domingo, agosto 10, 2014

Em África - o primado da alegria

O lugar do outro - aprender como se chega até lá, é das lições mais difíceis de aprender. Implica sair de uma ilha de realidade que tomamos como um todo. Como O Todo. Não há manuais que nos ajudem. O outro também habita a sua própria ilha de realidade e pode olhar-nos com a maior desconfiança, conforme nos identifique como predador ou presa, ou ambas. Mas se o coração fala mais alto e a razão não nos falece, o caminho abre-se. Comecei a aprender este caminhar em África. Foi lá que comecei a trocar a segurança do familiar; o território do dogma; o pão da certeza, pela incertitude da viagem, muitas vezes sem terra à vista.
 
vista parcial da então cidade de Lourenço Marques - Maputo
 
Penso que o desencadear deste processo terá sido mais fácil por ser mulher. A irracionalidade dos constrangimentos que nos colocavam, apenas por causa da identidade de género, levou-me a questionar tudo e todos. O sermos avaliadas, não pelas nossas competências, não pela nossa inteligência ou falta dela, não pela nossa capacidade de sobreviver e viver com dignidade; mas apenas pelo sexo. A chuva de censuras, mais ou menos veladas quando o nosso comportamento não se pautava pela sonsice e pela hipocrisia - foi o primeiro toque do clarim deste acordar. Porque numa sociedade que considerava muito natural que os meninos fossem ás putas, mas que achava uma pouca vergonha que as meninas se deitassem com os namorados, a menos que conseguissem escondê-lo de toda a gente; e a menos que o fizessem com uma sensação de cometerem uma falta que as diminuía extremamente, numa sociedade assim, digo, algo estava podre.
 
Era isso que eu achava, era isso que eu sentia.
Felizmente, esta e outras revoltas, que agora à distância me parecem tão inocentes e lúcidas, tiveram aquele chão, aquele ar, aquele céu e aquela assombrosa paisagem por cenário. É que tudo ali era mais fácil. Até os dramas. Em África vigorava o primado da vida. O primado da alegria. Mas não há como as nossas pequenas revoltas pessoais para nos acordarem para a realidade das revoltas dos outros. E para a justiça dos seus anseios.
 

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