Há tempos, num romance dito 'histórico' assinado por uma aristocrata inglesa e revisto por um historiador, voltei a deparar-me com a 'lenda' da suposta concupiscência de D. Manuel que, babado pela noiva do filho, resolveu roubar-lha. Pior ainda - ao Venturoso atribuía a senhora escritora na altura de tal feito, a vetusta idade de 70 e picos anos, quando ele morreu aos 52.
Posto isto, aqui fica um extracto de Imperatriz Isabel de Portugal:
O beija-mão real selou o encontro.[iv]
Posto isto, aqui fica um extracto de Imperatriz Isabel de Portugal:
D. Manuel I (1469-1521) |
Quando
D. Maria morreu, D. Manuel caiu numa tristeza tamanha que chegou a pensar ir
viver para o Algarve, deixando ao príncipe herdeiro D. João, de 15 anos de
idade, e seus conselheiros, o governo do reino. E à filha mais velha, Isabel,
então com e catorze anos, confiou-lhe o cuidado dos irmãos, doando-lhe Viseu e
Torres Vedras e fazendo-a herdeira do património da mãe[i].
Nessa altura a infanta Beatriz tinha doze, D. Luís, dez, D. Fernando, nove, D.
Afonso, sete, D. Henrique, cinco, e D. Duarte ainda não cumprira os dois
anos.
Por
essa altura, o rei era alvo de uma campanha de descrédito nos meios palacianos.
Dizia-se que era um homem mais preocupado em construir edifícios do que em
atentar à sua «real dignidade». Censuravam-lhe ser tão «descuidado» da
«gravidade de um rei» que se tornara acessível a todo o tipo de pessoas, fosse
qual fosse a sua condição, não desprezando de falar com nenhuma. Criticavam-lhe
os passeios a cavalo e a sua prodigalidade com o «ouro e a prata». Finalmente,
tentaram convencer o príncipe a distanciar-se do seu pai, pois se queria
adquirir renome de «príncipe grandíssimo» deveria comportar-se de forma
muito diferente.
D.
Manuel, na altura com 48 anos e pai de oito filhos homens, acabou por ficar ao
corrente destas práticas. E para melhor se salvar da «solidão e
menosprezo», e do receio que D. João acabasse refém de lisonjeiros,
desprezando-o e deitando o reino a perder, pediu ao imperador D. Carlos que lhe
desse em casamento a mesma infante D. Leonor, de excelente formosura e bondade,
que pedira antes para seu filho.
Ou,
como equaciona Oliveira e Costa, no receio de uma perturbação interna, a
primeira no seu já longo reinado, e sob o risco de enfrentar uma revolta
encabeçada pelo filho, D. Manuel atuou «como sempre fizera, dissimuladamente,
com manha, e matou a revolta que lhe parecia lavrar na corte, roubando a noiva
ao filho»[i].
As negociações foram levadas a cabo no maior segredo e, sem surpresa, Carlos concordou – para lá de todas as outras razões, casando
D. Manuel com a irmã, D. Leonor, ganhava um poderoso aliado na Península
Ibérica – celebrando-se de imediato o inesperado enlace por palavras de
presente, seguido de grandiosas festas e jogos no palácio de Saragoça. De
seguida, a nova rainha portuguesa partiu e chegou à raia no mês de Novembro de
1518.
Esta
mudança de planos causou espanto e deu azo a muita murmuração na corte[iii],
mas indiferente a murmúrios, D. Manuel no esplendor dos seus quarenta e nove
anos, casou mesmo e pela terceira vez na vida, com uma jovem de vinte,
transformando em sua mulher a que deveria vir a ser nora…O reino conheceria
assim nova rainha, e os infantes,
seus filhos, uma madrasta, para grande desgosto de D. João e de «alguns
senhores» que levaram «a mal». Mas o Venturoso convocou
os que se encontravam na corte, explicando-lhes os motivos que o tinham levado
a este casamento. Os argumentos do rei, e a sua autoridade, calaram a oposição
deixando todos «satisfeitos», ou pelo menos parecendo, excepto o príncipe que
nunca mostrou ter disto «gosto, nem contentamento».
O beija-mão real selou o encontro.[iv]
Em
Manuela Gonzaga, Imperatriz Isabel de Portugal, Bertrand, Lisboa, 2012
* D. Manuel era um
poderoso e muito rico soberano hispânico com laços importantes no reino
vizinho, de tal forma que, no início da década de vinte, representantes dos comuneros lhe
virão pedir que aceite o trono de Castela, desgostosos com o séquito borgonhês
e com os conselheiros Flamengos de Carlos V, cujo poder, e arrogância suscitou
grande resistência por parte da velha nobreza e dos povos. Na prática, Carlos
foi um usurpador, apropriando-se do trono da mãe. Como Oliveira e Costa
enuncia, neste «fazer e desfazer de alianças tudo era possível de acontecer».
Embora Joana a Louca desse sinais de instabilidade, se
porventura voltasse a casar, logo com um esposo que assegurasse a governação,
como sucedera durante os meses em que Filipe o Belo vivera em
Castela, o filho perderia toda a legitimidade ao trono. Daí que, quando se
soube da morte de D. Maria, os conselheiros de Carlos V propuseram Margarida da
Áustria para nova consorte do rei de Portugal. Face ao desinteresse desta, e à
pressão de D. Manuel que estava mais interessado em resolver um problema
interno do seu reino do que envolver-se num conflito externo de resultados
muito incertos, o pedido do Venturoso à mão de D. Leonor da Áustria foi aceite
com toda a celeridade. [Oliveira e Costa, D. Manuel I…, 245]
* Pequeno e elegante
cavalo de raça
[i] Oliveira e Costa, D.
Manuel I..., 243.
[ii] Ibidem, 244.
[iii] Jerónimo Osório, op.
cit., II, Liv. XI, 222-224.
[iv] Sobre o casamento, recebimento, Crónica do
felicissimo, IV, caps. xxxiii e xxxiiii.
[v] Ibidem, IV, cap. xxxiiii.
[vi] Gaspar Correia (1992) – Crónicas de D. Manuel e D.
João III (até 1533), leitura, introdução, notas e índice por José Pereira da
Costa, Lisboa, Academia das Ciências; António Villacorta Baños-García
(2009) – La Emperatriz Isabel, su vida al lado de Carlos V, su mundo,
su época, Madrid, Editorial Actas, 95.
[vii] «Para deixar estes reinos em boa ordem e governo
não vejo outra solução que não casar com a infanta Isabel de Portugal», cf. , William Bradford [editor]
(1850) – Correspondence of the Emperor Charles V. and his ambassadors
at the courts of England and France from the original letters in
the imperial family archives at Vienna; with a connecting narrative and
biographical notices of the Emperor and of some of the most distinguished
officers of his army and household; together with the Emperor's itinerary from
1519-1551, Londres, Richard Bentley, 136; também cit., em John Hale
(2000) – A Civilização Europeia do Renascimento, Lisboa, Presença,
82.
Sem comentários:
Enviar um comentário