sexta-feira, junho 27, 2014

De África, em sonhos, regresso ao Porto

Foi um sonho recorrente da minha adolescência em África, que se prolongou pelos anos da juventude. Sempre o mesmo. Terá começado por volta de 1967, 1968 e continua tão nítido que acabei por fixá-lo em narrativa no livro. O poder que os lugares de inicio têm sobre nós é avassalador. Durante anos, tentei um regresso impossível à cidade que me viu nascer, e que reencontro sempre com o mesmo fascínio e melancolia, porque as portas, aquelas, já não dão para os mesmo lugares, e mesmo que pudessem dar, os rostos que se ocultam por detrás delas já não são os que procuro. Mas o tempo ensina-nos a defender-nos das armadilhas da saudade. O tempo ensina-nos a prescindir da saudade.

Avenida da Boavista
cortesia blogue Amar o Porto+


«Ovos estrelados no chão»

«Estou na esquina da Avenida da Boavista com a Rua de Amarante, estranhamente silenciosa e vazia, a andar em direcção à nossa casa. Paro diante do portão fechado, o n.º 68, e fico a olhar as janelas de persianas corridas. Então, sigo em frente, mas agora o que era muito perto torna-se muito longe, à medida que as ruas se enovelam em labirinto. Quando, por fim, chego diante da casa que procuro, deparo-me invariavelmente com portões fechados, janelas cegas e campainhas mudas. Quando aparece alguém, é sempre alguém desconhecido que me diz que a pessoa ou as pessoas que procuro já nem moram ali. Essas pessoas que procuro em vão, mas com tanto empenho, chamam-se sempre Gracinha Granchinho e Cristina Canavarro. As grandes amigas de uma infância irrecuperável.

E depois, acordava com uma insuportável sensação de nostalgia, afogada no ar abafado de Tete, a cidade em cujas pedrinhas da calçada se estrelavam ovos, não porque fosse essa a maneira de os cozinharmos, mas como demonstração rigorosa de um facto cientificamente comprovado que se demonstrava eventualmente aos recém-chegados:

— Vejam só o calor que é preciso para se conseguir fazer isto.

A sensação de desmesura da paisagem, e a ausência de marcos familiares, acentuava a minha solidão, mas ao mesmo tempo, e de uma forma que não consigo explicar, arrebatava-me, por vezes, para lá de todos os limites. Sobretudo quando chovia. As chuvas, nas regiões tropicais, são o corolário do tempo quente. Aliás, no verão o céu está frequentemente enublado e só clareia por completo após trovoadas brutais que se desatam em violentos cordões de água que fustigam a terra seca em bênçãos diluvianas. Nessa altura, eu e a Bé corríamos para o jardim, ou para um pequeno terraço que não consigo localizar, penso que fazia parte da nossa casa, onde, de braços no ar, deixávamos que a água nos molhasse até às entranhas, os rostos virados para o céu escuro e riscado de relâmpagos, estilhaçando-se ao ribombar de cada trovão.

Sentia então que, se um daqueles clarões que dilaceravam em ziguezague o céu prenhe de nuvens negras me trespassasse, o aceitaria com a mesma alegria selvagem com que bebia o cheiro da terra esfomeada a fumegar através de mil e uma bocas de lama, recebendo a água que nos molhava o corpo até à alma como se fora uma bênção. E, rodopiando, de braços erguidos, tornava-me da terra, do céu, do ar, da água e do fogo, dividida e reunida nos elementos primordiais, até voltar ao meu pequeno corpo encharcado que era quando a mãe dizia «que raparigas tão tolas, vão mudar de roupa e secar esses cabelos, que ainda se constipam».


Tempestade em África
cortesia do blogue d'Morais


[Adaptado de - Moçambique para a mãe se lembrar como foi]



 

quinta-feira, junho 26, 2014

«Grande testemunho desse tempo!»

Em menos de três semanas, já está em 4º lugar no Top não ficção nas livrarias Bertrand. E nas boas graças dos leitores que dizem, e alguns escrevem, coisas assim:

«Começando a ler-se o livro, "galopa-se" a toda a "velocidade" numa leitura louca para se conhecer o próximo capitulo.» - Carlos Mota Silva Alves

«Já acabei de ler o livro e foi uma leitura sôfrega de tanto me rever em muitas das suas páginas. Terminei-o de madrugada, quase dia, dividida entre a leitura que me desafiava e o trabalho que me esperava. Momentos apaixonantes. Um livro apaixonante. Quem "viveu" assim, realmente "viveu"...» - Recados Do Tempo

«Para mim foi uma catarse. Muito gostava de falar com a escritora. Estive lá precisamente nessas datas e locais. Um relato emocionante e rigoroso.» - José Sacadura

«grande testemunho desse tempo!» - Maria Alagoa (facebook)

«Viajo no tempo, nas lembranças boas da vida!» - Fátima Campos (facebook)

«Quem viveu em Moçambique ao ler este livro vai certamente recordar a vida de africa .Muito bem escrito, parabéns por ter escrito. Estou quase acabar de o ler ,nasci e vivi em Moçambique» - Judite Costa (facebook)
 


«Uma memória, pessoal mas com o devido enquadramento histórico, de quase uma década de vida em Moçambique. Com a mais-valia de nos trazer, de modo muito fiel, o que eram as vivências quotidianas da classe média colonial ao longo dos anos 60 e inícios de 70, nomeadamente com o eclodir da guerra colonial.
Esta mais-valia é particularmente significativa, porquanto a experiência pessoal da autora, na maior parte da sua estadia, fez-se fora dos grandes centros urbanos, pelo contrário, em lugares remotos, como Tete e Vila Cabral, onde a experiência da guerra conheceu dois dos seus epicentros.
Um livro essencial para todos quantos se interessam pelo passado colonial português, nomeadamente para os que o viveram em Moçambique.» -  Miguel (5 stars em Goodreads)

«Vou na terceira leitura, bebendo, agora degustando calmamente, quanto possível, as várias passagens e a sua prosa apaixonante pois foi escrita com alma e grande sentimento. Por vicissitudes várias, de saúde, a minha memória apagou-se muito. mas não foi só para a sua Mãezinha se lembrar como foi, foi, e muito, para mim, pois veio-me tudo à cabeça com aqueles nomes todos de lugares e pessoas.» - José Sacadura (facebook).

«Uma vida no antigamente dos tempos. Uma vida. Esta. A dela. Uma entre muitas. Todas iguais. Todas diferentes. Uma vida. No antigamente dos tempos. Contada com leveza. Contada com graça. Contada com bom humor. Contada sem acrimónia. Acrimónia? Porquê acrimónia? Vendo bem, vendo bem, foi uma grande aventura! No antigamente dos tempos. Uma vida. Esta. A dela. Uma entre muitas. Todas iguais. Todas diferentes.» - Álvaro Athayde (5 stars em Goodreads).


«Estou a gostar tanto!» - Ana Maria Fonseca

 

quarta-feira, junho 25, 2014

«un registre aussi rigoureux que séduisant»

Do mural de Poisson Volant, retiro as palavras da editora francesa sobre o meu percurso literário:
 
«Aujourd'hui, je vous présente l'auteure de la biographie "Isabelle de Portugal, l'Impératrice". Qui est Manuela Gonzaga ? Vous connaissez Manuela ? Vous connaissez son travail ? Faites-nous partager votre expérience!!
You know Manuela? You know her work? Let us know!
Conhecem a Manuela? Conhecem os livros dela? Deixem aqui as mensagens!
Merci! Thanks! Obrigada! 

 



 Voici sa bio en quelques mots :
 
Manuela Gonzaga (Porto, 1951) est déjà une auteure reconnue. En plus de nombreux titres publiés, dans des genres allant de la fiction à la biographie, en passant par la littérature pour la jeunesse, elle a signé d'innombrables articles dans la presse, au fil de presque trente ans de journalisme. Elle a finalement abandonné cette dense carrière de journaliste pour se consacrer, à temps plein, à l'écriture et à la recherche. Détentrice d'un Master d'Histoire de l'Expansion portugaise et chercheuse associée au Centre d'Histoire d'Outre-mer (CHAM) de l'Universidade Nova de Lisbonne, elle nous a habitués dès sa première œuvre à un registre aussi rigoureux que séduisant, croisant les époques et les mœurs dans un langage toujours accessible à tous. L'Oficina de Escrita, qui représente son passage dans le monde du journalisme, sa solidité académique, et son imagination prodigieuse - que nous ne sommes pas les premiers à lui reconnaître - confèrent à ses livres un ton singulier et profondément attirant.
 
C'est encore une fois le cas avec cette biographie d'Isabelle de Portugal, qui se dévore comme un roman, au point qu'on en oublierait presque les recherches scientifiques sur lesquelles elle repose. Sa vie en Afrique, en Angola et au Mozambique (où elle a passé son adolescence et une partie de sa jeunesse), ainsi que les voyages qui se sont succédé tout au long de sa vie ne sont certainement pas étrangers à la pluralité de son registre et à la diversité de ses intérêts. Alors, comme elle l'affirme elle-même, son monde, c'est le monde entier.»

O livro, na Amazon: Isabelle de Portugal, L'Impératrice

Foto da autora: Frederico Teles
 

Isabel de Portugal em francês

A «minha» Imperatriz Isabel de Portugal, numa tradução soberba de Laure Collet, chegou ao mercado editorial francófono através da muito jovem editora Poison Volant cujo mote é delicioso -
Avec Le Poisson Volant, des livres électroniques à dévorer sans modération - encontrando-se já disponível na Amazon.
Tiziano Vecellio (1548), Isabel de Portugal, Museu do Prado, Madrid

É naturalmente uma grande alegria para um autor ver o primeiro dos seus livros, neste caso o décimo de uma lista de obras publicadas, cruzar as fronteiras da língua materna e ganhar outros espaços. E saber que, discretamente, sem fanfarras nem títulos de jornais, este livro, esta biografia que dizem ler-se como um romance, apesar do aparato cientifico que a suporta, já foi alvo do interesse de leitores de língua francesa e que, na página da Amazon onde se aloja, já figuram duas criticas a Isabelle de Portugal, L'Impératrice: Le pouvoir au féminin au XVIème siècle [Format Kindle]

Os livros têm vida própria, e o que lhes acontece depois de saírem das nossas mãos é sempre um mistério.
 

segunda-feira, junho 23, 2014

E a guerra? Sim, a guerra no Niassa

E a guerra? Sim, a guerra. A partir de certa altura já estava lá, tão perto e tão longe como o recorte incandescente das queimadas a contornar a paisagem africana. Era uma ameaça real, mas o perigo era remoto. Estava contido numa fronteira delimitada a fogo. Até ao dia em que se aproximou demais.

Para mim, essa fronteira esteve sempre trancada noutras margens e, com o desenrolar dos dias, coberta de olvidos. Quando, tantos anos depois. pensava que nunca fora realmente tocada por ela, os meus sonhos povoavam-se de soldados, patrulhas, helicópteros, leões e leopardos emboscados sob o capim, gritos abafados, correrias, a terrível sensação de um perigo omnipresente e impalpável que podia vir de todos os lados e de lado nenhum assinável ou previsível. Então acordava num sobressalto de agonia e alívio e transliterava o sonho para a realidade. E atribuía-lhe leituras simbólicas ligadas ao meu irreal quotidiano.

Desfile de tropas junto ao quartel em Vila Cabral
[cortesia Eduardo Maria Nunes, ex-soldado Sapador, Batalhão de Caçadores 598]

Só agora, no percurso deste livro, percebi que a raiz é mais funda, mais profunda, mais vital. A guerra, sim. Vivemos às portas dela. Respirámos o seu bafo envenenado. Desviámo-nos dos seus caminhos, mas tropeçávamos nos feridos, nos mortos, nos mutilados. Do nosso lado. Do outro? Nada sabíamos, para além da versão oficial. E na versão oficial é que, reduzidas as coisas a dois campos, os «bons» e os «maus», ou ainda mais legível, os «índios» e os «cobóis», nós eramos os cobóis. Nós eramos os bons.

Em todo o caso, quando chegámos a Vila Cabral, a guerra era uma ficção estrangeira, criada para desestabilizar os nossos redutos de paz, progresso e civilização - pilares da missão evangelizadora do povo português, e atribua-se a este aforismo todas as aspas necessárias, pois cito de cor a propaganda do regime, que interiorizávamos e tínhamos por verdade única. Não conhecíamos outra.

Em todo o caso, por mais pacifico que estivesse o território moçambicano, a pequena cidade do Niassa estava a ser literalmente invadida por soldados de camuflado, que, ao fim do dia, se vestiam à civil. E por viaturas militares de todos os géneros, que saiam da cidade em coluna, como se houvesse guerra, que não havia no auspicioso final de 1963, começos de 1964, mas que davam uma tonalidade excitante aos nossos quotidianos pasmados e estava a contribuir para o crescimento de Vila Cabral, já que, quando não estavam no quartel, nos vários quartéis espalhados pelo imenso distrito, os militares gostavam de comer, beber, ir ao cinema e de fazer compras como toda a gente. Também gostavam de dançar e de ir aos bailes da Pousada, que aliás eram abrilhantados por grupos musicais constituídos por soldados da Metrópole.

Na (ainda) aparente paz do Niassa.
O texto é inspirado no livro Moçambique para a mãe se lembrar como foi


Agradeço a «MOÇAMBIQUE - IMAGENS - Cedidas por ex-Combatentes ou em sites próprios» em Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, Angola - Guiné - Moçambique, 150-1975..  

domingo, junho 22, 2014

De Nacala ao Catur: a viagem

A nossa viagem africana só começou verdadeiramente em Nacala, onde chegámos a 28 de Setembro, entrando na belíssima e imensa Baía Fernão Veloso e aportando ao seu cais desolado para quem tinha contemplado os portos fervilhantes como os de Luanda, Cidade do Cabo, Lourenço Marques e Beira. Para trás, o conforto e o luxo do Império, onde tantas demonstrações de carinho nos tinham sido prodigalizadas. O comandante Vasconcellos fez-nos até acompanhar por elementos da tripulação até ao comboio que saía do porto, e que nos levaria de Nacala ao Catur. Antes, tinha dado ordens para que das cozinhas nos providenciassem um maravilhoso farnel, que vinha acomodado em dois formidáveis cestos de verga, mau grado os protestos da nossa mãe que lhe assegurava não ser preciso, já que quando tivéssemos fome, íamos ao wagon restaurante:

- Senhora dona Maria Leonor: estamos em África. Acredite que isto vai ser muito útil.
O dia estava quentíssimo quando entramos no comboio do Catur, ocupando uma duvidosa «primeira classe» composta por umas poucas carruagens velhas. Que grupinho extravagante nós eramos! Uma senhora no seu saia casaco de linho cru, blusa de seda creme às pintinha pretas com laço, e quatro crianças muito bem vestidas, mas cuja roupa em breve ficaria amarfanhada e, sobretudo muito suja das fagulhas que a locomotiva vomitava incessantemente.

- Senhor revisor, a que horas servem as refeições?
- Quais refeições, minha senhora?


Estação do Catur, cortesia de Furriel Santos
[publicada em CCAV 2315, 29/04/2010]

Não havia, como o nosso comandante estava fartíssimo de saber, qualquer carruagem restaurante e muito menos algo que remotamente se pudesse chamar «bar». Abençoadamente, os cestos revelaram frutas de várias espécies, muito bem acondicionada e em quantidade. Garrafas de água e de sumos. Empadas, sanduiches, queijos fatiados, pães acabados de sair dos fornos das cozinhas do Império, frangos assados e trinchados, bolos, bolachas, e sei lá mais o quê.

E assim seguimos de Nacala para o Catur, num comboio de filmes de cobóis[1], puxando por uma asmática locomotiva a vapor, que subia as serras a passo de caracol sobre uma linha férrea tão estreita que parecia feita de carris de elétricos. Por vezes, num troço mais íngreme, os passageiros tinham de sair para a locomotiva conseguir arrastar as composições atrás de si. Como íamos em primeira classe nunca nos solicitaram tal. Mas sempre que o comboio parava, a nossa cabine enchia-se de africanos. Não nos faziam mal, mas era assustador. Entravam por ali dentro a rir, falando entre si enquanto apontavam para nós, criaturas tão bizarras, e chegavam a mexer-nos nos cabelos. Outros, da plataforma das estações, debruçavam-se para dentro das janelas, nos mesmos propósitos, motivo pelo qual passámos a viajar de janela fechada, apesar do calor intenso que fez durante o resto do dia, e se prolongou pela noite dentro.
Foi então que o revisor veio pedir à mãe autorização para nos trancar pelo lado de fora, por dentro não era possível, para que não continuássemos a ser incomodados pelas gentes curiosas, que se perdiam de riso com os «maçaricos» que éramos, tão verdes nas coisas de Africa, e sobretudo tão branquinhos. Querido senhor que, amiúde, vinha confirmar se estávamos bem, ou se precisámos de ir à casa de banho, uma espelunca onde todo o cuidado era pouco para não tocar em quase nada. [...] 

[adaptado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi]
 

[1] Encontrei descrições deste comboio e desta viagem em Eduardo Maria Nunes, Batalhão de Caçadores, http://batalhaodecacadores598.blogspot.pt/2010/03/navio-patria-de-lisboa-nacala.html
Outra boa descrição em «O Comboio do Catur», CCAV Companhia de Cavalaria 2415 – Moçambique 1968/1970, http://ccav2415.blogspot.pt/2009/09/o-comboio-do-catur.html consult. 9/05/2013.

 

sábado, junho 21, 2014

O restaurante do Grego Carlettis

A presença portuguesa em Tete data dos primórdios do seculo XVI.

A cidade, nos nossos dias de ontem, tinha um comércio efervescente, muito do qual concentrado na rua Rafael Bivar onde vivemos durante alguns meses. Para além das duas lojas dos Bega, havia a Socote, a Valy Ossman, a Fersope, a Tulcidás – esta pertencia ao pai do nosso amigo e companheiro de colégio, Rajú, e outras, onde encontrávamos os produtos exóticos que os indianos importavam do vasto e misterioso continente de onde os mais velhos eram originários, e os produtos igualmente exóticos da ainda mais remota China. As sedas, as lacas, os tecidos refulgentes, as missangas de todas as cores, as escamas nacaradas e os vidrilhos das roupas de festa; as porcelanas de Cantão; as arcas de canfora, sempre perfumadas. Os incensos, os perfumes e os unguentos os cosméticos orientais; as loiças; os móveis; os tapetes, as tapeçarias, e os quadros em telas pintadas com deusas cheios de braços, e deuses com trombas de elefante.

A cidade tinha, então, vários hotéis, dois cinemas, o velho São Tiago e o Estúdio 333, convenientemente climatizados, três intervalos para nos vermos bastante uns aos outros, e falarmos tudo o que havia para falar. Para além do cinema, vizinho do rio, a cidade tinha bares, cafés, restaurantes. E muitas lojas como a ourivesaria Mateus, a boutique Camelot da Teresa Batalha, a Papelaria Lopes e o Christos Luscos que também vendia livros e todo o comércio que se possa imaginar, bancos, companhias de seguros, stands de compra e venda de automóveis, casas de ferragens.


Ancestral entreposto das rotas do ouro do Monomotapa, a cidade exumava toda uma história escondida que só muitos anos mais tarde comecei a entrever, pois naqueles tempos, as seculares pedras do forte, as paredes das igrejas, testemunhos de instalação portuguesa no local, e os nomes dos rios, serras, planuras, ainda não falavam comigo. O que eu via era o que estava diante de todos nós. M arcas de presença colonial nos palácios do governo, nas casas do Intendente e do Administrador e nos quartéis, construção relativamente recente. E outros referenciais de paisagem, de saborosas histórias. Por exemplo, o restaurante do grego Carlettis, que ficava no alto de um morro na então avenida Gabriel Teixeira, antigo governador-geral de Moçambique, com vista soberba sobre o rio. Quando o dono não se zangava com os clientes, expulsando-os e deitando a comida fora, comia-se ali divinalmente.

Um desses episódios marcou as conversas durante muito tempo. Foi quando o irascível Grego viu um comensal ilustre – integrava uma comitiva oficial que se deslocara de Lourenço Marques a Tete, provavelmente já por instâncias da construção da barragem de Cabora Bassa, muito para breve – a limpar distraída e automaticamente o prato com o guardanapo:

– Se não confiam na limpeza da louça que ponho na mesa, também não confiam na minha comida. Rua!!

Foi em vão que se intercedeu junto dele. A refeição já fora encomendada, era aguardada ansiosamente porque o restaurante era famosíssimo pela sua excelência, e, àquela hora, deslocar para outro restaurante, um grupo de altas individualidades, ligadas ao governo central, e com a barriga a dar horas, tornava-se assaz complicado. Em vão. Os comensais saíram de orelha murcha e comida foi directamente dos tachos e das panelas para o saco do lixo. Intocada. «É muito boa pessoa, mas tem um feitio…», comentava-se.

[Adaptado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi]

Nota - para se saber mais sobre Os Prazos da Coroa do Zambeze o link para um artigo cientifico com bibliografia de reconhecida credibilidade.

sexta-feira, junho 20, 2014

Moçambique, o livro, a festa





























Foi tão bonita a festa. A Bicaense a deitar por fora. A rua animada. Os múltiplos reencontros e encontros. Amigos e Amigas de sempre, de há tanto tempo, de há menos tempo, de coração sem tempo. As apresentações, a cargo de João Craveirinha e João Paulo Oliveira e Costa. E de Eduardo Boavida, as always. O envolvimento caloroso e generoso de toda a equipa da Bertrand desde que o livro, em formato final, chegou à editora, até ao seu lançamento. A presença ausente de a Mãe. A rua cheia. E o restaurante em frente, o Matchik Tchik de onde vieram os belos petiscos moçambicanos e onde acabámos a noite.

Mesmo quem não apareceu e era importante que aparecesse, esteve presente. A distancia não conta, quando se está perto.