domingo, setembro 20, 2020

E contudo amam-se!!



De um artigo de opinião em Expresso, 26/08/2020

“Ordem Moral” e “Doida Não e Não!”: a história de Maria Adelaide Cunha continua a gerar controvérsia 


Manuel Cardoso Claro, fotos Arquivo do Palácio Sao Vicente (cedida à autora)

«Maria Elisa Seara Cardoso Perez que era filha de Paulina e Fortunato Seara Cardoso, proprietário e diretor do Comércio do Porto. Veio a conhecer Maria Adelaide no Inverno de 1942, em casa dos pais, na rua da Alegria, Porto, onde esta se reencontrou com o filho, José Coelho da Cunha, 24 anos após a sua saída do Palácio de S. Vicente, em Lisboa. Maria Elisa, à época com 15 anos, viu, da janela da cave, aquela senhora pequenina, de cabelo todo branco, mas muito direita e com uma dignidade tocante, avançar ao encontro do filho que não via há tanto tempo, posto o que ambos se encerraram no salão da casa, onde estiveram uma tarde inteira à porta fechada. «Maria Paulina, minha mãe, tinha uma grande consideração e estima por Maria Adelaide de quem se tornou amiga e com quem tinha muitas e longas conversas.»

Mas entre aquele estranho casal… seria amor? Maria Elisa Perez respondeu-me: «Sem a menor dúvida. Maria Adelaide contou à minha mãe que encontrou no Manuel Claro o carinho e o respeito que o seu marido, Alfredo da Cunha, nunca lhe dera.»

Estes e outros testemunhos e todos os factos que recolhi provaram-me que, embora na curva descendente da idade, Maria Adelaide continuou a ser uma mulher reconhecidamente encantadora e sedutora sem esforço. Era culta, e teve educação primorosa. As cartas da professora dela e dos irmãos enaltecem a sua inteligência. E o Manuel, para além de ter sido um homem muito atraente (as fotografias provam-no e os testemunhos confirmam-no) era inteligente, sensível, culto – nunca deixou de ler e era amigo pessoal de Raul Rego -- e amou indubitavelmente esta mulher a quem se dedicou para o resto da vida. Não há o menor indício que aluda à sua imaginada homossexualidade e muito menos à sua pretensa fragilidade. O Manuel era um homem forte e de fortes convicções.»

Para ler o artigo na íntegra: 

https://expresso.pt/opiniao/2020-09-16-Ordem-Moral-e-Doida-Nao-e-Nao-a-historia-de-Maria-Adelaide-Cunha-continua-a-gerar-controversia

quinta-feira, setembro 10, 2020

Doida não e não! Ou ″Uma pessoa apaixonada age com regras que o bom senso não conhece″ - DN

O jornalista João Céu e Silva, do Diário de Notícias, fez-me uma grande entrevista sobre a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha, que, parcialmente aqui publico. Para ler na íntegra, seguir o link. 

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Em meados de 2006, fui ao Palácio de São Vicente fazer um artigo para a revista Máxima e a dona, Clara Ferrão, que já tinha lido alguns livros meus, levou-me à que fora a biblioteca de Maria Adelaide, onde, devidamente catalogados e organizados em pastas, se encontrava um acervo riquíssimo de documentos relativos a este caso. E disse: "Se lhe interessar, pode vir, o tempo que quiser e quando quiser." 

Abri e folheei uma das pastas, ao acaso, e abismei. Para uma escritora, de mais a mais historiadora, a tentação foi muito grande. Comecei a delinear um projeto de investigação detetivesco para completar a história. Mas, publicado o artigo, duas senhoras do Porto que em muito jovens tinham privado com Maria Adelaide Coelho da Cunha telefonaram para a Máxima e pediram o meu contacto. Tinham estórias, testemunhos, documentos e outras testemunhas, nomeadamente José Manuel Cardoso, sobrinho direito do Manuel Claro que vivera com o casal, para partilhar se eu quisesse. 

Eu quis.




«Este caso não é uma singularidade. Por muito menos, havia mulheres - naturalmente ricas - no Conde de Ferreira sequestradas a pedido das famílias. Tivemos outro caso muito mediático, no princípio do século, quando uma jovem de 32 anos quis tomar ordens e professar num convento do Porto, o que transtornou de tal forma o seu pai, cônsul honorário do Brasil no Porto, que este a quis interditar -e conseguiu, só não levou o processo adiante. Em todo, sequestrou-a, colocou polícia à porta, e fez-lhe a vida num inferno. Depois voltaram todos para o Brasil. Os jornais da época dão muito eco ao assunto. É um caso muito estudado, sobretudo pela professora Rita Garnel, que já publicou livros e estudos sobre o tema. E tivemos o caso não menos escandaloso, mas rapidamente resolvido, do advogado Dantas da Cunha, que fugiu do Conde de Ferreira mais ou menos na altura em que lá se encontrava Maria Adelaide. Foi de tal forma chocante que, a somar-se a outros, determinou que o assunto fosse ao Parlamento e a lei dos internamentos mudou. No Estado Novo, voltamos a encontrar o mesmo paradigma, só que agora mais virado para os "desvios" da sexualidade ou para os "desvios" políticos. Quanto às senhoras, o paradigma só mudara de roupagem. À falta de conventos, os manicómios serviam muito bem como depósitos de mulheres "malcomportadas". Muita gente até achou que o Alfredo da Cunha era "um santo" porque outro, naquelas circunstâncias, teria matado o "algoz" que lhe roubou a mulher. A violência só se torna mais visível pela resistência e posteriormente pela denúncia pública que Adelaide opõe ao encarceramento, à forma como foi tratada, e por aí fora.

Uma das consequências desse escândalo foi o marido ter vendido o jornal. Seria indispensável?
O projeto da venda do Diário de Notícias já estava em agenda, apesar do repúdio total dela. Claro que, a partir do momento em que foi internada, o negócio fez-se sem entraves.


Os outros jornais da época aproveitaram o escândalo apenas para vender mais edições ou existia uma intenção de apoucar o diretor do Diário de Notícias e, em consequência, o próprio jornal?
Não é de menosprezar nunca o papel da concorrência... E tornou-se muito tentador, do ponto de vista editorial, representar quer um quer outro dos opositores, à cabeça dos quais o próprio Diário de Notícias, por Alfredo da Cunha, e A Capital, por Maria Adelaide Coelho.

Como foi a cobertura do Diário de Notícias sobre este caso?
Muito grande. Com artigos, anúncios, comentários ao livro que, tendo Alfredo da Cunha como editor, Infelizmente Louca!, faz rapidamente três edições. Entre muitos outros, Júlio DantasBettencourt RodriguesAzevedo Neves, presidente da Sociedade das Ciências Médicas, dão a cara pela obra. Egas Moniz e Júlio de Matos referem: "Trata-se de um dramático episódio de loucura lúcida que é o tormento das famílias e uma fonte viva de escandalosos pleitos judiciaes"...

Como foi a reação dos leitores ao seu romance?
Não cedi ao romance porque já se disse tanta mentira sobre esta senhora e este casal de amantes, que optei pela sobriedade e o rigor de um trabalho historiográfico. Apesar de se ler como estória, fiz questão de que fosse história. Está nalgumas universidades. Desde 2009 que integra os curricula do mestrado em Psicologia na Lusófona. Sou convidada com alguma frequência para palestras - por exemplo, no Instituto Camões em Vigo -, estive por duas vezes no Hospital Conde de Ferreira, em colóquios e no Júlio de Matos. Com o título Lucide Folie, está traduzido em francês, integrando o catálogo da Hachette.




Havia quem conhecesse o caso ou foi uma surpresa para a maioria?
Foi uma grande surpresa para a maior parte das pessoas, e ainda continua a ser, embora algumas tivessem visto ou ouvido falar do filme da Monique RutlerSolo de Violino, a quem presto homenagem e refiro no livro, e de quem falo sempre que me pedem contactos que ajudem a aprofundar ou a reviver este caso.

Além do romance de Agustina Bessa-LuísDoidos e Amantes, nada mais existe a nível literário que reflita este caso. A história de amor não justifica ou deve-se a desconhecimento?
A história que Agustina conta é ficção. Nem Manuel Claro era homossexual como ela pretende nem Maria Adelaide uma ignorante lésbica, como sugere. Aliás, a história de amor deles é completamente desvalorizada por Bessa-Luís, embora tivesse sido contactada pelas mesmas pessoas que posteriormente me contactaram para darem o seu testemunho sobre o casal, e a vida de ambos, no Porto. Os tais 40 anos que ficaram a faltar no filme. Acho que as histórias verdadeiras, sobre as quais há muita documentação, conhecida ou referida, tornam-se um pouco desmotivantes enquanto objeto literário. Como encontrar um ângulo novo? O que haverá ainda para descobrir? Um dia, mais tarde, certamente alguém irá pegar-lhe novamente. É uma história exemplar, de uma grandeza rara.

Qual foi a parte mais difícil de escrever?
Foram várias. A angústia e o secretismo com que Maria Adelaide abandona a casa, sem saudade alguma, mas com o coração muito apertado quando espreita, sem conseguir entrar, o quarto do filho. O encontro, numa pastelaria da Baixa, com a irmã, a quem não diz o que vai fazer, mas tem de controlar as lágrimas enquanto conversam. E, por fim, o medo. Ao entrar na estação do Rossio, ao entrar no comboio... E se a reconhecem? O coração aos saltos... Também foi difícil escrever aquele episódio terrível em que ela e o Manuel são literalmente "caçados" no Rossão e sob os olhares do povo, levados para uma taberna (estive lá, vi os locais que descreve), onde passam a noite, sobre uns fardos de palha, rodeados de polícias, de bêbados, mimoseados com gargalhadas e comentários obscenos. O Manuel foi magnífico. Protegeu-a, amparou-a. Depois, e sob chuva e neve, manhã cedo e a cavalo (ela), o Manuel e o primo a pé numa viagem dolorosa, até que os separem. E, claro, os tempos que ela passou no hospital, os dias no pavilhão das criminosas, sem poder falar com ninguém, vigiada a tempo inteiro, fechada. O regime do manicómio era brutal. A escrita deste livro fez-me percorrer uma gama de sentimentos e emoções muito ampla.

O caso teve uma grande componente psiquiátrica, uma "ciência" ainda pouco confiável à época. Este tornou-se um caso de estudo ou Adelaide Coelho não interessou aos profissionais da área?
Não foi único e a historiografia contemporânea tem vindo a debruçar-se sobre este e outros casos. Recordo que, ainda em 1920, A Capital publicou várias reportagens sobre o Conde de Ferreira e denuncia o sistema tido quase por normal, em que, com apoio de psiquiatras e a pedido de famílias de meninas ou senhoras ricas, as internam nos manicómios por "castigo" e para lhes ficarem com as fortunas. O que torna tão surpreendente este caso é a vigorosa defesa que Maria Adelaide faz em praça pública, dando ao prelo as suas memórias, e continuando a partilhar descrições vivíssimas dos quotidianos de um hospital de doidos nas páginas de um jornal. Isto melindrou a classe médica/psiquiátrica e extremou posições. Foi um "milagre" histórico este "lavar de roupa suja" - tudo se passa numa época sem censura. A partir de 1926, nada se teria desenrolado da mesma maneira. A opinião pública teve um peso decisivo. Na Alemanha, também houve um surto destes, abrangendo homens e mulheres. Muitos publicaram em folhetim as suas experiências, e as denúncias foram muito abundantes e detalhadas. Foi um escândalo na Alemanha, por volta de 1900. Estou a trabalhar alguma dessa informação, que é bem interessante. Tal como aqui, o tema dos internamentos e a prepotência que emergiu das denúncias levou o assunto ao Parlamento e a legislação sobre os internamentos foi alterada. Cá também.

Na sua escrita, voltou a encontrar um caso real que a seduzisse como este?
A biografia de imperatriz Isabel de Portugal também me envolveu muitíssimo e ainda demorei mais tempo a investigar e a escrever. Mas este caso é muito, muito especial.

terça-feira, setembro 08, 2020

Jardins Secrets de Lisbonne a sair no mercado francófono

 

A sair! A edição francesa dos meus Jardins Secretos de Lisboa (romance esgotado entre nós) vai integrar o catálogo Hachette como aliás os outros livros meus desta chancela #LepoissonVolant, numa tradução de Laure Elisabeth Collet editora de Le Poisson Volant uma chancela especializada em autores lusófotos «escolhidos a dedo».  

 Mas há mais novidades: na l'Université de Provence (Aix-/Marseille), Département d'Études Portugaises et Brésiliennes este e outros, como Moçambique para a Mãe se lembrar como foi têm sido referenciais.




terça-feira, setembro 01, 2020

KNK - ou uma forma superior de homenagem

Sou muito afortunada. Tenho varios amigos e amigas escritores. Ficamos felizes com os èxitos mútuos, partilhamos desconfortos e desaires, e saudamos o privilégio de servir as letras e vermos os nossos livros serem publicados e bem acolhidos. Acima de tudo, gostamos muito uns dos outros, e somos fãs das nossas respectivas obras. 

    Fica a sugestão de uma leitura que muito me inspirou. O último livro do meu querido amigo Luís Filipe Sarmento. 

                                
                                KNK – ou uma forma superior de homenagem

    Muito sucintamente, o livro é uma introdução poética ao génio de três autores decisivos para o século XX e mais além, Kant Nietzsche Kafka, mas essa abordagem singular não é ponto de chegada, mas rampa de lançamento para voos muito mais amplos. Navegamos assim no transcendente com @Luís Filipe Sarmento, que se lança com desassombro ao poema ensaio, e, recorrendo à ironia, à metáfora, à alegoria, e aos aforismos tão frequentes na obra de Kant e de Nietzsche desenvolve as pertinentes questões metafisicas tratadas por eles. Compondo, igualmente, um texto kafkiano na medida em que é complexo, labiríntico e surreal.
    E muito sedutor.
    Recorrendo ao seu riquíssimo léxico, Luís Filipe Sarmento oculta e revela nesta prosa esquiva – ora poesia, ora ensaio, ora ambos, em texto impossível de classificar – oculta, dizia eu, os alvos da sua exegese, ou melhor, a fonte aonde, neste caso, foi beber a sua inspiração torrencial. O título é hermético. Em todo o caso, a leitura é voraz. Voamos entre ideias, imagens, conceitos e referências que, aos poucos vão fazendo sentido. O livro termina tal qual como começa: com um texto magistral. E eis-nos em eterno retorno. O que é, também, uma forma superior de homenagem.

    Que mais se pode pedir à poesia?

Manuela Gonzaga, Monsaraz, Agosto 2019

terça-feira, agosto 11, 2020

A mãe da minha amiga fez 94 anos

    A mãe da minha amiga, que um dia foi criança e menina atinada, tornou-se a seu tempo e no seu tempo, uma formidável mulher de trabalho. Casou para a vida, pariu quatro filhos, foi o apoio sólido do marido que, entretanto, já partiu, e cuidou dos velhos pais enquanto estes por cá andaram. De manhã à noite, nao parava. Tratou amorosamente dos filhos, cuidou do lar, cozinhou incontáveis refeições, amanhou campos, manteve horta e pomar, e trabalhou sazonalmente sempre que foi preciso. Enquanto viveu na sua própria casa, teve gatos, companhia de eleição, misteriosos e fiéis, e, em tempos mais remotos, criação: galinhas, coelhos. E flores. Era das que fazem um cepozinho de nada renascer e florir.


    Tinha, e ainda teria se a deixassem, dedos verdes, mãos de fada. Limpou muitas lágrimas, mudou muitas fraldas, confortou doentes e acompanhou moribundos, desmanchou muitos porcos e fez intermináveis fieiras de chouriços, salpicões, farinheiras e outros enchidos. Mesmo nos tempo mais duros — de que as novas gerações nunca ouviram falar (o que é quase um criminoso atentado contra a memória do povo que somos) — naquela casa humilde, mas limpíssima e tão bonita no seu traçado alentejano, nunca nenhum filho se levantou da mesa com fome. Nunca.


    Há uns anos, foi para um lar. Sentiu-se muito triste. Não a deixaram levar o seu companheiro de quatro patas. Nem os vasos das suas flores. Nada que a ligasse aos seus quotidianos de sempre. Conformou-se - todos os idosos se conformam. E cumprem rotinas que consistem num calendário dias sempre iguais pontuados de refeições sem surpresas, e programas de televisão… E ali está ela, com os outros velho e velhas sentados em semicírculo, nos mais variados graus de apatia, virados para o altar da pequena caixa que de mágica nada tem, onde raparigas e rapazes esfusiantes falam aos gritos, atropelando-se nos seus disparates disparatadamente alegres, enquanto comentam coisas que não lhes interessam para nada. Em todo o caso, a mãe da minha amiga podia sair, ver a família, ou ser visitada pelos entes queridos com alguma regularidade. Isso acabou. O lar, tido como modelar, é muito asseado, e tem muitas outras qualidades, sobretudo para quem está do lado de fora e ainda sente que é autónomo e gere a sua vida. A verdade é que trata bem os seus velhinhos, mantendo-os alimentados, limpos, com cuidados médicos, como se fossem crianças enrugadas e débeis, que é preciso cuidar do corpo sem cuidar do resto. Mas havia visitas! E saidas, precárias as saídas.


    O vírus mudou tudo — ninguém pode visitar quem ali está. Ninguém, a não ser o pessoal do lar, médicos e paramédicos. A mãe da minha amiga perdeu a esperança e com ela o fiozinho de alegria que a ligava à vida. Como mal consegue ouvir, portanto falar ao telefone, cismou que foi abandonada. E agora, ao fazer 94 anos sem ninguém a ir visitar, disse à filha, a minha amiga, que este ia ser o seu último aniversário já que ninguém se lembra que ela, apesar de tudo, ainda está viva.


    Solução? Plástico, vidro, o que for, como barreira, mas que permitisse que os filhos, os netos e os bisnetos a visitasse, a vissem, e, acima de tudo, que ela os visse a todos, com alguma regularidade. Há lares onde já existem estas adaptações. Ali, ainda não há. A festa que a mãe da minha amiga não teve – festa mesmo, beijos, abraços ou, simplesmente, a visão dos rostos amados – é um pedaço do pavoroso retrato da nosso fracasso humano.


#humanidadesdesumanas