terça-feira, agosto 11, 2020

A mãe da minha amiga fez 94 anos

    A mãe da minha amiga, que um dia foi criança e menina atinada, tornou-se a seu tempo e no seu tempo, uma formidável mulher de trabalho. Casou para a vida, pariu quatro filhos, foi o apoio sólido do marido que, entretanto, já partiu, e cuidou dos velhos pais enquanto estes por cá andaram. De manhã à noite, nao parava. Tratou amorosamente dos filhos, cuidou do lar, cozinhou incontáveis refeições, amanhou campos, manteve horta e pomar, e trabalhou sazonalmente sempre que foi preciso. Enquanto viveu na sua própria casa, teve gatos, companhia de eleição, misteriosos e fiéis, e, em tempos mais remotos, criação: galinhas, coelhos. E flores. Era das que fazem um cepozinho de nada renascer e florir.


    Tinha, e ainda teria se a deixassem, dedos verdes, mãos de fada. Limpou muitas lágrimas, mudou muitas fraldas, confortou doentes e acompanhou moribundos, desmanchou muitos porcos e fez intermináveis fieiras de chouriços, salpicões, farinheiras e outros enchidos. Mesmo nos tempo mais duros — de que as novas gerações nunca ouviram falar (o que é quase um criminoso atentado contra a memória do povo que somos) — naquela casa humilde, mas limpíssima e tão bonita no seu traçado alentejano, nunca nenhum filho se levantou da mesa com fome. Nunca.


    Há uns anos, foi para um lar. Sentiu-se muito triste. Não a deixaram levar o seu companheiro de quatro patas. Nem os vasos das suas flores. Nada que a ligasse aos seus quotidianos de sempre. Conformou-se - todos os idosos se conformam. E cumprem rotinas que consistem num calendário dias sempre iguais pontuados de refeições sem surpresas, e programas de televisão… E ali está ela, com os outros velho e velhas sentados em semicírculo, nos mais variados graus de apatia, virados para o altar da pequena caixa que de mágica nada tem, onde raparigas e rapazes esfusiantes falam aos gritos, atropelando-se nos seus disparates disparatadamente alegres, enquanto comentam coisas que não lhes interessam para nada. Em todo o caso, a mãe da minha amiga podia sair, ver a família, ou ser visitada pelos entes queridos com alguma regularidade. Isso acabou. O lar, tido como modelar, é muito asseado, e tem muitas outras qualidades, sobretudo para quem está do lado de fora e ainda sente que é autónomo e gere a sua vida. A verdade é que trata bem os seus velhinhos, mantendo-os alimentados, limpos, com cuidados médicos, como se fossem crianças enrugadas e débeis, que é preciso cuidar do corpo sem cuidar do resto. Mas havia visitas! E saidas, precárias as saídas.


    O vírus mudou tudo — ninguém pode visitar quem ali está. Ninguém, a não ser o pessoal do lar, médicos e paramédicos. A mãe da minha amiga perdeu a esperança e com ela o fiozinho de alegria que a ligava à vida. Como mal consegue ouvir, portanto falar ao telefone, cismou que foi abandonada. E agora, ao fazer 94 anos sem ninguém a ir visitar, disse à filha, a minha amiga, que este ia ser o seu último aniversário já que ninguém se lembra que ela, apesar de tudo, ainda está viva.


    Solução? Plástico, vidro, o que for, como barreira, mas que permitisse que os filhos, os netos e os bisnetos a visitasse, a vissem, e, acima de tudo, que ela os visse a todos, com alguma regularidade. Há lares onde já existem estas adaptações. Ali, ainda não há. A festa que a mãe da minha amiga não teve – festa mesmo, beijos, abraços ou, simplesmente, a visão dos rostos amados – é um pedaço do pavoroso retrato da nosso fracasso humano.


#humanidadesdesumanas

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