domingo, junho 15, 2014

O Jorge foi para o Furancungo

O meu irmão mais velho ainda era tão novo que não tinha medo das minas, das emboscadas, dos tiros, da estrada esfarrapada, uma tira estreita e traiçoeira estendida em ziguezague pelos precipícios da Angónia. Viajava sem arma - «se me apanham com uma é que estou feito!» - e, em Tete, fazia-se anunciar pelo ronco da sua Susuki 50, que surgia inesperadamente pela rua calma, irrompendo pelo quintal da casa a cuspir matope (lama) ou poeira pelo tubo de escape, consoante as estações do ano, e abraçava-nos mesmo assim.


O Jorge nos tempos do Furancungo (1968)


Vinha tão sujo que mais parecia um alegre demónio quando saltava da mota e tirava os óculos, deixando bem visível a marca branca em torno dos olhos, a contrastar com o tom vermelho escuro da cara, das mãos, e até do corpo, porque a terra entranhava-se-lhe pela roupa e metia-se-lhe pela pele. O Jó não usava capacete, nem fatos de couro, nem nada que remotamente se assemelhasse a uma protecção. Ninguém usava. E depois, à mesa, como se habituara na solidão do mato, num automatismo estimulado pela companhia de vários gatos que o tinham adoptado, fazendo-lhe o favor de invadirem a sua casa naquele Limes do império português, deitava para o chão as sobras do prato, perante o olhar estarrecido da nossa mãe.

Vinha sempre muito bem-disposto, muito sujo e muito esfomeado depois de cumprir os quase duzentos quilómetros de ‘estrada’, cujo perigo maior porém, era o seu imponderável piso de lama na época das chuvas, ou de cratera lunar no tempo seco, eventualmente e por então semeado de minas.
Era por esse o motivo, e não por ser doido varrido como parecia, que o Jó nunca integrava as colunas militares, preferindo viajar sozinho do Furancungo para Tete ou de Tete para o Furancungo. Quatro, cinco horas, a cavalo naquela motinha, cujo branco inicial desaparecia ao fim de uns poucos quilómetros de estrada, e sem uma arma sequer. A mãe perguntava-lhe, numa angustia, porque é que não viajavam em coluna militar «como toda a gente», e ele respondia, invariavelmente que

– É sobre as colunas que que eles atiram, mãe. 

E que, de mota, vinha «nas bermas ou pelo meio da estrada, onde ninguém põe minas. As minas são colocadas no sítio do rodado das viaturas».

– Mas … os precipícios…

– Ah, mas eu sou muitabom e já conheço o caminho de ginjeira. 

Este fragmento de um diálogo recorrente, pelo menos nos primeiros meses em que o Jorge foi para o Furancungo, sede de conselho, muito próximo das fronteira do Malawi, ficou-me gravado na memória, assim como alguns episódios, quase caricatos, das suas idas e vindas, mau grado a angustiante incerteza em que nos deixava quando, tão de repente como aparecia se punha outra vez a caminho, prometendo logo que chegasse, comunicar por rádio com o operador central em Tete, o qual nos fazia chegar a sua mensagem tranquilizadora. Mas por vezes, esta confirmação tardava o que levava a nossa mãe a precipitar-se para o Governo Civil a pedir, com carácter de urgência, informações sobre o seu rico filho. Nós, ainda fomos visitá-lo algumas vezes - de «táxi aéreo». Vinte minutos Tete-Furancungo.

E um abraço apertado e sem fim.


O célebre Morro do Elefante
 

Um monumento estranhíssimo - à saída ou entrada do Furancungo


Pará nós, a única alternativa viável era ir pelo ar

 

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