A nossa viagem africana só começou verdadeiramente em
Nacala, onde chegámos a 28 de Setembro, entrando na belíssima e imensa Baía
Fernão Veloso e aportando ao seu cais desolado para quem tinha contemplado os
portos fervilhantes como os de Luanda, Cidade do Cabo, Lourenço Marques e
Beira. Para trás, o conforto e o luxo do Império, onde tantas demonstrações de
carinho nos tinham sido prodigalizadas. O comandante Vasconcellos fez-nos até acompanhar
por elementos da tripulação até ao comboio que saía do porto, e que nos
levaria de Nacala ao Catur. Antes, tinha dado ordens para que das cozinhas nos
providenciassem um maravilhoso farnel, que vinha acomodado em dois formidáveis
cestos de verga, mau grado os protestos da nossa mãe que lhe assegurava não ser
preciso, já que quando tivéssemos fome, íamos ao wagon restaurante:
- Senhor revisor, a que horas servem as refeições?
- Quais refeições, minha senhora?
[adaptado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi]
[1] Encontrei descrições deste comboio e desta viagem em Eduardo Maria Nunes, Batalhão de Caçadores, http://batalhaodecacadores598.blogspot.pt/2010/03/navio-patria-de-lisboa-nacala.html
-
Senhora dona Maria Leonor: estamos em África. Acredite que isto vai ser muito
útil.
O dia estava quentíssimo quando entramos
no comboio do Catur, ocupando uma duvidosa «primeira classe» composta por umas
poucas carruagens velhas. Que grupinho extravagante nós eramos! Uma senhora no
seu saia casaco de linho cru, blusa de seda creme às pintinha pretas com laço,
e quatro crianças muito bem vestidas, mas cuja roupa em breve ficaria
amarfanhada e, sobretudo muito suja das fagulhas que a locomotiva vomitava
incessantemente. - Senhor revisor, a que horas servem as refeições?
- Quais refeições, minha senhora?
Estação do Catur, cortesia de Furriel Santos [publicada em CCAV 2315, 29/04/2010] |
Não havia, como o nosso comandante estava
fartíssimo de saber, qualquer carruagem restaurante e muito menos algo que
remotamente se pudesse chamar «bar». Abençoadamente, os cestos revelaram frutas
de várias espécies, muito bem acondicionada e em quantidade. Garrafas de água e
de sumos. Empadas, sanduiches, queijos fatiados, pães acabados de sair dos
fornos das cozinhas do Império, frangos assados e trinchados, bolos, bolachas,
e sei lá mais o quê.
E assim seguimos de Nacala para o Catur, num comboio de filmes de cobóis[1], puxando por uma asmática locomotiva a vapor, que subia as serras a passo de caracol sobre uma linha férrea tão estreita que parecia feita de carris de elétricos. Por vezes, num troço mais íngreme, os passageiros tinham de sair para a locomotiva conseguir arrastar as composições atrás de si. Como íamos em primeira classe nunca nos solicitaram tal. Mas sempre que o comboio parava, a nossa cabine enchia-se de africanos. Não nos faziam mal, mas era assustador. Entravam por ali dentro a rir, falando entre si enquanto apontavam para nós, criaturas tão bizarras, e chegavam a mexer-nos nos cabelos. Outros, da plataforma das estações, debruçavam-se para dentro das janelas, nos mesmos propósitos, motivo pelo qual passámos a viajar de janela fechada, apesar do calor intenso que fez durante o resto do dia, e se prolongou pela noite dentro.
Foi então que o revisor veio pedir à
mãe autorização para nos trancar pelo lado de fora, por dentro não era
possível, para que não continuássemos a ser incomodados pelas gentes curiosas,
que se perdiam de riso com os «maçaricos» que éramos, tão verdes nas coisas de
Africa, e sobretudo tão branquinhos. Querido senhor que, amiúde, vinha
confirmar se estávamos bem, ou se precisámos de ir à casa de banho, uma
espelunca onde todo o cuidado era pouco para não tocar em quase nada. [...] E assim seguimos de Nacala para o Catur, num comboio de filmes de cobóis[1], puxando por uma asmática locomotiva a vapor, que subia as serras a passo de caracol sobre uma linha férrea tão estreita que parecia feita de carris de elétricos. Por vezes, num troço mais íngreme, os passageiros tinham de sair para a locomotiva conseguir arrastar as composições atrás de si. Como íamos em primeira classe nunca nos solicitaram tal. Mas sempre que o comboio parava, a nossa cabine enchia-se de africanos. Não nos faziam mal, mas era assustador. Entravam por ali dentro a rir, falando entre si enquanto apontavam para nós, criaturas tão bizarras, e chegavam a mexer-nos nos cabelos. Outros, da plataforma das estações, debruçavam-se para dentro das janelas, nos mesmos propósitos, motivo pelo qual passámos a viajar de janela fechada, apesar do calor intenso que fez durante o resto do dia, e se prolongou pela noite dentro.
[adaptado de Moçambique para a mãe se lembrar como foi]
[1] Encontrei descrições deste comboio e desta viagem em Eduardo Maria Nunes, Batalhão de Caçadores, http://batalhaodecacadores598.blogspot.pt/2010/03/navio-patria-de-lisboa-nacala.html
Outra boa descrição em
«O Comboio do Catur», CCAV Companhia de Cavalaria 2415 – Moçambique 1968/1970, http://ccav2415.blogspot.pt/2009/09/o-comboio-do-catur.html consult. 9/05/2013.
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