sexta-feira, novembro 28, 2014

Em TOP 'Isabelle de Portugal, L'Impératrice'


Hoje, o mural da minha editora e tradutora francesa, Le Poisson Volant, estava cheio de sol, no dia escuro. Transcrevo:
«Bright Friday! "Isabelle de Portugal, l'Impératrice", de Manuela Gonzaga, réalise deux Top 100 cette semaine !!
- n°72 des biographies kindle en France-

n°19 des biographies kindle en Espagne
Merci à tous et bonne lecture !! »


Não é a primeira vez que este livro, na sua edição francesa, está nos TOP, o que me e nos deixa naturalmente muito felizes. O livro digital é um mundo avassalador de centenas de milhares de títulos. Que uma autora portuguesa, completamente desconhecida fora de portas, sem empurrões nem ajudas que não seja o testemunho silencioso e fiel da própria obra, entre directamente para estas listas é algo que está a deixar muita gente espantada. A começar por mim.

Entretanto quero sublinhar, mais uma vez, o trabalho exemplar de Laure Collet, cuja tradução é irrepreensível. E o empenho verdadeiramente entusiástico da (ainda!) pequena editora Le Poisson Volant que se apaixonou pela cultura portuguesa e mergulhou de cabeça em apostas como esta.

[Entretanto, e porque hoje é sexta. acabamos de mudamos de lugar em Espanha e passámos para 21.] 

 

domingo, novembro 23, 2014

Mutação

Está explicado. As dores de garganta, as protuberâncias a latejar - são as guelras a abrir caminho. Estou em mutação. Percebi isso a olhar pela janela da sala . Sob limoeiros, laranjeiras e cameleiras, deslizam cardumes de cavalas, a mordiscar nos canteiros das flores, sem flores, e nos resplandecentes tufos de hortelã pimenta, que, muito felizes com este abuso de águas, até já têm um certo ar de algas.

terça-feira, novembro 18, 2014

Tete, a cidade mais quente do mundo

Um dos prazeres que este meu último livro,  Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, me tem dado - para além do reencontro pessoal ou virtual com pessoas que nunca mais pensei voltar a ver - é o de confirmar que as minhas memórias suportadas pelo minucioso trabalho de pesquisa a que me entreguei, estão correctas. A minha história não é só minha. É de todos nós os que vivemos aqueles tempos - lá e cá. Porque Portugal hasteava bandeira do Minho a Timor, e porque estávamos no geral convictos de que essa era pátria nossa.
Sabíamos todos muito pouco.
Sabíamos todos quase nada.
Mas juntando o que se viveu ao que se sabe agora, o retrato é de guardar.
Fica um pequeno trecho da minha chegada à terra mais quente do mundo. Tete.


 
O batelão do Matundo, aqui transportando tropas entre Tete e Moatize. Ainda não fora construída a ponte sobre o rio Zambeze
 
«E então cheguei a Tete, provavelmente a cidade mais quente do mundo, o «cemitério de brancos» como em anos idos lhe chamavam, estradas rasgadas sobre o corpo vermelho da terra, ora enlameadas ora gretadas de secura e poeira, pomares e pequenas hortas em quase todos os jardins e quintais das casas dos colonos mais antigos, vida social intensa para a dimensão da cidade, tropa por todo o lado, guerra a apertar a malha desde as fronteiras da Província, e fui encontrar o meu irmão mais velho, desolado e magríssimo. Tinha vindo viver com o pai, e fora estudar no colégio Liceu de São José de Clunny onde o professor Gonzaga leccionava matemática e físico-química. Entretanto, o ano lectivo não correra da melhor maneira para o nosso irmão mais velho que carregava agora o ónus de um chumbo sem apelo, o qual lhe valia, quotidianamente, o indisfarçável mau humor do nosso pai. Em todo o caso, esse falhanço na sua vida estudantil tinha sido contrabalançado por grandes sucessos na vida social, com o Jó a consolidar, em Tete, amizades para a vida:
– Vais gostar – disse-me ele, no desconsolo dos primeiros dias da chegada, pois até a mãe e os irmãos se nos reunirem, foi praticamente a minha única companhia numa terra onde eu não conhecia ninguém. O pai estava muito ocupado e só o víamos às horas das refeições, onde se nos apresentava invariavelmente com a carranca dos maus momentos, embora me distinguisse com uma maior solicitude, pois eu saíra-me muito bem nos meus estudos:
– Oxalá te mantenhas assim.
Ao fim da tarde, nas ligeiras tréguas da canícula, dávamos pequenos passeios solitários, e falávamos de tudo e de nada, enquanto o meu irmão me punha a par dos detalhes locais, dizendo-me que em breve estaria completamente «enturmada» na nova cidade para onde a vida errática dos professores nossos pais nos conduzira. Era uma terra fascinante, quando aprendíamos a sincronizar a nossa respiração com o seu bafo insone sob o qual até os répteis enlanguesciam e que nem o imenso rio Zambeze, com as suas águas espessas, escuras e indolentes onde colónias de hipopótamos boiavam serenamente e crocodilos emergiam espadanando as águas , conseguia retemperar com as suas brisas de fim de dia.»


O nosso grupo de 5ª amo no colégio liceu de Tete com a irmã Maria


 


domingo, novembro 09, 2014

Muitas vozes, muitas vidas

Mais um extracto do meu próximo livro. MG



Pântano
Cortesia de Portal Badra


«Mas seríamos mesmo nós? É que agora já não sei de nada. Creio bem que trouxe, presas a mim, as histórias da beira do pântano que as canas sussurraram aos meus ouvidos. Eram muitas vozes, amor. Quase todas de mulheres. Eram muitas histórias, amor. E quase todas de desamores, desencontros, infortúnios. Senti tanta ansiedade, tanta tristeza, e nalguns casos tamanho remorso nestes relatos incompletos. E tanta força. Se calhar é por causa dessa força que tais histórias transcendem o tempo e o espaço e nos assombram a todos, sem darmos por isso, a ponto de tomarmos, por vezes, como nossas as memórias dos que já partiram.

De modo que já não sei se aquela emparedada, aquela fugitiva, aquele frade proscrito, aquela violada, aquele violador, aquela amorosa, aquele apaixonado, aquele rei sem trono, aquela rainha sem reino, cujas vozes me perseguem até aqui, são pedaços daquilo que fomos, tu e eu na nossa história de muitos, ou vidas distintas à procura de uma voz que dê eco aos seus relatos.»
Manuela Gonzaga, em Xerazade - a Última Noite, Lisboa, Bertrand, 2015. 

quarta-feira, novembro 05, 2014

Cinquentinha ficou rica e foi para a terra

Chamavam-lhe, e ainda lhe chamam, a Cinquentinha  e nós conhecemo-la porque era impossível viver no Bairro e sem nos cruzarmos, uma vez por outra, com a sua figura singular e descomunal. Vivia em frente da casa do  Gerry, que realmente a conhecia melhor, pois da janela do seu apartamento via-se perfeitamente a casa dela.

Debruçada à janela, com ademanes de menina que não se deu conta de que o tempo passara velozmente sobre os tempos da sua meninice, Cinquentinha piscava o olho ao Gerry, perguntava-lhe onde se tinha metido que há tanto tempo o não via, e se, desta vez, ia ficar por Lisboa tempo que bastasse. E, debruçada para a rua, mostrava-lhe as mamas, que nunca cobria por completo, fosse Verão fosse Inverno, não tanto por despudor, mas porque na verdade, era difícil escondê-las por completo. Eram uma mamas totémicas que ela se habituara a mostrar desde os tempos em que, seguramente mais reduzidas, as ostentavam aos seus clientes de cinquenta escudos.

Saraghina, a Cinquentinha de Frederico Fellini em 8 y 1/2 (1963)

O Gerry achava-lhe graça. E conhecia mais ou menos os seus ritmos - sempre os mesmos. Cinquentinha saía de casa ao fim da manhã, e em surtidas calmas, que o corpo já não lhe pedia correrias, ia carregando lixo do Bairro para o passeio em frente do seu prédio, e daí, finalmente, para o quarto andar onde habitava. Lixo, tal e qual. Sacos cheios de tralha, móveis partidos e abandonados às portas das casas, roupas velhas, pilhas de revistas ou jornais cheios de bichos, pneus de bicicletas, tachos rotos, o que lhe calhasse encontrar nos seus garimpos.

Ao fim de uns tempos, Cinquentinha iniciava uma actividade inversa. Começava a trazer todo o lixo que acumulara no apartamento exíguo e imundo - as vidraças de algumas janelas estava há anos transitoriamente substituídas por plásticos e da casa do Gerry via-se perfeitamente as entranhas da casa dela -, telefonava para a Câmara, e vinha para a rua vigiar com olhos de lince e língua afiada a  transfusão daquela porcaria toda para o carro camarário. Isto podia durar uma tarde inteira e era uma tarde de glória onde ela desempenhava o papel principal. E ai de alguém que tentasse, sequer espreitar o que havia nos sacos e nos montes de coisas que ela se estava a desfazer.

Ainda se oferecia pelas esquinas, sem grande convicção, mais, como chegou a dizer não me lembro a quem, porque tinha saudades de quando «trabalhava», do que para ganhar realmente a vida. Mas sem grandes resultados práticos. Provavelmente viveria de uma pensão exígua da Santa Casa, e o futuro augurava-se muito sombrio. Aliás, o presente da Cinquentinha já era desolador. Menos para ela, que apresentava sempre a mesma cara. Nem bem disposta, nem mal disposta, era a cara de quem se sente bem consigo mesma. E depois, nem sei quando, porque não estava no nosso horizonte diário e directo, desapareceu das ruas, sem que tivéssemos dado realmente pela sua falta.

Só há poucos dias, é que o Gerry de passagem por Lisboa - tem casas em vários países - nos actualizou em relação ao seu destino. Durante anos, Cinquentinha falara do dia em que iria voltar «â terra», sem que nenhum de nós fizesse  a menor ideia de que terra era a Cinquentinha. Mas o facto é que, sem mais nem ontem, a notificação chegara ao seu imundo apartamento lisboeta, dando-lhe conta de que passara a ser a única herdeira de um ramo da família de que provavelmente já nem ela saberia qual.

E assim, de um momento para o outro, a Cinquentinha encontrou-se rica. Rica mesmo. Cheia de propriedades e de títulos do tesouro, e contas a prazo e à ordem e sabe-se lá que mais. Ouvimos,  pasmámos. E rimos. E ficámos felizes por ela que já não vai morrer de frio, nem de fome, nem de necessidades. Na terra, para onde realmente e como sempre disse, voltou. Algures, na zona de Viseu.

 

segunda-feira, novembro 03, 2014

esse obscuro objecto de desejo

Não a vejo há muito tempo, mas jamais me esquecerei dela. Aliás, forneceu-me testemunhos para, pelo menos, dois grandes artigos na extinta Marie Claire portuguesa, uma maravilhosa revista que ainda hoje é referencial. Digo-o com conhecimento de causa. Das últimas vezes que estive na Biblioteca Nacional, vi várias pessoas a consultarem as edições - e por acaso algumas estavam com artigos meus em aberto. Sei que em estudos de género, nas faculdades por exemplo, se recorre à Marie Claire portuguesa, que tão boas provas deu pelo leque excepcional de jornalistas e colaboradores que reuniu. Amén.


Carole Bouquet e Angela Molina, em L. Buñuel (1977), Esse Obscuro Objecto de Desejo

Mas eu falava de uma amiga que não vejo há muitos anos. Houve duas histórias de amor marcantes na sua vida. Em ambas, contava-me ela a rir, eles apaixonaram-se por ela em circunstâncias muito particulares. «É tudo mentira, essa coisa das roupas, dos perfumes, dos cremes. Nunca estive tão feia. Da primeira, estava presa pela Frelimo, há dias, na Beira, Moçambique, sem saber o que me ia acontecer.». Desgrenhada, suja, assustada, viu passar aquele homem «magnífico» com quem trocou um olhar por entre as grades, pensando na sorte que tinha a pessoa que ele ia visitar e safar daquele inferno. Com efeito, era diplomata de outro país e estava precisamente a ultimar a libertação de uma conterrânea sua, cujo destino seria provavelmente o de ir para um «campo de reeducação pelo trabalho». Um inferno.

Ela, que ainda não tinha sido ainda visitada pelas autoridades portuguesas, já não tinha grandes dúvidas de que iria em breve para um desses «campos de reeducação». Provavelmente no Niassa ou em Tete. E foi então que soube que aquele homem com quem apenas trocara um olhar chamara a si, e à sua embaixada, a responsabilidade de a libertar. «O que é que ele viu em mim?» - contou-nos, anos depois, ainda estupefacta. Naquelas circunstâncias, era uma mulher de olhos grandes, castanhos, cabelos enovelados e apanhados de qualquer maneira, olheiras até ao pescoço, rosto macerado e as roupas num frangalho:

«Em dois dias tirou-me da cadeia e, provavelmente, salvou-me a vida». Evidentemente que se apaixonaram e amaram, mas a sua era uma história quase impossível. Apesar de tudo, ainda durou, com viagens intercontinentais a mitigar as saudades. O enredo, dava para um filme de Hollywood.

Tempos depois, voltara a Portugal, onde tinha já os pais, o filho bebé. E pusera-se a tratar do divórcio do primeiro marido que a deixara para trás com o argumento de que tu safas-te sempre e melhor do que eu. Dois anos mais tarde, desgrenhada e a pôr em ordem uma nova casa que acabara de alugar (no Alentejo), mais confortável do que o alojamento dos primeiros tempos, um bonitão bateu-lhe á porta. Recebeu-o de esfregona na mão, lenço na cabeça e má cara. Ele era filho dos donos da casa que ela alugara. Era médico. Solteiro. Cobiçadissimo por solteiras, casadas, viúvas e divorciadas: ao que consta. Trazia um recado dos pais dele - senhorios - para a inquilina. Ela nem se deu ao trabalho de o mandar entrar e quando ele se ofereceu para a ajudar, mandou-o dar uma curva.

E ele nunca mais a largou até casarem.

Foram felizes? Essa é toda uma outra história. Aqui, o que retenho é a forma como ela desvalorizava a obsessão que muitas mulheres tinham, e têm por uma suposta e inatingível perfeição, que hoje, aliás, atinge foros de loucura: «é a nossa personalidade que os fascina e o resto são tretas. Claro que perfumes e cremes e roupas é muito bom. Mas não é por aí.» - contou-me e recontou-me ela. Nesse tempo andava pelos quarentas, e era igual à actriz Susane Sarandon, de quem nunca tinha ouvido falar.

Acho que nunca a vi maquilhada, ou se vi foi muito pouco. Não perdia tempo em lojas, por falta de paciência, e o simples vocábulo «moda» dava-lhe para rir. Não fazia nada para chamar a atenção, sequer. Mas tinha um não sei o quê. Um amigo meu, muito mais novo do que ela, homossexual, disse-me pouco depois de a conhecer - «com uma mulher destas eu repensava as minhas preferências». Não acredito muito - porque o conheci bem. Mas tenho a certeza de que, naquela altura, ele estava a ser absolutamente sincero.

É que há algo de  obscuro, impalpável e imaterial no desejo que irrompe subitamente e se transforma em paixão ou adoração e, por vezes até, em amor. É de uma natureza demasiadamente volátil, extravagante, singular e maravilhosa que nenhuma essência consegue captar, nem nenhum vestido ou creme consegue capturar.

É que isto vem de dentro, e toca em todos os sentidos. É uma música. É uma grande, grande magia.