sábado, fevereiro 28, 2015

O Poder das palavras faz-se de liberdade e silêncio

Uma vez que na página as nossas comunicações só estão, por enquanto, em síntese, publico aqui o texto da minha participação nas Correntes d'Escritas 2015.

I - Agradecimentos - À Povoa de Varzim e à sua Camara Municipal que há quinze anos lançou as bases daquele que ainda hoje e nestes moldes, constitui o maior acontecimento literário no nosso país. Ao meu editor, Eduardo Boavida, pelo apoio que sempre me tem dado, permitindo-me o privilégio de escrever em liberdade.


Mesa3 - da esquerda para a direita:
António Cabrita, Clara Usón, Michael Kegler (moderador) Manuela Gonzaga, Vergílio Alberto Vieira
 

II – Palavra e Segredo Quando li o mote da nossa Mesa recordei-me de um ensaio que escrevi há vários anos sobre a Visitação do Santo Oficio da Inquisição ao Estado do Grão Pará e Maranhão (1763-1769), um trabalho desenvolvido em parceria com dois colegas arqueólogos, Rui Gomes Coelho e Ana Rita Trindade. Na divisão de tarefas a que nos propusemos, couberam-me os caminhos da Palavra e do Rito, na reconfiguração de um discurso dito «espiritual» e que mais não era do que uma claríssima afirmação de poder. Um poder sem limites.
Uma breve nota para frisar apenas que os países protestantes também tiveram Inquisição e que esta foi tão brutal como aquela que nos ocupa agora. Portanto, avancei por caminhos onde o poder articula a utilização rigorosa da palavra com a utilização igualmente rigorosa dos rituais que envolviam este teatro do macabro, com a gestão feroz do silêncio – aqui enquadrado na temática do «segredo», fundamental para a optimização dos objectivos a que o Tribunal se propunha: «porque no Santo Ofício não há cousa em que o segredo não seja necessário. [1]»
Para começar, o réu ignorava de que era acusado e por quem. E na primeira sessão a que era chamado, não só ninguém o elucidava, como a Mesa lhe pedia que esquadrinhasse a sua consciência para encontrar as razões que o tinham levado àquela situação, sendo-lhe feito saber que o tribunal possuía contra ele provas eloquentes. A esta primeira sessão, seguia-se o total isolamento, – o réu não falava com ninguém, nem ninguém lhe dirigia a palavra. Por outro lado, a todos os que participavam nestes procedimentos e processos, era imposta a obrigatoriedade ao segredo. Juravam-no os réus, para toda a vida, sob pena de excomunhão e de regresso aos cárceres. Juravam-no testemunhas, ministros e oficiais do Santo Ofício, deputados e Promotor, notários, oficiais e   todos os chamados para os seus serviços. O mesmo manto opressivo cobria os que tivessem de entrar nos cárceres, “em razão de alguma cura ou mezinha de doentes”. E o que vale para médicos, cirurgiões, barbeiros, parteiras, estendia-se a pedreiros, carpinteiros, – que, sem tomarem juramento de segredo sob os evangelhos, não podiam entrar nem exercer os misteres para que eram chamados. O segredo opressivo, tentacular, nunca acabava.2
Da leitura de processos e Regimentos, emana, ainda hoje, a convicção dos seus autores de que a instituição cumpria desígnios divinos, sendo-lhe portanto lícito utilizar todas as armas ao seu alcance, do silêncio à oratória, da tortura nos cárceres ao público auto-de-fé. Que era uma festa para todos – excepção aos actores principais. Os réus.
Auto de fé
 

Organizadora de espaços e mentalidades, a palavra detém, por definição, o poder de representar o pensamento, construindo, por assim dizer, e ao longo dos séculos, a quadrícula que permite não só permite a sua expressão, como também a suscita, como sugere Foucault, num percurso que não é linear mas que atravessa todos os domínios de interacção social, do sagrado ao profano, do privado ao colectivo, do erudito ao popular, do secreto ao público. Nesse sentido soberana, à palavra cabe a tarefa de uma construção onde a representação “o poder de se representar a si mesma” se justapõe, “parte por parte” ao olhar da reflexão.[3]

Esta construção – a da rede do pensamento – torna-se particularmente visível nas fronteiras entre discursos, consoante eles pautam as normas do poder, ou reflectem a linguagem popular e laica. E neste caso, o discurso legalista e espiritual da Igreja Tridentina aqui invocada, leva-nos para um território onde as mesmas palavras de uso quotidiano, não querem necessariamente dizer as mesmas coisas.

Por exemplo. Tropeçamos repetidas vezes em vocábulos como “compaixão”, “brandura” e “piedade” que não têm o mesmo significado se utilizados no discurso corrente, ou num Regimento do Tribunal do Santo Ofício. Sabendo-se como os presos eram tratados, é curioso confrontar esse tratamento com o determinado na alínea sobre os cuidados a dispensar-lhes: aconselha-se a falar-lhes com «gravidade e modéstia» e até com compaixão pela «sua miséria», a fim de se poder conduzir essas rezes tresmalhadas «ao caminho de sua salvação». E ainda, que os presos tivessem ao seu dispor «tudo o que lhes for necessário», principalmente os doentes, de modo que todos reconhecessem que, no Santo Ofício, «piedade e a justiça» eram sinónimos.[4]

Estamos portanto num território onde a palavra afirmava – através do gesto, – o seu contrário. Um território onde o discurso se inseria num tenebroso conjunto de procedimentos que visavam aniquilar física e moralmente todos que caíssem nas suas malhas. Como justificar o injustificável? Através de uma lógica suportada por mecanismos de repressão e vigilância. Estamos perante um verdadeiro edifício ideológico, que busca e auto-fornece a sua própria justificação, nunca descurando uma gestão de argumentos cuidadosíssima. Há assim que reconhecer que Palavra e Segredo formam neste contexto uma dupla e intrincada hélice de cujo equilíbrio depende todo o edifício.

Falamos de ocultação de provas e de branqueamento de práticas.

III – A assinatura da Vida - O mote que nos foi dado visava o «poder da palavra» através da Liberdade e do Silêncio. Sei que estou nos antípodas. Mas por mais que pense em liberdade, quando se trata da palavra e da sua capacidade de criar universos e realidades, é quase inevitável ir, também, ao encontro da sua antítese. A Palavra é uma arma de poder. Pode libertar e pode aprisionar. Pode calar o discurso, a vontade e a própria vida. Ou pode fornecer-nos as pistas de como conquistarmos as nossas próprias asas. Pode suscitar o silêncio criador, matriz de toda a Criação.

Nesse sentido, nós, os do ofício, temos um dever sagrado. O dever de não calar, e a obrigação de recordar. Porque, em tempos e termos históricos, o que estamos a celebrar é uma singularidade e um privilégio tão grande, que, para salvaguarda dos valores que defendemos – poder pensar e poder partilhar pensamento em liberdade –, temos o dever de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para manter acesa esta luz.

A liberdade não é um dado adquirido

De certa forma, enquanto escritora, e já antes, enquanto jornalista, sempre senti como se, nós, os do ofício, tivéssemos de pagar tributo pela exultação que sentimos quando o silêncio e a palavra se articulam na música da criação. Precisamos de ambos. Mas só lhes chegamos em liberdade. Por isso, temos de ser os seus guardiães.

A terminar, vou ler uma passagem de Xerazade, a última noite, livro que acabei de lançar aqui, nas Correntes d´Escritas, e que depois do negrume onde mergulham as primeiras páginas desta comunicação, constitui um contraponto, a meu ver, mais redentor:



«No princípio de todos os princípios, foi o som. Depois, a palavra. Por fim, a música. A trindade primeva da criação. A sua emergência em espírito, alma e corpo. Um corpo de glória, cuja pauta são os números sagrados. É por isso, que a música está em todo o lado — desde os confins do espaço e do fundo dos tempos, à incerta e delicada estrutura atómica. Cada estrela, cada planeta, cada galáxia, cada cometa e cada asteróide cantam na sua própria vibração. Assim como cantam todos e cada um dos corpos — da célula ao átomo e seus componentes até à plataforma fantasmática da preexistência quântica. A música mora em tudo e em todos. E está presente até no silêncio. É a assinatura da vida

 
 
 
 

 

 
 


[1] Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (2004 [1640]), in As Metamorfoses de um Polvo. Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI-XIX). FRANCO, J. E. e ASSUNÇÃO, P. de (eds.), Lisboa: Tít. I «Do número, qualidades e obrigações dos ministros e oficiais da Inquisição», §7 (Encomenda-se o segredo).
[2] Regimento... , Tít. I (Do número, qualidades e obrigações dos ministros e oficiais da Inquisição).
[3] Foucault, M 2005 – As Palavras e as Coisas. Lisboa: Edições 70 As Palavras e as Coisas. Lisboa: Edições 70, p. 131.
[4] Regimento...:, Tít. III (Dos inquisidores), §24 (Que não falem com os presos senão em presença do notário).
 
 
 
 
 

 
 

domingo, fevereiro 08, 2015

O pai que 'roubou' a noiva ao filho

Há tempos, num romance dito 'histórico' assinado por uma aristocrata inglesa e revisto por um historiador, voltei a deparar-me com a 'lenda' da suposta concupiscência de D. Manuel que, babado pela noiva do filho, resolveu roubar-lha. Pior ainda - ao Venturoso atribuía a senhora escritora na altura de tal feito, a vetusta idade de 70 e picos anos, quando ele morreu aos 52.
Posto isto, aqui fica um extracto de Imperatriz Isabel de Portugal:


D. Manuel I (1469-1521)


Quando D. Maria morreu, D. Manuel caiu numa tristeza tamanha que chegou a pensar ir viver para o Algarve, deixando ao príncipe herdeiro D. João, de 15 anos de idade, e seus conselheiros, o governo do reino. E à filha mais velha, Isabel, então com e catorze anos, confiou-lhe o cuidado dos irmãos, doando-lhe Viseu e Torres Vedras e fazendo-a herdeira do património da mãe[i]. Nessa altura a infanta Beatriz tinha doze, D. Luís, dez, D. Fernando, nove, D. Afonso, sete, D. Henrique, cinco, e D. Duarte ainda não cumprira os dois anos. 

Por essa altura, o rei era alvo de uma campanha de descrédito nos meios palacianos. Dizia-se que era um homem mais preocupado em construir edifícios do que em atentar à sua «real dignidade». Censuravam-lhe ser tão «descuidado» da «gravidade de um rei» que se tornara acessível a todo o tipo de pessoas, fosse qual fosse a sua condição, não desprezando de falar com nenhuma. Criticavam-lhe os passeios a cavalo e a sua prodigalidade com o «ouro e a prata». Finalmente, tentaram convencer o príncipe a distanciar-se do seu pai, pois se queria adquirir renome de «príncipe grandíssimo» deveria comportar-se de forma muito diferente.  

D. Manuel, na altura com 48 anos e pai de oito filhos homens, acabou por ficar ao corrente destas práticas. E para melhor se salvar da «solidão e menosprezo», e do receio que D. João acabasse refém de lisonjeiros, desprezando-o e deitando o reino a perder, pediu ao imperador D. Carlos que lhe desse em casamento a mesma infante D. Leonor, de excelente formosura e bondade, que pedira antes para seu filho. 

Ou, como equaciona Oliveira e Costa, no receio de uma perturbação interna, a primeira no seu já longo reinado, e sob o risco de enfrentar uma revolta encabeçada pelo filho, D. Manuel atuou «como sempre fizera, dissimuladamente, com manha, e matou a revolta que lhe parecia lavrar na corte, roubando a noiva ao filho»[i]. As negociações foram levadas a cabo no maior segredo e, sem surpresa, Carlos concordou – para lá de todas as outras razões, casando D. Manuel com a irmã, D. Leonor, ganhava um poderoso aliado na Península Ibérica – celebrando-se de imediato o inesperado enlace por palavras de presente, seguido de grandiosas festas e jogos no palácio de Saragoça. De seguida, a nova rainha portuguesa partiu e chegou à raia no mês de Novembro de 1518.

Esta mudança de planos causou espanto e deu azo a muita murmuração na corte[iii], mas indiferente a murmúrios, D. Manuel no esplendor dos seus quarenta e nove anos, casou mesmo e pela terceira vez na vida, com uma jovem de vinte, transformando em sua mulher a que deveria vir a ser nora…O reino conheceria assim nova rainha, e os infantes, seus filhos, uma madrasta, para grande desgosto de D. João e de «alguns senhores» que levaram «a mal». Mas o Venturoso convocou os que se encontravam na corte, explicando-lhes os motivos que o tinham levado a este casamento. Os argumentos do rei, e a sua autoridade, calaram a oposição deixando todos «satisfeitos», ou pelo menos parecendo, excepto o príncipe que nunca mostrou ter disto «gosto, nem contentamento». 

O beija-mão real selou o encontro.[iv]





* D. Manuel era um poderoso e muito rico soberano hispânico com laços importantes no reino vizinho, de tal forma que, no início da década de vinte, representantes dos comuneros lhe virão pedir que aceite o trono de Castela, desgostosos com o séquito borgonhês e com os conselheiros Flamengos de Carlos V, cujo poder, e arrogância suscitou grande resistência por parte da velha nobreza e dos povos. Na prática, Carlos foi um usurpador, apropriando-se do trono da mãe. Como Oliveira e Costa enuncia, neste «fazer e desfazer de alianças tudo era possível de acontecer». Embora Joana a Louca desse sinais de instabilidade, se porventura voltasse a casar, logo com um esposo que assegurasse a governação, como sucedera durante os meses em que Filipe o Belo vivera em Castela, o filho perderia toda a legitimidade ao trono. Daí que, quando se soube da morte de D. Maria, os conselheiros de Carlos V propuseram Margarida da Áustria para nova consorte do rei de Portugal. Face ao desinteresse desta, e à pressão de D. Manuel que estava mais interessado em resolver um problema interno do seu reino do que envolver-se num conflito externo de resultados muito incertos, o pedido do Venturoso à mão de D. Leonor da Áustria foi aceite com toda a celeridade. [Oliveira e Costa, D. Manuel I…, 245]
* Pequeno e elegante cavalo de raça
[i] Oliveira e Costa, D. Manuel I..., 243.
[ii] Ibidem, 244.
[iii] Jerónimo Osório, op. cit., II, Liv. XI, 222-224.
[iv] Sobre o casamento, recebimento, Crónica do felicissimo, IV, caps. xxxiii e xxxiiii.
[v] Ibidem, IV, cap. xxxiiii.
[vi] Gaspar Correia (1992) – Crónicas de D. Manuel e D. João III (até 1533), leitura, introdução, notas e índice por José Pereira da Costa, Lisboa, Academia das CiênciasAntónio Villacorta Baños-García (2009) – La Emperatriz Isabel, su vida al lado de Carlos V, su mundo, su época, Madrid, Editorial Actas, 95.
[vii] «Para deixar estes reinos em boa ordem e governo não vejo outra solução que não casar com a infanta Isabel de Portugal», cf. , William Bradford [editor] (1850) – Correspondence of the Emperor Charles V. and his ambassadors at the courts of England and France from the original letters in the imperial family archives at Vienna; with a connecting narrative and biographical notices of the Emperor and of some of the most distinguished officers of his army and household; together with the Emperor's itinerary from 1519-1551, Londres, Richard Bentley, 136; também cit., em John Hale (2000) – A Civilização Europeia do Renascimento, Lisboa, Presença, 82.


sábado, fevereiro 07, 2015

Beijos encarnados

Quando faz frio e chuva e dias cinzentos, ela cobre-se de beijos encarnados que caem a arder no chão do inverno e tudo à nossa volta fica mais feliz.