terça-feira, junho 22, 2010

O senhor Santos tem muitas saudades de Salazar

O senhor Santos tem muitas saudades dos tempos do Salazar. «Havia respeito. Havia trabalho. Vivíamos em paz. » O senhor Santos tem 60 e muitos anos e é dono de uma excelente tasca, As Zebras do Combro.
Pergunto-lhe pela sua infância: algures, no interior do país. Escola até à 4ª classe e, ao, mesmo tempo trabalho no campo. Ainda se recorda da professora que moía de pancada os seus pequenos alunos, por causa dos erros, das mãos sujas de terra, do cansaço que os impedia de se concentrarem. «Mas aprendemos!». Aos 10 anos, o senhor Santos já podia considerar-se suficientemente crescido para começar a trabalhar no duro. «Fazíamo-nos homens, assim». Só que recebiam menos de metade do que um. E continuavam a levar pancada. A alternativa era a fome. No campo não havia luxos como os de alimentar bocas e braços improdutivos. A história da sardinha divida por quatro ou por seis não é uma lenda urbana inventada por jovens mimados do pós 25 de Abril: o senhor Santos confirma-o, e muitos outros senhores Santos e donas Joaquinas que conheci ao longo de muitas viagens pelo país real.
Pergunto ao senhor Santos se gostava que os seus adorados netos tivessem uma infância semelhante à sua, e a cara enche-se de sombras quando responde automaticamente «nem pensar!!». Mas atalha o raciocínio com o argumento nostálgico da decência e do respeito que havia nos tempos da Outra Senhora. É factual. Um casal de namorados podia ser preso se desse um beijo na rua. No jardim. À beira-mar. Ou então, pagava uma multa. Ou as duas coisas. Em todo o caso, os dois jovens «caçados» nesse acto «indecoroso» eram sempre shumilhados pelos agentes da autoridade. Já com os escândalos sexuais (e muitos foram) que envolviam as elites… outro galo cantava. Salazar não queria que essas coisas se soubessem, «para não dar mau exemplo ao povo». Assim certos crimes envolvendo figuras gradas do regime(assassínio, pedofilia) eram abafados e ninguém era punido. Os jornais estavam impossibilitados de dar qualquer notícia, sobre estes e muitos outros assuntos. A censura existia e funcionava às maravilhas.
O senhor Santos encolhe os ombros, a repete: «mas estávamos em paz e havia trabalho para todos».
As estatísticas são lixadas. Mais de um milhão de portugueses fugiu a salto de tanta abundância, à procura de abundância melhor nos bidonvilles das Europas, e nos barrios miseráveis das Américas. A maior parte, fugia a salto pela fronteira de tamancas nos pés, e sem formação escolar. Muitos, infelizmente para eles, eram mesmo analfabetos. Época feliz, essa, em que éramos os pretos da Europa, que torcia o nariz diante da nossa miséria, da nossa ignorância, mas adorava a força dos nossos braços e a docilidade do nosso carácter.
Resta a paz, pois... mas não houve uma história qualquer chamada Guerra Colonial?

PS: E eu, que estudei em colégios particulares, e fui para o liceu, cresci a achar que toda a gente estudava e vivia como nós, com duas criadas, e férias na praia. Mais ainda, de tanto ouvir os pais (sobretudo o pai)falar nas dificuldades da vida e na obrigação de comer tudo o que estava no prato, tive ao longo da infância, afinal tão protegida, a noção peregrina de que se calhar éramos «pobres». Ou «remediados», um conceito da época.
Só conheci os senhores Santos e as donas Joaquinas de Portugal muito, muito tempo depois. Quando comecei a ouvir as suas histórias de vida, os seus silêncios cheios de amargura. Então, comecei a ter vergonha por nós todos. Depois, comecei a ter orgulho de todos nós. Que povo, este, que sobrevive a estas e todas as outras coisas que sabemos, com coração tão forte e alma tão vasta? Só então descobri o que era, verdadeiramente, Amar o meu país mal-amado.

domingo, junho 20, 2010

Terra

Somos filhas da Mãe Antiga
Erguemo-nos do pó dos seus braços negros
e dançamos
Cobertas de flores e de frutos
Dançamos
Com os sonhos do mundo e a recordação
Das Eras e a estrelas de seis pontas
A brilhar
Na ponta de varinhas de condão

Filhas do escuro ventre
Com os nossos cães de prata e sinos
E lobos recortados no perfil dos montes
Acordamos a noite nas encruzilhadas
E dançamos
Com a Lua Nova
Filhas da Negra
Com as nossas éguas mansas
Atravessamos campos de lírios
E abrimos os braços
No regaço da Mãe

sábado, junho 19, 2010

José Saramago

A notícia da sua morte corre o mundo inteiro. As cinzas vêm a caminho de Portugal. Morreu um Escritor. E há uma incontornável tristeza que nos toca a todos, a uns mais do que a outros. A sua obra deixa marca indelével no mundo, e honra-nos particularmente a todos nós, da Portuguesa Língua, nas suas diferentes sonoridades e declinações. Inevitavelmente, nesta hora, recordam-se também as suas polémicas. Mas para lá da poeira dos dias onde flutuam pequenos rancores destinados ao olvido, e acima de tudo «morreu o último intelectual do povo», como disse o Rui, ontem à noite, quando falávamos dele. Ficam os livros, que não morrem. E a memória depurada do único Nobel português de literatura. Caramba, não é pouco.

sexta-feira, junho 18, 2010

Livro, procura-se

Era um livro grande e muito antigo. Séculos de pó cobriam-lhe a capa e as lombadas. Quando desfolhava as suas páginas, as palavras cresciam no ar à nossa volta, tomavam forma e vida e acompanhavam-me até adormecer. Acho que, de algum modo, me acompanhavam também durante uma parte do sono, mas isso não posso garantir, porque me não lembro.
Era um livro que, de tanto o folhear, se transformou num hábito e numa presença imprescindível. Eu bebia-lhe as palavras e ele alimentava-se de mim.
Era intenso e acompanhava-me há quase dois anos.
Só faltava mesmo escrevê-lo.
Entretanto perdi-o. Não se se o perdi para sempre, ou se, pelo contrário, a nossa separação é transitória.
Mas enquanto não souber, tenho de continuar a procurá-lo, sem descanso. Nessa procura, encontrei outro que dormia há oito anos num ficheiro escondido numa antiga memória de computador. Sobreviveu, escondido, à morte de três laps. Agora, leio e releio as suas 100 e muitas páginas e não sei por onde ele me queria levar. Trabalho às apalpadelas, abrindo caminho entre frases e capítulos, sem descortinar o caminho que deveriam seguir, a tentar decifrar a sua alma secreta, com sentimentos contraditórios de encanto, espanto e melancolia.
Os livros são muito misteriosos.

domingo, junho 06, 2010

Baby blues, ou mais uma aventura do André terminada

Já sei o que está acontecer. O nome em inglês é mais bonito do que em português: baby blues. Acontece sempre que acabo um livro. Esta madrugada acordei e bingo!! Aí está a explicação para esta recente onda de nostalgia que os meus escassos posts ilustram minimamente. Tenho de acrescentar a estas manifestações, uma irritação latente (oh, que falta de paciência para quem não sabe ouvir!!), e uma necessidade enorme de estar sozinha. A remoer em coisa nenhuma, enquanto trato de arrumações e trocas de roupas, o Inverno a ceder o lugar ao Verão nos armários.
Pois é, acabei mais uma aventura do André. Andei a correr atrás deste puto durante os últimos quatro meses. Houve alturas em que pensei «e agora? Como é que ele se livra desta embrulhada toda?». Deitava-me, dormia, acordava e a solução lá estava. Contudo, por muito remota que fosse, a ideia de ter de «reescrever» a trama da história chegou a passar-me pela cabeça, de tal forna me parecia improvavel, por vezes, que o André (e todos os outros envolvidos na história) conseguissem chegar a bom porto.
E agora, acabou. Quero dizer, a parte da escrita. Começa outra. Um livro tem muito que se lhe diga.

sábado, junho 05, 2010

Andorinha


Não foi uma época feliz. Estava, uma vez mais, em trânsito. Num porto de abrigo. No Porto. A canção habitou esses longuíssimos dias, que agora, revendo o calendário, pouco mais foram do que uma Primavera e um Verão. Houve muito sol e bastante calor durante o exílio. Alguns ombros amigos. Pequenos, grandes reencontros.
E andorinhas.
O tempo assentou dores e poeiras, e esculpiu as memórias, escavando-as até ao recorte álgido de umas antiquíssimas paredes de granito, emolduradas por limoeiros e laranjeiras, com o Douro em frente.

quarta-feira, junho 02, 2010

Bishop says Hell was invented by the Church Video

Bishop says Hell was invented by the Church Video.
Curioso, partindo do núcleo duro. Em todo o caso, e tal como em relação ao Purgatório, é historicamente possível, e humanamente muito esclarecedor, traçar a génese do conceito, e a sua evolução ao longo dos milénios. A geografia é vector a tomar em linha de conta. E, obviamente, as migrações.
O facto é que o «inferno» tem mudado muito conforme as épocas e as instituições políticas e sociais que o enquadram.