quinta-feira, setembro 10, 2020

Doida não e não! Ou ″Uma pessoa apaixonada age com regras que o bom senso não conhece″ - DN

O jornalista João Céu e Silva, do Diário de Notícias, fez-me uma grande entrevista sobre a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha, que, parcialmente aqui publico. Para ler na íntegra, seguir o link. 

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Em meados de 2006, fui ao Palácio de São Vicente fazer um artigo para a revista Máxima e a dona, Clara Ferrão, que já tinha lido alguns livros meus, levou-me à que fora a biblioteca de Maria Adelaide, onde, devidamente catalogados e organizados em pastas, se encontrava um acervo riquíssimo de documentos relativos a este caso. E disse: "Se lhe interessar, pode vir, o tempo que quiser e quando quiser." 

Abri e folheei uma das pastas, ao acaso, e abismei. Para uma escritora, de mais a mais historiadora, a tentação foi muito grande. Comecei a delinear um projeto de investigação detetivesco para completar a história. Mas, publicado o artigo, duas senhoras do Porto que em muito jovens tinham privado com Maria Adelaide Coelho da Cunha telefonaram para a Máxima e pediram o meu contacto. Tinham estórias, testemunhos, documentos e outras testemunhas, nomeadamente José Manuel Cardoso, sobrinho direito do Manuel Claro que vivera com o casal, para partilhar se eu quisesse. 

Eu quis.




«Este caso não é uma singularidade. Por muito menos, havia mulheres - naturalmente ricas - no Conde de Ferreira sequestradas a pedido das famílias. Tivemos outro caso muito mediático, no princípio do século, quando uma jovem de 32 anos quis tomar ordens e professar num convento do Porto, o que transtornou de tal forma o seu pai, cônsul honorário do Brasil no Porto, que este a quis interditar -e conseguiu, só não levou o processo adiante. Em todo, sequestrou-a, colocou polícia à porta, e fez-lhe a vida num inferno. Depois voltaram todos para o Brasil. Os jornais da época dão muito eco ao assunto. É um caso muito estudado, sobretudo pela professora Rita Garnel, que já publicou livros e estudos sobre o tema. E tivemos o caso não menos escandaloso, mas rapidamente resolvido, do advogado Dantas da Cunha, que fugiu do Conde de Ferreira mais ou menos na altura em que lá se encontrava Maria Adelaide. Foi de tal forma chocante que, a somar-se a outros, determinou que o assunto fosse ao Parlamento e a lei dos internamentos mudou. No Estado Novo, voltamos a encontrar o mesmo paradigma, só que agora mais virado para os "desvios" da sexualidade ou para os "desvios" políticos. Quanto às senhoras, o paradigma só mudara de roupagem. À falta de conventos, os manicómios serviam muito bem como depósitos de mulheres "malcomportadas". Muita gente até achou que o Alfredo da Cunha era "um santo" porque outro, naquelas circunstâncias, teria matado o "algoz" que lhe roubou a mulher. A violência só se torna mais visível pela resistência e posteriormente pela denúncia pública que Adelaide opõe ao encarceramento, à forma como foi tratada, e por aí fora.

Uma das consequências desse escândalo foi o marido ter vendido o jornal. Seria indispensável?
O projeto da venda do Diário de Notícias já estava em agenda, apesar do repúdio total dela. Claro que, a partir do momento em que foi internada, o negócio fez-se sem entraves.


Os outros jornais da época aproveitaram o escândalo apenas para vender mais edições ou existia uma intenção de apoucar o diretor do Diário de Notícias e, em consequência, o próprio jornal?
Não é de menosprezar nunca o papel da concorrência... E tornou-se muito tentador, do ponto de vista editorial, representar quer um quer outro dos opositores, à cabeça dos quais o próprio Diário de Notícias, por Alfredo da Cunha, e A Capital, por Maria Adelaide Coelho.

Como foi a cobertura do Diário de Notícias sobre este caso?
Muito grande. Com artigos, anúncios, comentários ao livro que, tendo Alfredo da Cunha como editor, Infelizmente Louca!, faz rapidamente três edições. Entre muitos outros, Júlio DantasBettencourt RodriguesAzevedo Neves, presidente da Sociedade das Ciências Médicas, dão a cara pela obra. Egas Moniz e Júlio de Matos referem: "Trata-se de um dramático episódio de loucura lúcida que é o tormento das famílias e uma fonte viva de escandalosos pleitos judiciaes"...

Como foi a reação dos leitores ao seu romance?
Não cedi ao romance porque já se disse tanta mentira sobre esta senhora e este casal de amantes, que optei pela sobriedade e o rigor de um trabalho historiográfico. Apesar de se ler como estória, fiz questão de que fosse história. Está nalgumas universidades. Desde 2009 que integra os curricula do mestrado em Psicologia na Lusófona. Sou convidada com alguma frequência para palestras - por exemplo, no Instituto Camões em Vigo -, estive por duas vezes no Hospital Conde de Ferreira, em colóquios e no Júlio de Matos. Com o título Lucide Folie, está traduzido em francês, integrando o catálogo da Hachette.




Havia quem conhecesse o caso ou foi uma surpresa para a maioria?
Foi uma grande surpresa para a maior parte das pessoas, e ainda continua a ser, embora algumas tivessem visto ou ouvido falar do filme da Monique RutlerSolo de Violino, a quem presto homenagem e refiro no livro, e de quem falo sempre que me pedem contactos que ajudem a aprofundar ou a reviver este caso.

Além do romance de Agustina Bessa-LuísDoidos e Amantes, nada mais existe a nível literário que reflita este caso. A história de amor não justifica ou deve-se a desconhecimento?
A história que Agustina conta é ficção. Nem Manuel Claro era homossexual como ela pretende nem Maria Adelaide uma ignorante lésbica, como sugere. Aliás, a história de amor deles é completamente desvalorizada por Bessa-Luís, embora tivesse sido contactada pelas mesmas pessoas que posteriormente me contactaram para darem o seu testemunho sobre o casal, e a vida de ambos, no Porto. Os tais 40 anos que ficaram a faltar no filme. Acho que as histórias verdadeiras, sobre as quais há muita documentação, conhecida ou referida, tornam-se um pouco desmotivantes enquanto objeto literário. Como encontrar um ângulo novo? O que haverá ainda para descobrir? Um dia, mais tarde, certamente alguém irá pegar-lhe novamente. É uma história exemplar, de uma grandeza rara.

Qual foi a parte mais difícil de escrever?
Foram várias. A angústia e o secretismo com que Maria Adelaide abandona a casa, sem saudade alguma, mas com o coração muito apertado quando espreita, sem conseguir entrar, o quarto do filho. O encontro, numa pastelaria da Baixa, com a irmã, a quem não diz o que vai fazer, mas tem de controlar as lágrimas enquanto conversam. E, por fim, o medo. Ao entrar na estação do Rossio, ao entrar no comboio... E se a reconhecem? O coração aos saltos... Também foi difícil escrever aquele episódio terrível em que ela e o Manuel são literalmente "caçados" no Rossão e sob os olhares do povo, levados para uma taberna (estive lá, vi os locais que descreve), onde passam a noite, sobre uns fardos de palha, rodeados de polícias, de bêbados, mimoseados com gargalhadas e comentários obscenos. O Manuel foi magnífico. Protegeu-a, amparou-a. Depois, e sob chuva e neve, manhã cedo e a cavalo (ela), o Manuel e o primo a pé numa viagem dolorosa, até que os separem. E, claro, os tempos que ela passou no hospital, os dias no pavilhão das criminosas, sem poder falar com ninguém, vigiada a tempo inteiro, fechada. O regime do manicómio era brutal. A escrita deste livro fez-me percorrer uma gama de sentimentos e emoções muito ampla.

O caso teve uma grande componente psiquiátrica, uma "ciência" ainda pouco confiável à época. Este tornou-se um caso de estudo ou Adelaide Coelho não interessou aos profissionais da área?
Não foi único e a historiografia contemporânea tem vindo a debruçar-se sobre este e outros casos. Recordo que, ainda em 1920, A Capital publicou várias reportagens sobre o Conde de Ferreira e denuncia o sistema tido quase por normal, em que, com apoio de psiquiatras e a pedido de famílias de meninas ou senhoras ricas, as internam nos manicómios por "castigo" e para lhes ficarem com as fortunas. O que torna tão surpreendente este caso é a vigorosa defesa que Maria Adelaide faz em praça pública, dando ao prelo as suas memórias, e continuando a partilhar descrições vivíssimas dos quotidianos de um hospital de doidos nas páginas de um jornal. Isto melindrou a classe médica/psiquiátrica e extremou posições. Foi um "milagre" histórico este "lavar de roupa suja" - tudo se passa numa época sem censura. A partir de 1926, nada se teria desenrolado da mesma maneira. A opinião pública teve um peso decisivo. Na Alemanha, também houve um surto destes, abrangendo homens e mulheres. Muitos publicaram em folhetim as suas experiências, e as denúncias foram muito abundantes e detalhadas. Foi um escândalo na Alemanha, por volta de 1900. Estou a trabalhar alguma dessa informação, que é bem interessante. Tal como aqui, o tema dos internamentos e a prepotência que emergiu das denúncias levou o assunto ao Parlamento e a legislação sobre os internamentos foi alterada. Cá também.

Na sua escrita, voltou a encontrar um caso real que a seduzisse como este?
A biografia de imperatriz Isabel de Portugal também me envolveu muitíssimo e ainda demorei mais tempo a investigar e a escrever. Mas este caso é muito, muito especial.

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