O senhor Santos tem muitas saudades dos tempos do Salazar. «Havia respeito. Havia trabalho. Vivíamos em paz. » O senhor Santos tem 60 e muitos anos e é dono de uma excelente tasca, As Zebras do Combro.
Pergunto-lhe pela sua infância: algures, no interior do país. Escola até à 4ª classe e, ao, mesmo tempo trabalho no campo. Ainda se recorda da professora que moía de pancada os seus pequenos alunos, por causa dos erros, das mãos sujas de terra, do cansaço que os impedia de se concentrarem. «Mas aprendemos!». Aos 10 anos, o senhor Santos já podia considerar-se suficientemente crescido para começar a trabalhar no duro. «Fazíamo-nos homens, assim». Só que recebiam menos de metade do que um. E continuavam a levar pancada. A alternativa era a fome. No campo não havia luxos como os de alimentar bocas e braços improdutivos. A história da sardinha divida por quatro ou por seis não é uma lenda urbana inventada por jovens mimados do pós 25 de Abril: o senhor Santos confirma-o, e muitos outros senhores Santos e donas Joaquinas que conheci ao longo de muitas viagens pelo país real.
Pergunto ao senhor Santos se gostava que os seus adorados netos tivessem uma infância semelhante à sua, e a cara enche-se de sombras quando responde automaticamente «nem pensar!!». Mas atalha o raciocínio com o argumento nostálgico da decência e do respeito que havia nos tempos da Outra Senhora. É factual. Um casal de namorados podia ser preso se desse um beijo na rua. No jardim. À beira-mar. Ou então, pagava uma multa. Ou as duas coisas. Em todo o caso, os dois jovens «caçados» nesse acto «indecoroso» eram sempre shumilhados pelos agentes da autoridade. Já com os escândalos sexuais (e muitos foram) que envolviam as elites… outro galo cantava. Salazar não queria que essas coisas se soubessem, «para não dar mau exemplo ao povo». Assim certos crimes envolvendo figuras gradas do regime(assassínio, pedofilia) eram abafados e ninguém era punido. Os jornais estavam impossibilitados de dar qualquer notícia, sobre estes e muitos outros assuntos. A censura existia e funcionava às maravilhas.
O senhor Santos encolhe os ombros, a repete: «mas estávamos em paz e havia trabalho para todos».
As estatísticas são lixadas. Mais de um milhão de portugueses fugiu a salto de tanta abundância, à procura de abundância melhor nos bidonvilles das Europas, e nos barrios miseráveis das Américas. A maior parte, fugia a salto pela fronteira de tamancas nos pés, e sem formação escolar. Muitos, infelizmente para eles, eram mesmo analfabetos. Época feliz, essa, em que éramos os pretos da Europa, que torcia o nariz diante da nossa miséria, da nossa ignorância, mas adorava a força dos nossos braços e a docilidade do nosso carácter.
Resta a paz, pois... mas não houve uma história qualquer chamada Guerra Colonial?
PS: E eu, que estudei em colégios particulares, e fui para o liceu, cresci a achar que toda a gente estudava e vivia como nós, com duas criadas, e férias na praia. Mais ainda, de tanto ouvir os pais (sobretudo o pai)falar nas dificuldades da vida e na obrigação de comer tudo o que estava no prato, tive ao longo da infância, afinal tão protegida, a noção peregrina de que se calhar éramos «pobres». Ou «remediados», um conceito da época.
Só conheci os senhores Santos e as donas Joaquinas de Portugal muito, muito tempo depois. Quando comecei a ouvir as suas histórias de vida, os seus silêncios cheios de amargura. Então, comecei a ter vergonha por nós todos. Depois, comecei a ter orgulho de todos nós. Que povo, este, que sobrevive a estas e todas as outras coisas que sabemos, com coração tão forte e alma tão vasta? Só então descobri o que era, verdadeiramente, Amar o meu país mal-amado.
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