domingo, janeiro 29, 2012

Uma caixa para o bicho-monstro

Começavam por coisa nenhuma e acabavam bruscamente. Uma espécie de tsunamis
emocionais que deixavam a minha pequena amiga – na época com cinco anos –
extenuada e a mãe dela sem um pingo de energia. Eram cíclicos, avassaladores e
incontroláveis. À falta de melhor, chamava-se-lhes os "ataques de fúria" da
Martinha, que de resto era e continua a ser uma menina com muito feitio. Mas a
criança explicava:– Desta vez não sou eu. É o bicho, mãe. É um bicho
monstro. Sobe por mim acima e eu fico desta maneira.
[... ]
segue:
Boas Notícias - Tempo dos milagres: Uma caixa para o monstro

quarta-feira, janeiro 25, 2012

Carne trémula

Somos un sueno imposible que busca la noche
Para olvidarse sus sombras del mundo y de todo
Somos en nuestra quimera doliente y querida
Dos hojas que el viento punto en el otono
Somos dos seres en uno que amando se mueren
Para guardar en secreto lo mucho que quieren
Pero que importa la vida con esta separacion
Somos dos gotas de llanto en una cancion
Nada mas, eso somos, nada mas.

Porque ninguém canta a paixão como Chavela Vargas e ninguém a filma como Almodóvar.

O regresso do rei

Ela recebeu a notícia do seu regresso ao reino num alvoroço de noiva. Podia ser mais uma daquelas notícias que tanta expectativa criavam e que depois, por imperativos de Deus, se dilatavam até sabe-se lá quando. Só que agora havia datas, propósitos mais firmes e  sinais íntimos que o coração lhe confirmava. Por isso, a exultação da rainha era tão patente aos olhos de todos.

- Meus filhos, ides conhecer o vosso Pai - disse então aos infantes que eram pequenos demais para perceber a razão de tamanha alegria. Para eles, o pai era uma espécie de deus, tão inacessível como um santo do altar, e tão perigoso como um daqueles arcanjos armado com lanças e espadas de fogo a defender as portas do paraíso.

Mas entretanto, havia a viagem ao seu encontro. E essa ia ser uma viagem longa, e de festa. Coisas que qualquer criança entende.

segunda-feira, janeiro 23, 2012

Os escrúpulos de alma de Henrique VIII

Um extracto.
[...]
A questão arrastava-se oficialmente desde 1528, quando Henrique VIII começara a pressionar o papa para este lhe conceder o divórcio, mas o problema começara antes, na Primavera de 1527, quando o rei de Inglaterra começou a alegar que vinte anos atrás fora praticamente obrigado a casar com infanta espanhola, viúva do seu irmão, a quem sucedera no trono. Agora, tanto tempo depois, o rei de Inglaterra «sentia escrúpulos» por esta união, que para alívio da alma precisava de dissolver.

Lavada em lágrimas, Catarina ouviu esta arenga num misto de indignação, desgosto e vergonha, limitando-se declarar ao marido que enquanto vivesse se consideraria como «a verdadeira esposa legal do meu rei e meu senhor» – conforme escreveria depois ao seu sobrinho Carlos V quando a questão extravasou fronteiras.

Por essa altura, Henrique já pedira oficialmente ao santo padre que lhe anulasse urgentemente o seu casamento. Mas Clemente VII, que acabara de se instalar em Orvieto depois de meses de reclusão no castelo de Sant’angelo, não tinha a menor vontade de se incompatibilizar de novo com Carlos V, que lhe causava agora um medo irreprimível. O imperador era senhor de várias possessões em Itália, onde permanecia o seu poderoso exército, e Henrique VIII era rei de um reino muito distante, sem ligação aos Estados italianos. É verdade que prometia ajuda e dinheiro aos cofres da Santa Sé. Mas estas e outras promessas, subscritas pelos monarcas da Santa Liga, apenas tinham valido ao papa sete meses de uma deplorável prisão, no cerne de Roma saqueada e violada. Assim, e tratando os enviados do monarca inglês com toda a solicitude, Clemente VII invocara a gravidade do negócio, pedindo «paciência e tempo» ao impaciente soberano.

A resposta do santo padre enfureceu o rei de Inglaterra, tão «cego» que estava pelos amores de «uma Ana Bolena» – palavras de Prudencio de Sandoval – que «perdeu o juizo e razão de cristão» e «de abismo em abismo, até despenhar-se no mais profundo», negou a fé católica, «repudiando a rainha dona Catarina sua mulher, tia do imperador e infanta de Castela que segundo a opiniao de muitos era uma santa». [i] Não terão pesado apenas os amores, que muito peso tiveram. Catarina, com quarenta anos, jamais iria produzir o herdeiro masculino que Henrique VIII tanto desejava. A única solução era livrar-se daquela mulher que em tempos o subjugara com a sua autoridade e que agora apenas o aborrecia, para alcançar a descendência no ventre tão jovem da sua amada Ana Bolena.
[...]


[i] Sandoval, Historia de la Vida y Hechos del Emperador Carlos V, I parte, Lib. XVI, Cap. xxv p. 892.

[...]

domingo, janeiro 22, 2012

encontros do desencontro

Ele chegava de noite, com passos de fera e um respirar de anjo, para que ninguém nem mesmo ela o pressentisse, e deixava-lhe um sinal da sua presença que se confundia com os vasos de begónias fora do lugar onde sempre tinham estado na varanda que se oferecia ao sol da manhã.

Outras vezes eram formas aleatórias desenhadas por pedras marinhas a apontar na direcção da praia, como se um bando de miúdos as tivessem largado pelos pátios interiores da casa, num jogo cujas regras permaneciam indecifráveis tanto mais que a casa não tinha crianças desde que a última se fora embora, há tanto tempo, com a mochila às costas e a barba de três dias por fazer ao encontro de um destino que ficava à distância de dois mares e de uma infinidade de rios e cidades e campos e vilas e castelos e desertos a perder de vista.

Ás vezes, muito raramente, ele deixava o testemunho da palavra escrita pelos meios mais subtis que se podia imaginar, porque as suas mensagens de amor tanto podiam ser grafadas com pedaços de nuvens que preguiçosamente deslizavam pelo céu num AMO-TE que resistia ao vento da tarde e ao calor do sol de Abril, como em letras de canções românticas que parecia terem sido tecidas pelas aranhas em palavras feitas de fios orvalhados de diamantes a oscilar nos ramos das árvores ao despontar da madrugada.

No silêncio dos dias, ela recebia a dádiva de saber que ele aguardava o silêncio das noites para vir ter com ela mesmo que nunca se vissem ou pudessem encontrar porque era assim que as coisas deviam acontecer desta vez.


sexta-feira, janeiro 20, 2012

Fim de testes quimicos em animais de laboratório!!!!

No mundo inteiro, há mais de cem milhões de animais enjaulados submetidos a testes e experiências, torturados e mortos. Agora a boa notícia: Humane Society International/Europe (HSI) conseguiu uma vitória histórica pela mudança consagrada na lei que irá salvar desse destino centenas de milhares de cães, coelhos e outros roedores, com a proibição de testes químicos, letais e terrivelmente dolorosos. Na Europa.

Estamos todos de parabéns. Mesmo os que acham que «animal» não vale o esforço destas campanhas. Vale sim. Valeu. É mais um passo gigantesco nas conquistas que valem realmente a pena.

quinta-feira, janeiro 19, 2012

Manhã, tão bonita manhã

E um dos filmes mais belos da minha vida. Orfeu Negro.
Marcel Camus e Vinicius de Moraes ao volante do magnífico guião. E um batalhão de deuses e deusas de corpos espêndidos a dar vida, pelos morros e favelas da Cidade Maravilhosa, à lenda grega. O cantor que desce aos infernos para resgatar a sua amada Euridice a quem uma serpente cortou o fio da vida. Em troca, Orfeu prometeu a Hades não olhar para trás, enquanto não saisse dos seus domínios. E tudo isto durante o carnaval do Rio em 1959.
Nota: meio século depois do filme ter sido feito, os dois actores principais, Breno Mello e Marpessa Dawn,  morreram com intervalo de poucas semanas um dos outros. Não quer dizer nada, mas é tão bonito.

quarta-feira, janeiro 18, 2012

Give me a reason

and sleep well.

Reis sóis

e suas damas luas. Na galáxia do poder, a eles cabia o brilho por direito própria a elas o reflexo daquele esplendor. Mas seria mesmo assim? Vai-se a ver, quanta miséria. Porque é que os velhos bons tempos nunca resistem a um exame mais detalhado? Muda-se o palco, vestem-se os actores de roupas novas ou velhas, ricas ou andrajosas. Diferentes. Muda-se o som. O cheiro. As formas de buscar e usufruir prazer e de sofrer ou infligir dor.

Mas os sentimentos, e as emoções que os enformam, em sua paleta primordial, permanecem as mesmas. Os amantes verdadeiros são iguais em todos os tempos. E as mães de verdade que esgadanham o rosto da morte para lhes arrancarem os filhos dos braços, copiam os mesmos gestos, partilham o mesmo esplendor sagrado da vida, e as mesmas lágrimas de fogo. Desde que o mundo é mundo quem ama, ou quem odeia, segue os mesmos trilhos.

Igualmente, permanece inalterável a mesma lama coberta de flores apodrecidas, onde se afundam anseios de glória vã comprada a preço de sangue vivo. Na vasta terra dos sonhos passados e futuros, este reino é o ventre dos oceanos putrefactos onde reis de espadas reinam sobre infinitas multidões de mortos com seus olhos mortos, com seus corações mortos, com seus peitos vazios de onde saem gritos de  proclamando a necessidade imperiosa de matar porque sim.

Em nome da paz que nunca, mas nunca, nenhum deles perseguiu.

terça-feira, janeiro 17, 2012

no meu coraçao há mundos paralelos

e eu amo pessoas que nunca vi. Gente que não é do meu espaço-tempo e nem sabe o amor que lhe tenho. Como poderia contar as suas vidas se não fosse assim? Amo mesmo os que detesto, porque incomodam ou desgostam ou traem os outros de quem me ocupo, mas são parte do seu todo. Para mim, ainda vivem, nessas narrativas que de outra forma seriam vazias de densidade e tão limitadas na sua geografia de acção e emoção e conteúdos.

Amo pessoas que vi uma vez só e nem lhes conheço o nome ou se o soube, esqueci-me dele. Homens e mulheres que reconheci à primeira vista, no fulgor do olhar que trocámos e nos breves diálogos que a memória, mesmo quando falha detalhes, eterniza na essência.

Amo sempre para sempre a quem amo, e desse Amor retiro pretéritos sejam eles perfeitos ou imperfeitos.

Amo o amor mesmo quando me esqueço de que esse é o caminho. E depois tu vens e lembras-me como é. Tu lembras-me sempre como é. Por pensamentos e por palavras que são obras de secreto labor.

segunda-feira, janeiro 16, 2012

Pobre Catarina

que nem vem muito ao caso, mas tropeça nele a cada momento, porque a sua vida e a vida da minha rainha são troncos da mesma raiz.

Pobre Catarina. Repudiada, mas tão forte e digna na sua coragem. Sem coroa, sem trono, sem a presença do rei, sem certezas quanto ao futuro e muito menos quanto ao futuro da criança assustada que lhe chama mãe e que é sua filha. E que alimenta no peito infantil as víboras do ódio contra a mulher cujo riso, lá longe na corte, atravessa os ares e fura as paredes da fortaleza remota onde se encontram as duas. Mais afastadas do rei do que presas à ordem dele. Em todo caso, ambas entrincheiradas na fé cega e num orgulho todo feito de honra.

Os rios de sangue que brotam da cabeça da menina, nunca conseguirão lavar tanto medo. Se ela soubesse que já foi forjada a espada que vai decepar o pescoço branco da rival da sua mãe, dormiria tão melhor. É uma espada belíssima. Tem lâmina de Toledo e punho francês. O homem que a vai empunhar  nem conhece a sacrificada. Mas também não vem ao caso.

domingo, janeiro 15, 2012

Cartas de amor


Já que não te vejo amor e faz tanto tempo escreve-me, escreve-me todos os dias, responde às cartas que te mando, diz-me dos teus anseios e alegrias e desgostos, conta-me tudo de ti,  como dormes o que comes, da tua saúde que Deus guarde, com quem falas, onde pousas e como és recebido e tudo e tudo e tudo e acima de tudo, quando chegas?,

Se fosse hoje, a minha rainha escreveria assim ao seu rei.

Mas como esta história se passa há muitos séculos, sob o manto de uma ritualidade sufocante e obsessiva, ela trata-o por Majestade e por despedida escreve 

beijo as mãos de vossa majestade

assinando la Reyna. Acima de tudo, na sua correspondência, o que se destaca vigorosamente é o desejo expresso em todas as cartas e em todos os tons, pelo regresso do rei. Por si própria - diz ela -  mas também pelo bem do reino que tanto precisa dele. Por outras palavras, tudo quanto lhe importa é saber:

Quando voltas, amor, quando voltas para nós?Eu e os nossos filhos aguardamos-te com toda a saudade do mundo.

Como se os filhos se importassem com esse pai que nem conhecem e nunca estava presente enquanto eles cresciam...

domingo, janeiro 08, 2012

Lua vaga


Olhares cruzados, mas seria o mesmo luar? o de hoje não o de ontem.
De madrugada, os javalis vêm beber ao lago. Quem os ouve, quem os sente? Muitos dormem. Muitos nunca chegam a acordar. Não os invejo nem temo. É em outros que procuro inspiração. Os de mente vigilante. Os do coração em paz. Dito assim, amor, parece tão fácil. Mas não é. Ocultas e insones marés guiam nossos passos e também se diz que é a lua que as comanda.

sábado, janeiro 07, 2012

Om Namah Shivaya

Acabo de me juntar, por palavras, à manifestação promovida pelo PAN a favor da ética na política e contra a venda da EDP, num texto que enviei a Paulo Borges para ser lido durante o evento e que já se encontra publicado blogue do Partido pelos Animais e pela Natureza. Na impossibilidade de estar presente, é esse o meu contributo de coração.
Por aqui e em contagem decrescente, os dias são luminosos e as noites magníficas. Sonhos sonhos e mais sonhos, uns a deixar memória, outros a diluir-se nos primeiros momentos do acordar.

E a minha rainha a chegar perto do fim da sua vida.
E eu a chegar perto do fim do próximo livro. Que alivio será escrever a palavra FIM nesta biografia.

quarta-feira, janeiro 04, 2012

2012 versão solar



se houve chuva de estrelas, não as vi cair.
o sol continua a brilhar durante o dia todo.
à noite um passeio breve junto do lago, tão misterioso e tão escuro. As estrelas que andam pelo céu parecem firmemente pregadas no veludo negro do firmamento. Gosto de as situar no desenho perfeito das constelações.
quando estou longe daqui, é dos perfumes da serra e do mar e dos silèncios musicais que sinto mais falta.

segunda-feira, janeiro 02, 2012

2012 sessão inaugural




Como contas os dias? Pelo calendário gregoriano, pelo calendário maia, pelos batimentos cardíacos, pelas cruzes no papel da parede gasta, pelo relógio digital, pela memória de outros dias?

Oh, eu não conto essas coisa, disse ele. Os dias bebo-os e como-os. Deixo que se dissolvam na boca e na pele, mastigo-os segundo a segundo. E depois  embriago-me da vida que me trazem.

Dizes isso porque és louco, certo?, perguntou ela.

Claro. De outro modo, como poderia estar aqui a falar contigo, se tu não existes?

Ohoh! - o riso dela lembrava sinos de prata em pescoço de cabras selvagens - se fosse a ti não estava tão seguro. Além disso, combinámos que desta vez era eu que te inventava a ti.

Depois o mar cresceu muito depressa e engoliu-os aos dois.
E esta era uma história que se contava às crianças, nas noites sem lua, para lhes ensinar que coisa era  o medo. Acontece que a maior parte delas adormecia a rir.