E a guerra? Sim, a guerra. A partir de certa altura já estava lá, tão perto e tão longe como o recorte incandescente das queimadas a contornar a paisagem africana. Era uma ameaça real, mas o perigo era remoto. Estava contido numa fronteira delimitada a fogo. Até ao dia em que se aproximou demais.
Para mim, essa fronteira esteve sempre trancada noutras margens e, com o desenrolar dos dias, coberta de olvidos. Quando, tantos anos depois. pensava que nunca fora realmente tocada por ela, os meus sonhos povoavam-se de soldados, patrulhas, helicópteros, leões e leopardos emboscados sob o capim, gritos abafados, correrias, a terrível sensação de um perigo omnipresente e impalpável que podia vir de todos os lados e de lado nenhum assinável ou previsível. Então acordava num sobressalto de agonia e alívio e transliterava o sonho para a realidade. E atribuía-lhe leituras simbólicas ligadas ao meu irreal quotidiano.
Só agora, no percurso deste livro, percebi que a raiz é mais funda, mais profunda, mais vital. A guerra, sim. Vivemos às portas dela. Respirámos o seu bafo envenenado. Desviámo-nos dos seus caminhos, mas tropeçávamos nos feridos, nos mortos, nos mutilados. Do nosso lado. Do outro? Nada sabíamos, para além da versão oficial. E na versão oficial é que, reduzidas as coisas a dois campos, os «bons» e os «maus», ou ainda mais legível, os «índios» e os «cobóis», nós eramos os cobóis. Nós eramos os bons.
Em todo o caso, quando chegámos a Vila Cabral, a guerra era uma ficção estrangeira, criada para desestabilizar os nossos redutos de paz, progresso e civilização - pilares da missão evangelizadora do povo português, e atribua-se a este aforismo todas as aspas necessárias, pois cito de cor a propaganda do regime, que interiorizávamos e tínhamos por verdade única. Não conhecíamos outra.
Em todo o caso, por mais pacifico que estivesse o território moçambicano, a pequena cidade do Niassa estava a ser literalmente invadida por soldados de camuflado, que, ao fim do dia, se vestiam à civil. E por viaturas militares de todos os géneros, que saiam da cidade em coluna, como se houvesse guerra, que não havia no auspicioso final de 1963, começos de 1964, mas que davam uma tonalidade excitante aos nossos quotidianos pasmados e estava a contribuir para o crescimento de Vila Cabral, já que, quando não estavam no quartel, nos vários quartéis espalhados pelo imenso distrito, os militares gostavam de comer, beber, ir ao cinema e de fazer compras como toda a gente. Também gostavam de dançar e de ir aos bailes da Pousada, que aliás eram abrilhantados por grupos musicais constituídos por soldados da Metrópole.
O texto é inspirado no livro Moçambique para a mãe se lembrar como foi
Agradeço a «MOÇAMBIQUE - IMAGENS - Cedidas por ex-Combatentes ou em sites próprios» em Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, Angola - Guiné - Moçambique, 150-1975..
Para mim, essa fronteira esteve sempre trancada noutras margens e, com o desenrolar dos dias, coberta de olvidos. Quando, tantos anos depois. pensava que nunca fora realmente tocada por ela, os meus sonhos povoavam-se de soldados, patrulhas, helicópteros, leões e leopardos emboscados sob o capim, gritos abafados, correrias, a terrível sensação de um perigo omnipresente e impalpável que podia vir de todos os lados e de lado nenhum assinável ou previsível. Então acordava num sobressalto de agonia e alívio e transliterava o sonho para a realidade. E atribuía-lhe leituras simbólicas ligadas ao meu irreal quotidiano.
Desfile de tropas junto ao quartel em Vila Cabral [cortesia Eduardo Maria Nunes, ex-soldado Sapador, Batalhão de Caçadores 598] |
Só agora, no percurso deste livro, percebi que a raiz é mais funda, mais profunda, mais vital. A guerra, sim. Vivemos às portas dela. Respirámos o seu bafo envenenado. Desviámo-nos dos seus caminhos, mas tropeçávamos nos feridos, nos mortos, nos mutilados. Do nosso lado. Do outro? Nada sabíamos, para além da versão oficial. E na versão oficial é que, reduzidas as coisas a dois campos, os «bons» e os «maus», ou ainda mais legível, os «índios» e os «cobóis», nós eramos os cobóis. Nós eramos os bons.
Em todo o caso, quando chegámos a Vila Cabral, a guerra era uma ficção estrangeira, criada para desestabilizar os nossos redutos de paz, progresso e civilização - pilares da missão evangelizadora do povo português, e atribua-se a este aforismo todas as aspas necessárias, pois cito de cor a propaganda do regime, que interiorizávamos e tínhamos por verdade única. Não conhecíamos outra.
Em todo o caso, por mais pacifico que estivesse o território moçambicano, a pequena cidade do Niassa estava a ser literalmente invadida por soldados de camuflado, que, ao fim do dia, se vestiam à civil. E por viaturas militares de todos os géneros, que saiam da cidade em coluna, como se houvesse guerra, que não havia no auspicioso final de 1963, começos de 1964, mas que davam uma tonalidade excitante aos nossos quotidianos pasmados e estava a contribuir para o crescimento de Vila Cabral, já que, quando não estavam no quartel, nos vários quartéis espalhados pelo imenso distrito, os militares gostavam de comer, beber, ir ao cinema e de fazer compras como toda a gente. Também gostavam de dançar e de ir aos bailes da Pousada, que aliás eram abrilhantados por grupos musicais constituídos por soldados da Metrópole.
Na (ainda) aparente paz do Niassa. |
Agradeço a «MOÇAMBIQUE - IMAGENS - Cedidas por ex-Combatentes ou em sites próprios» em Dos Veteranos da Guerra do Ultramar, Angola - Guiné - Moçambique, 150-1975..
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