quarta-feira, fevereiro 24, 2016

«Quando uma mulher se vira ao homem perde-lhe o respeito»

A minha colaboradora tomava-me conta da casa, do meu Bernardo que apenas começara a gatinhar, acolhia e dava o almoço e o lanche ao André e à Marta, dez e nove anos, cozinhava muito bem, e todos nós gostávamos imensíssimo dela. Até o Zé, que tinha um feitio muito torcido, e chamava a todas as nossas colaboradoras as «Pafúncias».

A nossa Lúcia. Olhos prodigiosamente verdes, cabelo curto, louro, muito branca, corpo roliço, pimenta na língua, riso pronto e uma energia descomunal. Fora mãe recentemente e levava o filho para o trabalho, com o que todos ganhávamos, a começar pela criança dela que ainda mamava. Teria uns vinte e poucos, eu chegara aos 30. Fora nossa vizinha nos tempos breves em que vivemos no bairro da Bica, e eu ''requisitei-a' para o novo lar, em São Mamede. Jornalista, três filhos, (o Paulo chegou no ano seguinte), um marido também jornalista e artista plástico, uma vida cheia de afazeres, que teria sido de mim, de nós, sem ela? Cozinhava, passava, limpava, cantava, punha a música em altos berros quando não estávamos em casa claro, ou então pediu aos homens da garagem em baixo para lhe tocaram os discos da sua predilecção. E eles babavam por ela.

A Lúcia. Às vezes ia fazer uma perninha de dança nas matinés do Clube das Palmeiras, ao Príncipe Real, onde o marido, um belo dia, a esperou de tocaia, e, trazendo-a de sopetão para casa pregou-lhe a sova da vida que a deixou de cama quase uma semana. Sem assistência médica. Teve medo, o cobardolas, de a levar ao hospital. Por motivos óbvios...

Eu só soube disto mais tarde. Doida de preocupação e com o lar de pantanas, dois dias de faltas ao jornal (era uma revista, Espaço T Magazine de bela memória), soube finalmente o que se passara. Entretanto, a irmã ou uma amiga substituíram-na. Quando regressou, eu e ela tivemos uma conversa sobre o que ainda não se chamava «violência doméstica», porque o assunto, não rotulado, remetia para o facto em vigor desde a Bíblia: desde o fundo dos tempos, havia mulheres que apanhavam sovas dos maridos e outras não, eis tudo.

Ora a irmã dela, que também alinhava nos bailaricos, quando o marido - irmão do marido da minha Lúcia - se preparou para aplicar o método em vigor, saltou para cima da cama, candeeirinho de mesa de cabeceira em punho, pé de bronze maciço, e, aos gritos, para que toda a vizinhança ficasse a par, disse-lhe que se ele achava que ela era como a panhonha da sua própria irmã que comia e calava, a estúpida, que se pusesse a pau, porque ia levar nos cornos com aquele candeeiro, e se não lhos partisse imediatamente, ela ia esperar que ele adormecesse para lhe acabar com as tosses. Num assomo de bom senso, braços abertos em modo de paz e afastando-se prudentemente da cama, ele retorquiu:

-- Não será necessário chegarmos a esse ponto.



Esta história tinha antecedentes na pessoa da mãe de ambas. Minhota, matriarca numa família como tantas, moura de trabalho e um rancho de filhos para cuidar, carregava a sina de, volta não volta, levar a tareia da praxe que o marido, uns anos mais velho, lhe aplicava porque sim. Ela, comia e calava. Até ao dia em que, metendo-se no pinhal afora, para ir à venda comprar pão e mais umas coisas, as duas filhas mais velhas sempre com ela, foi abordada por um homem que, saltando-lhe ao caminho, lhe pediu com muita mansidão e bons modos, uma codeazinha de pão. Era um cadastrado evadido e cheio de fome, que a policia procurava há umas semanas.

Ora acontece que o patriarca da família costumava subir ao pinheiro mais alto para perscrutar o ir e vir da esposa amada e observou o encontro. Assim, mal esta entrou em casa atirou-se a ela. Mas nesse dia, o vento soprava de outra maneira. E esta, transfigurada de ódio, se virou a ele, aplicando-lhe um correctivo monumental, sem parar sequer quando o viu caído no chão. A minha Lúcia e a irmã descreveram-me a cena surreal. A mãe de dentes cerrados e olhos a fuzilar, saltava a pés juntos em cima do seu homem., enquanto os filhos gritavam a frase que costumavam gritar nessas circunstancias, mas ao contrário:

Óoooo Mãezinhaaaa não mate o Paizinhooooo!!!

Muitos anos depois, já casadas e mães, as filhas perguntaram-lhe porque razão, tendo ela a força que tinha, se sujeitara a tantos  anos de tareias. E a matriarca respondera:

- Quando uma mulher se vira ao homem perde-lhe o respeito. E quando uma mulher perde o respeito ao homem, perde-lhe o amor. 

A partir de então, nunca mais ninguém bateu em ninguém. Ora esta história deu-me sempre que pensar, como me deu que pensar a reacção tão diferente, das duas irmãs, perante o impulso tão semelhante dos dois irmãos, seus respectivos maridos. Ontem contei-a, num debate na Universidade Lusófona, a convite do vice-reitor e grande amigo Carlos Poiares, na companhia de dois belos oradores, a socióloga, especialista em violência doméstica e deputada Elza Pais e Augusto Cima, padre, frade, sociólogo, filólogo e especialista em saúde pública. A sessão, no auditório Armando Gebuza, correu tão bem que tendo começado pelas 18.30 eram 20.00 e muitas e ainda lá estávamos. Não foi a fome que pôs fim ao encontro. Foi a agenda da própria sala que tinha outro evento logo a seguir. 




quarta-feira, fevereiro 10, 2016

A noiva do rei enlouqueceu de vez

Nem ele é rei, nem ela foi jamais a sua noiva. Porém, há muito anos, meteu-se-lhe na cabeça que ia casar com o herdeiro da coroa portuguesa, ainda o senhor era solteiro. E desatou a persegui-lo sem clemência, insultando as companhias femininas com quem ele estivesse, e aparecendo-lhe nos mais inesperados locais e países. E eu com isto? Soube da história, pesquisei melhor, confirmei-a junto de quem de direito, e publiquei-a no jornal Independente, algures nos primeiros anos da década de 90. 
Devo dizer que, e como jornalista, este trabalho é dos que mais me orgulho. Não pelo que descobri, mas pelo que não escrevi: o nome da envolvida no disparate de um historial de perseguições implacáveis, que chegaram a tal ponto que D. Duarte já entrava no aeroporto da Portela por portas laterais, usando de muitos outros subterfúgios para conseguir alguma paz nos seus quotidianos e poupar as pessoas com quem se relacionava a situações muito desagradáveis. A ponto de num célebre baile em Queens, NY, onde ela apareceu de sopetão, os seguranças do evento de gala terem sido forçados a contê-la «numa salinha com sofás e uma pilha de revistas» onde a mantiveram fechada até ele sair. 
Com este e outros detalhes saborosos, confirmados pelo próprio D. Duarte e por mais fontes (cheguei a telefonar para Nova Iorque por causa da cena do baile e outras), escrevi o artigo e combinei pelo exclusivo um preço muito bom, na época em que um/uma jornalista com créditos firmados podia ganhar muito bem. Ora acontece que neste interim eu tinha ficado subitamente sem emprego (outra história que vale a pena, um dia, ser contada); e acontece que esse furo e o dinheiro que eu pedi por ele - e que foi aceite sem hesitação - me davam muitíssimo jeito. Mas o director do jornal queria, naturalmente, o nome da stalker que, imagine-se, era psicóloga clínica. Ora eu não tenho, nem tinha, o chamado killer instinct, e a única coisa que me passava pela cabeça era o inferno em que se ia transformar a vida daquela infeliz, que, apesar de tudo, não estava a colocar a segurança do país em causa, nem nada do género.
Por isso, disse que não avançava com essa informação, mas que compreendia que o Independente, nessas circunstâncias, não me comprasse o artigo. O director pediu-me, então, a morada ou o número de telefone da senhora de modo para a mandar fotografar, deixando-me fora do embróglio. Voltei a recusar. Seria autora moral... A história, felizmente, era boa e valia por si e tinha acima de tudo D. Duarte a confirmá-la. Portanto, e acrescentando dados de outras perseguições a outras figuras públicas, o artigo fez capa, pagaram-me o que tinha pedido e todos ficaram contentes.
Menos a psicóloga (com quem eu falara previamente ao telefone, no decorrer da investigação) que passou a telefonar para minha casa dizer aos meus filhos a péssima pessoa e a vergonha de jornalista que eu era. Até ao dia em que fui eu que atendi e o assunto morreu ali, no final deste singelo diálogo:
- Drª X, se a senhora tem alguma coisa a ver com a pessoa que refiro no artigo, vá de joelhos a Fátima de quem é tão devota, agradecer aos céus ter dado de caras com a jornalista mais tótó do universo, que, para poupar uma criatura que não conheço de lado nenhum, se recusou fornecer pistas sobre a sua pessoa. Entretanto, desampare-me a loja porque também tenho os meus limites. E estou a atingi-los.
Porque é que este episódio, com duas décadas, saltou agora para os meus quotidianos a ponto de vir parar a estes Diários do Irreal? Porque me cruzei com ela há poucos meses. Andava a pregar a Boa Nova e a falar de Jesus. Insistente,tresloucada, arrogantíssima, pobre criatura. As pessoas que estavam comigo ainda disseram, 'coitada, até é bem relacionada - amiga do dr. João Jardim, e de alguém da Casa Real...' Perguntei se não seria psicóloga... era, segundo os vizinhos. Aparentemente, porém, já não exercia. Avancei com o nome - e era a própria. Pasmei com aquilo que pensei ser o fecho de abóbada de um episódio tão marginal na minha vida, quando há poucas semanas soube o resto. A senhora acabara de ser posta na rua. Não pagava rendas sabe-se lá desde quando. Mas o pior foi o que se encontrou no apartamento. Gatos!!! Montanhas de gatos. Um cenário dantesco, conta quem viu. Para os felinos, foi a sorte grande pois uma grande parte deles foi logo acolhida. Os outros, foram alimentados pela Sandra Marques que ia vê-los todos os dias, até todos estarem entregues.
E ela? Sei lá, sabemos lá. Uma noiva fantasmagórica, uma casa de horrores, uma vida trágica. Que ficção tão real.