Eu estava a planar. A massagem pusera-me num estado quase onírico. Não havia imagens, memórias, sons, emoções. Não havia nada. As mãos da Leonice - ela chama-se Leonice - acordam os mais diversos estados, nomeadamente este, o da tranquilidade total. Curiosamente, o tipo de massagem que ela pratica dispensa o toque. As mãos estão sempre ligeiramente afastadas do nosso corpo vestido. É pura energia, o que se passa nessa troca, e eu, e todas e todos os que fazemos com ela uma «sacro-craniana» dizemos, de uma forma ou de outra, que as mãos dela têm olhos.
Às vezes, há pessoas completamente tensas, que desatam a rir durante a sessão. E depois voltam e voltam para deitar fora o peso, e o colete de forças emocional que as esmaga e quase não as deixa respirar. Outras e outros dormem, ou choram, ou falam, ou sentem ou purgam porque muita gente faz com ela a recuperação de pós operatórios complicados. E há as pessoas que, por vezes e aparentemente, não sentem nada, que era o que eu estava a sentir quando ela me perguntou se eu tinha vontade de chorar ou se estava comovida. Eu não tinha. Eu não estava. Mas fiquei alerta:
- Porquê?
Ela disfarçou mas eu não a larguei mais. Então, e com muito pudor, e algum rodeio, a Leonice disse que estava a sentir uma «menina bem sentadinha no meu peito». Bem no «chakra do coração». Eu pensei, pensei, e continuei a não sentir nada. Depois lembrei-me.
- Ah, Leonice, é verdade! Eu ando com uma menina às voltas na cabeça. A menina que eu era aos doze anos, quando sai de Portugal e fui para África - aqui hesitei, não tinha ainda contado a quase ninguém, mas depois disse-lhe: - É que comecei a escrever as minhas, as nossas memórias dessa altura. Mas esse processo está na cabeça. Neste momento entrámos no navio Império e a viagem está a começar.
A massagem tinha acabado, mas ela insistiu:
- É no coração mesmo, que essa menina está sentadinha. Eu senti-a. Bem forte, bem firme. Uma energia tão adolescente e ainda tão infantil. Não tem nada a ver com a cabeça. Cabeça tem outras coisas.
Nessa altura é que eu ia quase chorando. A Leonice nem sequer sabia que eu era escritora. A Leonice não podia saber sequer o que eu estava a escrever, porque só a minha mãe, que tem Alzheimer e se esquece de tudo ao fim de cinco minutos, é que sabia. E então percebi que aquela menina que eu fui e estava a acordar, página a página, continuava viva! Profundamente viva. Não era só uma lembrança.
Tão viva que se pôs a crescer ao longo do processo da escrita destas memórias, ajudando-me a desenrolar o fio dos tempos. Foi ela também que me trouxe tanta gente nova e miúda dos tempos antigos, que vieram celebrar o nascimento de mais um livro. Somos todos e todas avós, ou tias, tios avós, mas somos todos e todas ainda tão jovens e crianças.
Como as mãos da Leonice sabiam muitíssimo bem.
O maravilhoso navio Império onde vivemos quase um mês entre Lisboa e Nacala |
Às vezes, há pessoas completamente tensas, que desatam a rir durante a sessão. E depois voltam e voltam para deitar fora o peso, e o colete de forças emocional que as esmaga e quase não as deixa respirar. Outras e outros dormem, ou choram, ou falam, ou sentem ou purgam porque muita gente faz com ela a recuperação de pós operatórios complicados. E há as pessoas que, por vezes e aparentemente, não sentem nada, que era o que eu estava a sentir quando ela me perguntou se eu tinha vontade de chorar ou se estava comovida. Eu não tinha. Eu não estava. Mas fiquei alerta:
- Porquê?
Ela disfarçou mas eu não a larguei mais. Então, e com muito pudor, e algum rodeio, a Leonice disse que estava a sentir uma «menina bem sentadinha no meu peito». Bem no «chakra do coração». Eu pensei, pensei, e continuei a não sentir nada. Depois lembrei-me.
- Ah, Leonice, é verdade! Eu ando com uma menina às voltas na cabeça. A menina que eu era aos doze anos, quando sai de Portugal e fui para África - aqui hesitei, não tinha ainda contado a quase ninguém, mas depois disse-lhe: - É que comecei a escrever as minhas, as nossas memórias dessa altura. Mas esse processo está na cabeça. Neste momento entrámos no navio Império e a viagem está a começar.
A massagem tinha acabado, mas ela insistiu:
- É no coração mesmo, que essa menina está sentadinha. Eu senti-a. Bem forte, bem firme. Uma energia tão adolescente e ainda tão infantil. Não tem nada a ver com a cabeça. Cabeça tem outras coisas.
Nessa altura é que eu ia quase chorando. A Leonice nem sequer sabia que eu era escritora. A Leonice não podia saber sequer o que eu estava a escrever, porque só a minha mãe, que tem Alzheimer e se esquece de tudo ao fim de cinco minutos, é que sabia. E então percebi que aquela menina que eu fui e estava a acordar, página a página, continuava viva! Profundamente viva. Não era só uma lembrança.
Aos 12 anos numa fazenda algures no Niassa com uma senhora que já não sei quem é e um cão que não recordo o nome |
Tão viva que se pôs a crescer ao longo do processo da escrita destas memórias, ajudando-me a desenrolar o fio dos tempos. Foi ela também que me trouxe tanta gente nova e miúda dos tempos antigos, que vieram celebrar o nascimento de mais um livro. Somos todos e todas avós, ou tias, tios avós, mas somos todos e todas ainda tão jovens e crianças.
Como as mãos da Leonice sabiam muitíssimo bem.
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