sábado, agosto 23, 2014

«Um excelente livro» na RUM

De segunda a sexta-feira, na RUM - Rádio Universitária do Minho - no programa «Leitura em dia» uma sugestão de leitura, com António Ferreira e Sérgio Xavier. Recentemente, o programa distinguiu novamente um dos meus livros, neste caso Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, considerando-me uma «repetente nestas emissões pelas melhores razões», segundo palavras de António Ferreira que continuo a citar:

«É uma repetência por boas razoes. A qualidade literária não fica acantonada em géneros ou subgéneros. Este é um registo memorialístico, e, neste caso muito particular, uma homenagem muito sensível e terna à mãe da autora, com noventa e quatro anos [...] Normalmente estes livros de memórias também têm a ver com aqueles designados retornados ou regressados das ex-colónias portuguesas, nomeadamente, ou principalmente de Angola e Moçambique, uma espécie de recordar o paraíso perdido. Havia liberdade, uma espécie de largueza comportamental, moral e ética, coisa que na Metrópole, em Portugal, não acontecia. O país era muito fechado, cinzento, carregado de moralismos, E depois a Pide, o aparelho repressivo do Estado, fazia-se presente de uma forma acentuada e intensa, que tolhia qualquer movimento.»

[...] Manuela Gonzaga - ela é natural do Porto, é escritora, autora de vários livros. em termos académicos é Mestre em história dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, pela Universidade Nova de Lisboa, e é investigadora associada ao Centro de Historia de Além-Mar também da mesma universidade. Viveu em Moçambique, e em Angola, grande parte, ou pelo menos uma parte da sua adolescência e juventude.» [...]  Manuela Gonzaga faz isto muito bem, não se submete àquele ressabiamento que é muito típico dos retornados, com uma componente ideológica muito forte, muitas vezes conservadora, aliás, reacionária, abandonados por todos, condenados que deixaram tudo para trás. Neste caso, é para a Mãe se lembrar como foi. [...] Esta viagem inicia-se em Lisboa, a 31 de Agosto de 1964. É o crescimento de uma mulher, de uma rapariga [...] faz os estudos em varias cidades, em Tete, depois na Beira, antes em Lourenço Marques, uma cidade belíssima, segundo a autora.

Tudo isto retratado e caldeado com um acervo de bibliografia, documentos, que aparece no final, e dá para perceber o que é a essência, a integridade de uma mulher, de duas mulheres no caso, os outros irmãos aparecem, mas de uma forma mais lateral, a mãe que foi sempre uma mulher digna e independente, que quis sempre lutar pelos seus objectivos, assim como a autora que depois tem pormenores deliciosos, só lendo o livro.[...] deixamos apenas uma pequena nota, que são as cartas da «Coluna em Marcha» de um suposto oficial das tropas portuguesas a relatar as incidências do dia a dia, dos combates contra a Frelimo.

[...] um excelente livro, uma memória que faz jus de facto a essa memória, sem qualquer tipo de vinganças, perante o desejo de construir uma vida de forma independente  que foi o caso da família de Manuela Gonzaga.»

Para ouvir integralmente - o que é sempre mais interessante:
http://podcast.rum.pt/uploads/Leitura/Leitura_em_Dia-2014-07-29.mp3

sexta-feira, agosto 15, 2014

Quando penso em África

Quando penso em África não penso muito. Sinto. Intensamente. E sonho. Em muitos dos meus sonhos volto lá. Não exactamente às cidades, o que é raro, mas aos trilhos da mata - trilhos secretos, de fuga. E ora estou com negros e pertenço à sua tribo apesar da pele branca que persiste em vestir o meu corpo até em sonhos, ora estou rodeada de soldados que me escoltam e pertenço aos seus caminhos. Muitas vezes, porém, estou simplesmente a caminhar. Ou, mais raramente agora, a fugir. Os animais não me assustam, as árvores não me dão medo, os gritos dos pássaros ou os seus cantos são o meu alento, e os pés não ficam em ferida enquanto avanço sobre a terra escura que parecem (re)conhecer de tempos imemoriais. Simplesmente caminho como se procurasse o caminho de casa - que se oculta por ali.

quinta-feira, agosto 14, 2014

Moçambique - para todos nos lembrarmos

Agora, que se não tomarmos cuidado transformamo-nos em rodapé da História, a única aliada em quem podemos confiar é na memória. Temos todo o direito de a alimentar.

A nossa memória - colectiva.

É a ela que recorri para mostrar que fomos muito mais, na soma das nossas vidas privadas, do que um amontado caótico de caixotes espalhados pelo cais do porto de Lisboa. Muito mais do que saudades e amarguras. Muito mais do que sentimentos de estranheza e de revolta. Éramos mais de meio milhão - e na crueza dos números, mais de metade oriundos da então Metrópole e integrámo-nos aqui e por todo o mundo, de forma geral, com uma taxa de sucesso que ainda hoje espanta, sobretudo quem está de fora.

 
 
Trouxemos bons ventos e muitas outras coisas boas. E não temos vergonha do que vivemos. Nós, de quem se diz que era uma vez e tudo perdemos, guardámos tesouros inalcançáveis e imperecíveis. Nós, os que viemos, e não importa se nascemos lá ou cá, ganhámos África. Melhor. África ganhou-nos. Nós somos de Ela. Por todos os sentidos. É nesse aspecto que o passado pode ser o nosso melhor presente. Aqui. Agora. Seja onde for.

terça-feira, agosto 12, 2014

Um delicioso jantar

Ontem, no decorrer de um delicioso jantar, em deliciosa companhia, repassou, por breves momentos, uma aragem de tristeza quando se falou na tristeza de viver em Portugal, na asfixia que nos circunda, e no peso que se carrega em tantos quotidianos, e, por consequência, no peso que tal acarreta nos circuitos conviviais. O que é sem dúvida, uma constatação plena de justiça. Algumas pessoas, que aqui mantém as suas casas de sempre, mas que só cá vêm de forma sazonal, como as andorinhas, confessaram que ao fim de uns tempos, começam a contar o tempo de ir embora outra vez.


Eu própria ave de arribação, crescida nas viagens, há muitos anos que não sinto nada assim. Adoro Lisboa. Amo Portugal. E já me habituei ao facto de ter o coração fora do peito - a pairar entre mundos, porque não consegui e não conseguirei nesta vida, alcançar o dom da ubiquidade... - mas na verdade, e esteja onde estiver, o ambiente é limpo de ervas daninhas e ventos maus. Descontando, evidentemente, todo o mal que nos pode acontecer pelo facto de estarmos vivos, e, como seres sensíveis, sermos sensíveis ao que acontece em nosso redor. Com os que amamos, e até com os que mal conhecemos e, obviamente connosco próprios nas voltas da roda da fortuna.
A conversa, repito, em ambiente sempre delicioso, com pessoas ligadas a várias áreas da cultura, e uma grande artista a presidir, nunca foi «pesada» e flutuámos pelos temas. Creio que me perguntaram como fazia, e eu respondi quase sem pensar: não frequento negatividade de espécie alguma. Não disse então, mas digo agora: é que me sinto profundamente comprometida com o lugar onde vivo, e sei que uma parte do que me rodeia é da minha única e inteira responsabilidade. De modo que quando o «ambiente» é mau - mudo de ambiente. E isso pode fazer-se sem sairmos do mesmo lugar. Com os custos que tal forma de viver acarreta, mas que pago sem pensar duas vezes.

Acima de tudo, há anos e anos e anos que não convivo com pessoas que falam mal umas das outras - cobardemente e quando as e os visados não se encontram presentes. Simplesmente, não convivo. Viro as costas, vou-me embora, não tenho paciência nem tempo nem energia. É um exercício profundamente menor e corrosivo - para quem o pratica e para quem o alimenta, mesmo que só servindo de testemunha. É que pessoas que falam mal das outras são pessoas que pensam muito mal de si próprias, mas ainda não o descobriram, nem querem descobrir. E isso é contagioso, pega-se no contágio das palavras.

Mas a conversa, entretanto, já seguia outros rumos. Por fim, acabámos a ver livros, deslumbrantes, feitos à mão. Livros que gostaria de ver com o tempo de sem tempo - perfeitos, belíssimos desde o suporte em papel artesanal, às aguarelas que o cobrem, história a história, ao desenho das capas todas diferentes, ao formato da obra, nunca igual, à letra de copista, desenhada com a perfeição que o amor confere às obras geradas sob o seu influxo. Não digo nomes, nem cito obras - para não quebrar o sortilégio de um encontro privado. Noutra altura, será.

Mas voltando atrás, faltou dizer que não vejo telejornais, aliás não tenho tv, mal leio jornais, e seleciono a informação que agora está disponível em tantos lados e de tantos modos. Mas ali, naquela sala com varanda e vista sobre o nosso magnifico mar português, não havia vestígios da caixinha mágica. A magia estava presente, de toda uma outra maneira. Ah, e havia um cão. Grande. Recebeu-nos com mostras de tanta alegria e esteve sempre por ali, connosco, dormitando feliz. Adoptado, evidentemente.

domingo, agosto 10, 2014

Em África - o primado da alegria

O lugar do outro - aprender como se chega até lá, é das lições mais difíceis de aprender. Implica sair de uma ilha de realidade que tomamos como um todo. Como O Todo. Não há manuais que nos ajudem. O outro também habita a sua própria ilha de realidade e pode olhar-nos com a maior desconfiança, conforme nos identifique como predador ou presa, ou ambas. Mas se o coração fala mais alto e a razão não nos falece, o caminho abre-se. Comecei a aprender este caminhar em África. Foi lá que comecei a trocar a segurança do familiar; o território do dogma; o pão da certeza, pela incertitude da viagem, muitas vezes sem terra à vista.
 
vista parcial da então cidade de Lourenço Marques - Maputo
 
Penso que o desencadear deste processo terá sido mais fácil por ser mulher. A irracionalidade dos constrangimentos que nos colocavam, apenas por causa da identidade de género, levou-me a questionar tudo e todos. O sermos avaliadas, não pelas nossas competências, não pela nossa inteligência ou falta dela, não pela nossa capacidade de sobreviver e viver com dignidade; mas apenas pelo sexo. A chuva de censuras, mais ou menos veladas quando o nosso comportamento não se pautava pela sonsice e pela hipocrisia - foi o primeiro toque do clarim deste acordar. Porque numa sociedade que considerava muito natural que os meninos fossem ás putas, mas que achava uma pouca vergonha que as meninas se deitassem com os namorados, a menos que conseguissem escondê-lo de toda a gente; e a menos que o fizessem com uma sensação de cometerem uma falta que as diminuía extremamente, numa sociedade assim, digo, algo estava podre.
 
Era isso que eu achava, era isso que eu sentia.
Felizmente, esta e outras revoltas, que agora à distância me parecem tão inocentes e lúcidas, tiveram aquele chão, aquele ar, aquele céu e aquela assombrosa paisagem por cenário. É que tudo ali era mais fácil. Até os dramas. Em África vigorava o primado da vida. O primado da alegria. Mas não há como as nossas pequenas revoltas pessoais para nos acordarem para a realidade das revoltas dos outros. E para a justiça dos seus anseios.
 

sábado, agosto 02, 2014

Repórter de guerra - Coluna em Marcha

Em mensagens privadas, Henrique Salles Fonseca, amigo recente das redes sociais, cuja escrita muito aprecio, tem-me dado conta do maravilhamento com que leu e releu vários trechos do meu livro Moçambique para a mãe se lembrar como foi. que publicou no seu blogue. Como este:





«Lourenço Marques! A cidade das acácias e dos jacarandás, das palmeiras e das casuarinas debruçadas sobre a baía do Espírito Santo, enfeitada de luzes, geométrica e febril, a explodir de vitalidade e a crescer todo0s os dias, cuja visão, quando o avião começava a sobrevoá-la, me enchia os olhos de lágrimas. A perspectiva de irmos viver para lá era tão exultante que me tirava o ar. Não me lembro sequer dos últimos tempos na cidade do Zambeze.

Na expectativa da mudança, tornara-me até indiferente à beleza singular de uma paisagem que, julgava eu, esqueceria para sempre no momento em que lhe virasse as costas sem poder imaginar que, anos depois, a sua ausência se transformaria numa presença irredutível, calorosa e comovedora. E sem poder imaginar também que pessoas que nunca esqueci jamais me esqueceriam também e que me viriam ajudar muitos anos depois com a sua presença cálida e a sua amizade incólume, a refazer o puzzle da minha vida partida em pedaços, a cada mudança de lugar.

Por essa altura, havia um homem novo na minha vida. Dele sabia tudo, embora o tudo que sabia dele fosse muito pouco. Acima de tudo, tocou-me a sua alma marcada pela varíola da guerra e da solidão. Tinha histórias para contar e começou a conta-las nas páginas de um jornal de Lourenço Marques, angariando rapidamente uma legião de fãs cujas cartas aguardavam no Notícias de Lourenço Marques, ao cuidado do director do suplemento literário, que o anónimo oficial português a quem eram dirigidas as fosse levantar. Um volume de missivas que crescia à medida que as crónicas, que foram poucas, iam sendo publicadas nas páginas da Coluna em Marcha, um suplemento concebido e dirigido por Guilherme de Melo, na sequência das suas famosas reportagens de guerra, ainda em 1968.

Se eu amava aquele homem? Que pergunta tão estranha. Ainda hoje não sei responder. Enquanto existiu, a nossa foi uma relação secreta, constante e de uma intimidade total. Nesses tempos, pensava nele horas sem fim, sabendo que mesmo a dormir ele estava comigo. É curioso: ainda hoje não consigo descrevê-lo fisicamente. Recordo, porém, como as mãos me tremiam quando lia as suas crónicas publicadas. Crónicas que não discutia com ninguém, embora e mesmo em minha casa, todos o lessem, falassem dele e se especulasse posteriormente em torno da sua previsível morte, quando, tão de repente como apareceu, deixou de publicar. Sem nenhuma justificação. Desaparecendo, pura e simplesmente. Em todo o caso e enquanto durou, a nossa foi uma relação de corpo e alma.

Na verdade, aquele homem era…»
 
NOTA:
Se o leitor quiser saber quem era o homem, terá que ler o livro. Tem na bibliografia a referência da página.
Agosto de 2014
Henrique Salles da Fonseca
 
BIBLIOGRAFIA: «Moçambique – Para a mãe saber como foi», Bertrand Editora, 1ª edição, Junho de 2014, pág. 233 e seg.
 
 
Retirado de «Repórter de guerra»: http://abemdanacao.blogs.sapo.pt/reporter-de-guerra-1248368 - extracto publicado no blogue A Bem da Nação

A Cama do Gato

Quero um lençol de espuma do mar nas areias da praias da Aguda ou de Moledo, para brincarmos à cama do gato feita com os cordéis dos pacotinhos de bolachas da confeitaria Arcádia a saltarem das minhas mãos para as tuas, mudando de forma a cada um das figuras a que chamamos redes e pé de galo e outras cujo nome esqueci, e vence não sei quem e já nem me lembro como.