Um pequeno extracto deste meu romance está publicado na Revista Storm:
Estávamos sob o Arco do Triunfo, da Rua Augusta, e ele parou, pôs um dedo sobre a boca:
– Ouves o Rio, sob os nossos pés? – disse ele.
– Não. Oiço o Rio, à nossa frente.
Ele apontou para uma porta de madeira com uma grade de ferro, aparentemente sem uso há dezenas de anos. Era uma porta pequena, quase dissimulada. Espreitei pela grade, e ele acendeu um isqueiro para eu ver melhor. Não se via quase nada, mas percebia-se que dava para um espaço cheio de entulho, ali numa das colunas do conjunto magnífico dos edifícios pombalinos:
– Esta é uma das entradas. Olha a fechadura. Repara. Não está enferrujada. Depois da curva há umas escadas, mas não se vê daqui, claro, e no fundo das escadas há uma laje que é um alçapão. Dá para os subterrâneos de Lisboa. Agora, anda cá e olha para cima. É a Cruz de Santo André com a rosácea ao centro.
Olhei para a porta, distraidamente. Depois, voltei para o centro e olhei para cima, mas, àquela hora, não se viam detalhes de cruz alguma.
Uns metros à nossa frente dormia um vagabundo, mesmo diante da porta do Supremo Tribunal de Justiça. O chão, sob as arcadas, estava imundo, a pedra das paredes e do chão corroída da caca dos pombos, e o cheiro era intenso, um odor a amoníaco que fazia tossir e vir lágrimas aos olhos. Mais adiante, sob as arcadas, viam-se outros vultos, embrulhados em cobertores, cobertos de farrapos, sentados sobre caixotes de papelão forrados de jornais. Alguns tinham cães a seu lado. Alguns estavam a fumar. Os seus olhos brilhavam, intensamente, na escuridão.
De repente, um deles ergueu o rosto e olhou-nos enquanto acendia um cigarro. A luz da chama do fósforo iluminou-lhe de relance os olhos, que nos fixaram de uma maneira terrível, e eu senti um sobressalto:
– Conheço aquela cara - pensei, tentando retirar, dos traços apreendidos num segundo, o peso da miséria. E depois disse:
– Vamos embora. O cheiro é horrível. Meus Deus, tantos desabrigados. Como é possível? Os restaurantes deitam, todos os dias, comida fora. Ao lado de pessoas que passam fome. O aparelho de Estado desloca-se em primeira classe, nos aviões, e instala-se em hotéis de cinco estrelas. Mas às portas dos ministérios e do Supremo Tribunal da Justiça de Portugal dormem os miseráveis deste país. Na praça nobre de Lisboa. Daqui, de onde saímos a conquistar novos mundos ao mundo.
- Amor - disse ele, a cuspir as palavras - estamos na terra das serpentes, no perímetro mágico de Lisboa, e tu não sentes nada. É deprimente. Ainda tens a nostalgia das brigadas do MRPP. Eras muito novinha, coitada. Ficaste marcada, como uma bezerra, com o ferro das preocupações sociais. Para ti, as coisas são bonitas ou feias, cheiram bem ou cheiram mal, são justas ou injustas. O resto escapa-te, o que, por outro lado, não deixa de ser muito estranho, porque és fotógrafa. Ou foste, é igual. Tens obrigação de conhecer a declinação das sombras. Como sabes, as trevas não são uniformes.
– E és tu, que não acreditas em nada, que vens com uma conversa dessas? É para rir? – disse eu. Sentia um enorme desconforto.
– Uma coisa é não acreditar. Outra coisa é ignorar. Não se podem ignorar os fatos. Esta cidade tem uma história antiquíssima. E tem um traçado específico, depois do terramoto, que obedece a desígnios definidos com muita clareza. Com muita inteligência. Isto não é matéria de fé. De resto, só os muito ignorantes ou os muito estúpidos conseguem viver sem tomar conhecimento do mundo que os rodeia - disse ele. Estava furioso.
– Jorge, ajuda-me. Conheço aquele desabrigado. O que estava ali deitado, próximo da porta que tu dizes que dá para os subterrâneos. Não consigo lembrar-me é donde. Mas os olhos são tão familiares. Faz-me lembrar alguém da política – disse eu.
Toda esta conversa sobre os símbolos e os traçados secretos de Lisboa, ou, então, a forma como ele a desenvolvia, angustiava-me a ponto de sentir tonturas e eu queria mudar de assunto.
Ele puxou-me, apertando a minha mão gelada na sua mão quase a escaldar:
– Claro que te ajudo, amor. Queres que vá acordar os pobrezinhos todos para lhes pedires a identificação? Eu vou. É só mandares.
(...)
http://www.storm-magazine.com/arquivo/arquivo2/aq_abr2001_3.htm#JARDINS%20SECRETOS%20(EXTRACTO)
Estávamos sob o Arco do Triunfo, da Rua Augusta, e ele parou, pôs um dedo sobre a boca:
– Ouves o Rio, sob os nossos pés? – disse ele.
– Não. Oiço o Rio, à nossa frente.
Ele apontou para uma porta de madeira com uma grade de ferro, aparentemente sem uso há dezenas de anos. Era uma porta pequena, quase dissimulada. Espreitei pela grade, e ele acendeu um isqueiro para eu ver melhor. Não se via quase nada, mas percebia-se que dava para um espaço cheio de entulho, ali numa das colunas do conjunto magnífico dos edifícios pombalinos:
– Esta é uma das entradas. Olha a fechadura. Repara. Não está enferrujada. Depois da curva há umas escadas, mas não se vê daqui, claro, e no fundo das escadas há uma laje que é um alçapão. Dá para os subterrâneos de Lisboa. Agora, anda cá e olha para cima. É a Cruz de Santo André com a rosácea ao centro.
Olhei para a porta, distraidamente. Depois, voltei para o centro e olhei para cima, mas, àquela hora, não se viam detalhes de cruz alguma.
Uns metros à nossa frente dormia um vagabundo, mesmo diante da porta do Supremo Tribunal de Justiça. O chão, sob as arcadas, estava imundo, a pedra das paredes e do chão corroída da caca dos pombos, e o cheiro era intenso, um odor a amoníaco que fazia tossir e vir lágrimas aos olhos. Mais adiante, sob as arcadas, viam-se outros vultos, embrulhados em cobertores, cobertos de farrapos, sentados sobre caixotes de papelão forrados de jornais. Alguns tinham cães a seu lado. Alguns estavam a fumar. Os seus olhos brilhavam, intensamente, na escuridão.
De repente, um deles ergueu o rosto e olhou-nos enquanto acendia um cigarro. A luz da chama do fósforo iluminou-lhe de relance os olhos, que nos fixaram de uma maneira terrível, e eu senti um sobressalto:
– Conheço aquela cara - pensei, tentando retirar, dos traços apreendidos num segundo, o peso da miséria. E depois disse:
– Vamos embora. O cheiro é horrível. Meus Deus, tantos desabrigados. Como é possível? Os restaurantes deitam, todos os dias, comida fora. Ao lado de pessoas que passam fome. O aparelho de Estado desloca-se em primeira classe, nos aviões, e instala-se em hotéis de cinco estrelas. Mas às portas dos ministérios e do Supremo Tribunal da Justiça de Portugal dormem os miseráveis deste país. Na praça nobre de Lisboa. Daqui, de onde saímos a conquistar novos mundos ao mundo.
- Amor - disse ele, a cuspir as palavras - estamos na terra das serpentes, no perímetro mágico de Lisboa, e tu não sentes nada. É deprimente. Ainda tens a nostalgia das brigadas do MRPP. Eras muito novinha, coitada. Ficaste marcada, como uma bezerra, com o ferro das preocupações sociais. Para ti, as coisas são bonitas ou feias, cheiram bem ou cheiram mal, são justas ou injustas. O resto escapa-te, o que, por outro lado, não deixa de ser muito estranho, porque és fotógrafa. Ou foste, é igual. Tens obrigação de conhecer a declinação das sombras. Como sabes, as trevas não são uniformes.
– E és tu, que não acreditas em nada, que vens com uma conversa dessas? É para rir? – disse eu. Sentia um enorme desconforto.
– Uma coisa é não acreditar. Outra coisa é ignorar. Não se podem ignorar os fatos. Esta cidade tem uma história antiquíssima. E tem um traçado específico, depois do terramoto, que obedece a desígnios definidos com muita clareza. Com muita inteligência. Isto não é matéria de fé. De resto, só os muito ignorantes ou os muito estúpidos conseguem viver sem tomar conhecimento do mundo que os rodeia - disse ele. Estava furioso.
– Jorge, ajuda-me. Conheço aquele desabrigado. O que estava ali deitado, próximo da porta que tu dizes que dá para os subterrâneos. Não consigo lembrar-me é donde. Mas os olhos são tão familiares. Faz-me lembrar alguém da política – disse eu.
Toda esta conversa sobre os símbolos e os traçados secretos de Lisboa, ou, então, a forma como ele a desenvolvia, angustiava-me a ponto de sentir tonturas e eu queria mudar de assunto.
Ele puxou-me, apertando a minha mão gelada na sua mão quase a escaldar:
– Claro que te ajudo, amor. Queres que vá acordar os pobrezinhos todos para lhes pedires a identificação? Eu vou. É só mandares.
(...)
http://www.storm-magazine.com/arquivo/arquivo2/aq_abr2001_3.htm#JARDINS%20SECRETOS%20(EXTRACTO)
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