terça-feira, novembro 18, 2014

Tete, a cidade mais quente do mundo

Um dos prazeres que este meu último livro,  Moçambique para a Mãe se lembrar como foi, me tem dado - para além do reencontro pessoal ou virtual com pessoas que nunca mais pensei voltar a ver - é o de confirmar que as minhas memórias suportadas pelo minucioso trabalho de pesquisa a que me entreguei, estão correctas. A minha história não é só minha. É de todos nós os que vivemos aqueles tempos - lá e cá. Porque Portugal hasteava bandeira do Minho a Timor, e porque estávamos no geral convictos de que essa era pátria nossa.
Sabíamos todos muito pouco.
Sabíamos todos quase nada.
Mas juntando o que se viveu ao que se sabe agora, o retrato é de guardar.
Fica um pequeno trecho da minha chegada à terra mais quente do mundo. Tete.


 
O batelão do Matundo, aqui transportando tropas entre Tete e Moatize. Ainda não fora construída a ponte sobre o rio Zambeze
 
«E então cheguei a Tete, provavelmente a cidade mais quente do mundo, o «cemitério de brancos» como em anos idos lhe chamavam, estradas rasgadas sobre o corpo vermelho da terra, ora enlameadas ora gretadas de secura e poeira, pomares e pequenas hortas em quase todos os jardins e quintais das casas dos colonos mais antigos, vida social intensa para a dimensão da cidade, tropa por todo o lado, guerra a apertar a malha desde as fronteiras da Província, e fui encontrar o meu irmão mais velho, desolado e magríssimo. Tinha vindo viver com o pai, e fora estudar no colégio Liceu de São José de Clunny onde o professor Gonzaga leccionava matemática e físico-química. Entretanto, o ano lectivo não correra da melhor maneira para o nosso irmão mais velho que carregava agora o ónus de um chumbo sem apelo, o qual lhe valia, quotidianamente, o indisfarçável mau humor do nosso pai. Em todo o caso, esse falhanço na sua vida estudantil tinha sido contrabalançado por grandes sucessos na vida social, com o Jó a consolidar, em Tete, amizades para a vida:
– Vais gostar – disse-me ele, no desconsolo dos primeiros dias da chegada, pois até a mãe e os irmãos se nos reunirem, foi praticamente a minha única companhia numa terra onde eu não conhecia ninguém. O pai estava muito ocupado e só o víamos às horas das refeições, onde se nos apresentava invariavelmente com a carranca dos maus momentos, embora me distinguisse com uma maior solicitude, pois eu saíra-me muito bem nos meus estudos:
– Oxalá te mantenhas assim.
Ao fim da tarde, nas ligeiras tréguas da canícula, dávamos pequenos passeios solitários, e falávamos de tudo e de nada, enquanto o meu irmão me punha a par dos detalhes locais, dizendo-me que em breve estaria completamente «enturmada» na nova cidade para onde a vida errática dos professores nossos pais nos conduzira. Era uma terra fascinante, quando aprendíamos a sincronizar a nossa respiração com o seu bafo insone sob o qual até os répteis enlanguesciam e que nem o imenso rio Zambeze, com as suas águas espessas, escuras e indolentes onde colónias de hipopótamos boiavam serenamente e crocodilos emergiam espadanando as águas , conseguia retemperar com as suas brisas de fim de dia.»


O nosso grupo de 5ª amo no colégio liceu de Tete com a irmã Maria


 


4 comentários:

Cristina Rocha disse...

Boa tarde. É com enorme agrado que vejo o seu livro, no qual menciona as memorias de Tete.

Na foto onde está o grupo do Colégio S. José de Clunny, reparo que sou uma das do grupo, Cristina Rocha.(a Crista)

Vou comprar o livro e lê-lo com agrado.


Com os melhores cumprimentos,
Cristina Rocha

Manuela Gonzaga disse...

Obrigada, Cristina, Foi com muito agrado, tambem, que li o comentário. Vou estar na Feira do livro a 13 de Junho. Será um prazer assinar-to. Tenho quase a certeza de que vais gostar e te vais encontar bastante por aquelas páginas. Um caloroso abraço.

Unknown disse...

Nos tinhamos um professor de educacao fisica de nome Gonzaga,na escola tecnica,em Tete,e seu familiar?Recordo que ele na altura tinha uma viatura de marca Volskwagen.
Abracos
Satar Suleman

Manuela Gonzaga disse...

Viva, Satar Suleman,o professor Gonzaga era meu pai.