Como se constrói uma biografia? A pergunta apanhou-me de surpresa, porque foi feita por uma criança. Explicar-lhe o mecanismo elaborado da pesquisa, reflexão e construção do texto seria o mesmo que tapar-lhe os ouvidos com cera. Então pensei nas histórias de terror e dei-lhe dois exemplos:
- Escrever a história de alguém que existiu mesmo é como pegarmos num corpo sem vida e restaurarmos a sua forma, pondo-lhe por fim um par de olhos de vidro. Brilhantes e vazios. Como algumas pessoas fazem com alguns animais. Ás vezes, se a técnica é muito bem aplicada, o animal parece quase vivo. Outras vezes... é tudo tão mal feito tudo que só apetece deitar para o lixo.
- Mas mesmo quando é bem feito o animal morto continua morto, só que está cheio de palha por dentro, é isso?
- É.
- Que nojo.
- Também acho.
- Hum. E a outra maneira?
- Gostas de histórias de terror?
- Pergunta tola - disse a minha interlocutora. - Que criança não gosta de histórias de terror?
- Então ouviste falar das feitiçeiras que se encontram nos quatro caminhos nas noites de lua cheia e chamam os mortos?
- Ui. É isso que tu fazes? És bruxa?
- Não, meu amor. Mas quando estou a escrever, e é lua cheia ou lua nova ou lua vaga, e quero contar a história de alguém que viveu mesmo, mergulho, tão fundo, tão fundo...
- No mar?
- Não, dentro de mim...
- Ah! E depois?
- Depois ando muito longe no tempo até encontrar os quatro caminhos cruzados. Aí sento-me, e medito mais ainda, e aguardo que elas cheguem.
- Quem?
- As memórias.
- E depois?
- Tiro um bocadinho de sangue do meu dedo mindinho, deito-o numa taça de cristal que levo sempre comigo, e deixo-as beber.
- E?
- Elas crescem, ficam com corpo de mulher ou com corpo de homem, e as suas vozes tornam-se mais nítidas, mais fortes, porque as suas recordações também crescem.
- E quando voltas, lembras-te de tudo o que elas te contaram?
- Bom... é assim...
A conversa foi longa e maravilhosa, e eu aprendi muito mais com a minha pequena interlocutora do que ela comigo embora ela se tivesse ido embora convencida do contrário. Também lhe podia ter falado de Ulisses que foi quem me explicou este caminho. Mas a verdade é que nada disto teria importância alguma se não mergulhasse, como também lhe exliquei, bem alimentada. Como? Estudando, lendo, procurando saber tudo o que é preciso saber sobre a vida e o tempo dessa pessoa que tento recriar.
O resto, o encontro mágico com as suas memórias, é uma espécie de prémio a coroar esse labor.
A imagem, decalcada de Ulisses interrogando a multidão dos mortos à entrada do Hades, é, obviamente, poética.
Afinal, uma biografia é sempre um exercicio a meio termo entre a taxidermia e a mediunidade.
Créditos imagem: «Picos de Europa»
- Escrever a história de alguém que existiu mesmo é como pegarmos num corpo sem vida e restaurarmos a sua forma, pondo-lhe por fim um par de olhos de vidro. Brilhantes e vazios. Como algumas pessoas fazem com alguns animais. Ás vezes, se a técnica é muito bem aplicada, o animal parece quase vivo. Outras vezes... é tudo tão mal feito tudo que só apetece deitar para o lixo.
- Mas mesmo quando é bem feito o animal morto continua morto, só que está cheio de palha por dentro, é isso?
- É.
- Que nojo.
- Também acho.
- Hum. E a outra maneira?
- Gostas de histórias de terror?
- Pergunta tola - disse a minha interlocutora. - Que criança não gosta de histórias de terror?
- Então ouviste falar das feitiçeiras que se encontram nos quatro caminhos nas noites de lua cheia e chamam os mortos?
- Ui. É isso que tu fazes? És bruxa?
- Não, meu amor. Mas quando estou a escrever, e é lua cheia ou lua nova ou lua vaga, e quero contar a história de alguém que viveu mesmo, mergulho, tão fundo, tão fundo...
- No mar?
- Não, dentro de mim...
- Ah! E depois?
- Depois ando muito longe no tempo até encontrar os quatro caminhos cruzados. Aí sento-me, e medito mais ainda, e aguardo que elas cheguem.
- Quem?
- As memórias.
- E depois?
- Tiro um bocadinho de sangue do meu dedo mindinho, deito-o numa taça de cristal que levo sempre comigo, e deixo-as beber.
- E?
- Elas crescem, ficam com corpo de mulher ou com corpo de homem, e as suas vozes tornam-se mais nítidas, mais fortes, porque as suas recordações também crescem.
- E quando voltas, lembras-te de tudo o que elas te contaram?
- Bom... é assim...
A conversa foi longa e maravilhosa, e eu aprendi muito mais com a minha pequena interlocutora do que ela comigo embora ela se tivesse ido embora convencida do contrário. Também lhe podia ter falado de Ulisses que foi quem me explicou este caminho. Mas a verdade é que nada disto teria importância alguma se não mergulhasse, como também lhe exliquei, bem alimentada. Como? Estudando, lendo, procurando saber tudo o que é preciso saber sobre a vida e o tempo dessa pessoa que tento recriar.
O resto, o encontro mágico com as suas memórias, é uma espécie de prémio a coroar esse labor.
A imagem, decalcada de Ulisses interrogando a multidão dos mortos à entrada do Hades, é, obviamente, poética.
Afinal, uma biografia é sempre um exercicio a meio termo entre a taxidermia e a mediunidade.
Créditos imagem: «Picos de Europa»
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