I
O tempo deixou-me este gosto na pele
Um nó na garganta
Calor na alma
Mãos vazias, o corpo nu
Em carne viva.
Tatuagens de recordações espalho-as no chão,
À minha volta
Há gritos de sereia num porto, e eu lambo cinzas.
Ainda estão quentes.
Onde estão todos?
Paredes nuas.
Colares de missangas vermelhas, colares de missangas negras
Um bater surdo de tambores.
Árvores esplêndidas dos tempos do primeiro
Tempo.
E templos e véus
E estradas escondidas
Sob mato rasteiro de silvas
Como puderam esconder tamanho esplendor?
II
Amei-te, e eras sempre diferente.
E contudo... se soubesses por onde te procurei.
Ouves o meu grito?
Esperava que dissesses, na concha do meu ouvido:
Somos os marinheiros e o mar e o navio, a tempestade e o sono.
Sonho.
Queria dizer-te isto:
Viver é amar cada segundo como se fosse o último,
Mas não é sempre assim.
Gosto de redes e de laços. Gosto de anéis.
Gostava de já não gostar.
De já não gostar.
III
Depois de enterrar os mortos
Me esqueci
Do local das sepulturas.
Às vezes ainda lá vou
Gruta de sombras onde depois de queimar deuses
Nma lareira que nem existe,
Ouço-me
A chamar por eles.
E fico, de mãos feridas a escavar palavras e silêncios.
Procuro, procuro.
Penso: para onde vamos meu amor?
E então volto sempre.
Da soleira da porta vejo-te acenar-me
Quando me viro,
Com as mãos em concha protejo-me da luz para te ver bem
Antes que a estrada me engula.
Penso: porque não me prendeste com laços e anéis
Nas redes dos teus braços adormecidos?
E então volto
Sempre à espera
De ti.
Esvazio-me.
E penso: quem és tu?
IV
Na Primavera abri a copa das árvores
Chovia e entraste no meu tronco.
Tremias.
Disseste:
Tenho tanto medo. Tenho tanto medo.
Adormecemos.
Quando acordei
Os sons que se evaporavam da terra eram ocres,
E havia tanto fumo.
E havia tanto fogo.
E havia tanta dor.
E havia eu
Enredada em caminhos
Que não me levavam a lado nenhum.
Amortalhando os sete sentidos incluindo o tacto
Sondando rostos fechados
Eu e o meu medo insone asfixiando-me sem tréguas.
Num abraço de amante obsessivo
Diante de casas sem portas nem janelas nem ninguém.
Às vezes, o som dos sinos amansava a tarde,
Por muito pouco tempo.
À noite, não conseguia ouvir bater o coração escuro do mundo:
Falavam todos muito alto.
Pareciam perdidos e riam
Nem perceberam que me fui embora
V
Quero estar só.
Quero esta solidão indizível para te encontrar amor,
Caleidoscópio de rostos, mil faces a tua,
quero saber o teu nome.
Quero rasgar tanta coisa,
Estes véus estes véus.
Regressar aos negros braços que enlaçam a
Terra inteira.
Cheirar o teu cheiro nas flores de sangue
Vivas dentro das suas pétalas mortas,
Enrolar-me no teu regaço escuro e cálido,
Pousar o fardo pungente de memórias perdidas
Para recordar todos os teus nomes
Todos os teus corpos
Todos os teus cheiros
Todos os teus sabores
Todos os teus sons
Ásperos e musicais densos e subtis
Mesmo os que doem muito
À flor da pele
E dizer-te no desamparo branco de quem não conseguiu dormir
Nem a dormir sem te sonhar:
Voltei de lado nenhum
para entrar na roda das antiquíssimas danças
Ao som dos tambores velhos
Em noites recortadas de chamas.
Abraça-me oh Mãe de todos
Porque pesa tanto
O estômago vazio,
O saco vazio do vagabundo,
A alma solta de quem viaja,
Este amor que sinto, esta dor que tenho,
Chamei-te tantas vezes.
Tantas vezes.
Tantas vezes.
Se ao menos soubesses como te amo.
(Manuela Gonzaga Fevereiro – Outubro de 1975.)
Imagem: Maria Alagoa. Embondeiro, Tete, 2010.
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