pergaminho ou papiro. Nem a forma foi sempre igual.
Afinal, o que importa, o que sempre importou, foi a palavra, essa dádiva dotada de mente, que transcende tempos e modos. O lamento da criança suméria, que há milhares de anos atrás se queixa num desperdício de argila, da severidade do professor, da dureza dos castigos físicos, e das horas infinitas que passa na escola, e de como o pai amaciou o coração áspero do mestre com presentes e refeições, não envelheceu um segundo. Os grafittis romanos não são muito diferentes no conteúdo dos grafittis que com que nos deparamos em todas as cidades. Recados de amor, mensagens de ódio, calúnias, provocações, alertas, graças com ou sem piada, avisos.

Pronto, mudei de ideias, sim. Estou pronta para o e-livro. Vou comprar o suporte, quando inevitavelmente baixarem os seus preços.
Ah! Mas esse suporte não dispensa, de forma alguma, o outro. O livro em formato físico, que ocupa espaço, que tem forma, cheiro, peso, marcas, que se desfolha e também envelheçe, mas nunca tanto como nós.
Não conseguiria viver sem eles.
créditos imagem:Fixeiros Suméria, Wikipedia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Sumerian_MS2272_2400BC.jpg

quinta-feira, janeiro 07, 2010

«Alta sociedade:os maiores escândalos de sempre»

A jornalista Vera Moura publicou, sob este antetítulo, uma reportagem de investigação intitulada «As Histórias que Todos Queriam Esquecer» na revista SÁBADO de 30/12/2009 (pp. 34-40) Mergulhando nas páginas esquecidas e ocultas de vários escandalos ao longo do século XX, Vera Moura recorda «o homossexual assassinado que Salazar tentou esconder», o milionário Carlos Burnay cuja vida jovem e promissora terminou com uma bala na testa no desfecho de uma festa alucinada no seu palacete de Santana, em Cascais. Dado o «prestígio» do defunto e, de forma geral, o de todos os envolvidos, Salazar mandou arquivas o caso, e este crime ficou impune.
Segue-se a história de uma aristocrata portuguesa, Margarida Vitória, a marquesa açoreana de Jácome Correia, que lançou um livro de memórias intitulado Amores da Cadela "Pura", «no rescaldo da revolução do 25 de Abril» em que revelou aguns dos aspectos mais perturbantes e traumáticos da sua vida privada. Inclusivé o internamento forçado numa clínica psiquiatrica Suiça, com o aval da mãe e do marido. O inferno das clínicas de saude mental, onde as herdeiras rebeldas das grandes fortunas eram tradicionalmente aprisionadas, abriu-lhe as portas: choques eléctricos, assédio sexual por parte dos psiquiatras... o relato contém muito mais, desde descrições de orgias no deserto quanto viveu no Cairo, abortos clandestinos, e a história do seu grande amor com Vitorino Nemésio, homem casado. A família tentou abafar o escandalo das memórias «chocantíssimas», comprando edições do que se transformou em livro de culto.
Seguem-se os famosos ballets rose, histórias de pedofilia onde se envolveram grandes figuras do regime de Salazar, de que imprensa internacional daria ampla cobertura - «Caça à lolita no jardim do ministro» -, mas que em Portugal foi abafado. Mais ainda, os pedófilos não sofreram qualquer sanção, embora um deles, Correia de Oliveira, «tradicionalista, catolico fervoroso e devoto do presidente do Conselho» tivesse sido afastado do poder por Marcelo Caetano, na sequência deste escandalo que, «oficialmente» nunca aconteceu.
Finalmente, Vera Moura recorda, a terminar, o caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha, «num hospício depois de fugir com o motorista».
Um trabalho excelente de investigação e cruzamento de fontes, algumas das quais ainda vivas, feito com a maior seriedade e muito bem escrito, mais uma brecha na lenda nacional de que no tempo de Salazar «não havia poucas vergonhas». É um facto: podia-se ir para a cadeia, e pagava-se multa por dar um beijo publicamente no namorado, ou por andar de mãos dadas. Mas a fronteira era muito nitida: tudo dependia era de quem fazia o quê. Ao «mais alto nível» as regras eram completamente outras.