Chamavam-lhe, e ainda lhe chamam, a Cinquentinha e nós conhecemo-la porque era impossível viver no Bairro e sem nos cruzarmos, uma vez por outra, com a sua figura singular e descomunal. Vivia em frente da casa do Gerry, que realmente a conhecia melhor, pois da janela do seu apartamento via-se perfeitamente a casa dela.
Debruçada à janela, com ademanes de menina que não se deu conta de que o tempo passara velozmente sobre os tempos da sua meninice, Cinquentinha piscava o olho ao Gerry, perguntava-lhe onde se tinha metido que há tanto tempo o não via, e se, desta vez, ia ficar por Lisboa tempo que bastasse. E, debruçada para a rua, mostrava-lhe as mamas, que nunca cobria por completo, fosse Verão fosse Inverno, não tanto por despudor, mas porque na verdade, era difícil escondê-las por completo. Eram uma mamas totémicas que ela se habituara a mostrar desde os tempos em que, seguramente mais reduzidas, as ostentavam aos seus clientes de cinquenta escudos.
O Gerry achava-lhe graça. E conhecia mais ou menos os seus ritmos - sempre os mesmos. Cinquentinha saía de casa ao fim da manhã, e em surtidas calmas, que o corpo já não lhe pedia correrias, ia carregando lixo do Bairro para o passeio em frente do seu prédio, e daí, finalmente, para o quarto andar onde habitava. Lixo, tal e qual. Sacos cheios de tralha, móveis partidos e abandonados às portas das casas, roupas velhas, pilhas de revistas ou jornais cheios de bichos, pneus de bicicletas, tachos rotos, o que lhe calhasse encontrar nos seus garimpos.
Ao fim de uns tempos, Cinquentinha iniciava uma actividade inversa. Começava a trazer todo o lixo que acumulara no apartamento exíguo e imundo - as vidraças de algumas janelas estava há anos transitoriamente substituídas por plásticos e da casa do Gerry via-se perfeitamente as entranhas da casa dela -, telefonava para a Câmara, e vinha para a rua vigiar com olhos de lince e língua afiada a transfusão daquela porcaria toda para o carro camarário. Isto podia durar uma tarde inteira e era uma tarde de glória onde ela desempenhava o papel principal. E ai de alguém que tentasse, sequer espreitar o que havia nos sacos e nos montes de coisas que ela se estava a desfazer.
Ainda se oferecia pelas esquinas, sem grande convicção, mais, como chegou a dizer não me lembro a quem, porque tinha saudades de quando «trabalhava», do que para ganhar realmente a vida. Mas sem grandes resultados práticos. Provavelmente viveria de uma pensão exígua da Santa Casa, e o futuro augurava-se muito sombrio. Aliás, o presente da Cinquentinha já era desolador. Menos para ela, que apresentava sempre a mesma cara. Nem bem disposta, nem mal disposta, era a cara de quem se sente bem consigo mesma. E depois, nem sei quando, porque não estava no nosso horizonte diário e directo, desapareceu das ruas, sem que tivéssemos dado realmente pela sua falta.
Só há poucos dias, é que o Gerry de passagem por Lisboa - tem casas em vários países - nos actualizou em relação ao seu destino. Durante anos, Cinquentinha falara do dia em que iria voltar «â terra», sem que nenhum de nós fizesse a menor ideia de que terra era a Cinquentinha. Mas o facto é que, sem mais nem ontem, a notificação chegara ao seu imundo apartamento lisboeta, dando-lhe conta de que passara a ser a única herdeira de um ramo da família de que provavelmente já nem ela saberia qual.
E assim, de um momento para o outro, a Cinquentinha encontrou-se rica. Rica mesmo. Cheia de propriedades e de títulos do tesouro, e contas a prazo e à ordem e sabe-se lá que mais. Ouvimos, pasmámos. E rimos. E ficámos felizes por ela que já não vai morrer de frio, nem de fome, nem de necessidades. Na terra, para onde realmente e como sempre disse, voltou. Algures, na zona de Viseu.
Debruçada à janela, com ademanes de menina que não se deu conta de que o tempo passara velozmente sobre os tempos da sua meninice, Cinquentinha piscava o olho ao Gerry, perguntava-lhe onde se tinha metido que há tanto tempo o não via, e se, desta vez, ia ficar por Lisboa tempo que bastasse. E, debruçada para a rua, mostrava-lhe as mamas, que nunca cobria por completo, fosse Verão fosse Inverno, não tanto por despudor, mas porque na verdade, era difícil escondê-las por completo. Eram uma mamas totémicas que ela se habituara a mostrar desde os tempos em que, seguramente mais reduzidas, as ostentavam aos seus clientes de cinquenta escudos.
Saraghina, a Cinquentinha de Frederico Fellini em 8 y 1/2 (1963) |
O Gerry achava-lhe graça. E conhecia mais ou menos os seus ritmos - sempre os mesmos. Cinquentinha saía de casa ao fim da manhã, e em surtidas calmas, que o corpo já não lhe pedia correrias, ia carregando lixo do Bairro para o passeio em frente do seu prédio, e daí, finalmente, para o quarto andar onde habitava. Lixo, tal e qual. Sacos cheios de tralha, móveis partidos e abandonados às portas das casas, roupas velhas, pilhas de revistas ou jornais cheios de bichos, pneus de bicicletas, tachos rotos, o que lhe calhasse encontrar nos seus garimpos.
Ao fim de uns tempos, Cinquentinha iniciava uma actividade inversa. Começava a trazer todo o lixo que acumulara no apartamento exíguo e imundo - as vidraças de algumas janelas estava há anos transitoriamente substituídas por plásticos e da casa do Gerry via-se perfeitamente as entranhas da casa dela -, telefonava para a Câmara, e vinha para a rua vigiar com olhos de lince e língua afiada a transfusão daquela porcaria toda para o carro camarário. Isto podia durar uma tarde inteira e era uma tarde de glória onde ela desempenhava o papel principal. E ai de alguém que tentasse, sequer espreitar o que havia nos sacos e nos montes de coisas que ela se estava a desfazer.
Ainda se oferecia pelas esquinas, sem grande convicção, mais, como chegou a dizer não me lembro a quem, porque tinha saudades de quando «trabalhava», do que para ganhar realmente a vida. Mas sem grandes resultados práticos. Provavelmente viveria de uma pensão exígua da Santa Casa, e o futuro augurava-se muito sombrio. Aliás, o presente da Cinquentinha já era desolador. Menos para ela, que apresentava sempre a mesma cara. Nem bem disposta, nem mal disposta, era a cara de quem se sente bem consigo mesma. E depois, nem sei quando, porque não estava no nosso horizonte diário e directo, desapareceu das ruas, sem que tivéssemos dado realmente pela sua falta.
Só há poucos dias, é que o Gerry de passagem por Lisboa - tem casas em vários países - nos actualizou em relação ao seu destino. Durante anos, Cinquentinha falara do dia em que iria voltar «â terra», sem que nenhum de nós fizesse a menor ideia de que terra era a Cinquentinha. Mas o facto é que, sem mais nem ontem, a notificação chegara ao seu imundo apartamento lisboeta, dando-lhe conta de que passara a ser a única herdeira de um ramo da família de que provavelmente já nem ela saberia qual.
E assim, de um momento para o outro, a Cinquentinha encontrou-se rica. Rica mesmo. Cheia de propriedades e de títulos do tesouro, e contas a prazo e à ordem e sabe-se lá que mais. Ouvimos, pasmámos. E rimos. E ficámos felizes por ela que já não vai morrer de frio, nem de fome, nem de necessidades. Na terra, para onde realmente e como sempre disse, voltou. Algures, na zona de Viseu.
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