segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Os nossos dias de ontem

To my mummy who forgot all about yesterday.

A memória é uma mala desarrumada, uma arca de tesouros à mistura com muita tralha e pesos úteis, inúteis e todas todas todas as roupas e as máscaras das emoções usadas e gravadas nos sentidos, com sabor aos dias de ontem.

A memória é esse perfume projectado como uma aura no espelho do agora. A memória é uma arca onde, às vezes, os pequenos roedores do tempo fazem tanto dano que inexoravelmente o seu lastro se perde.

É então que a vemos flutuar à nossa volta como uma mortalha esfarrapada por onde as palavras, ao passarem, assobiam velhas canções e histórias de era uma vez com as cronologias todas trocadas numa música que acorda um infinito cansaço vestido com as roupas da tristeza.


H. Bullock Webster, Old memories - Longbeach -- Canterbury (1881)
 

terça-feira, fevereiro 11, 2014

sábado, fevereiro 08, 2014

Back to... other realities. Oficinas, novo livro, livro anterior

As minhas oficinas - que descansaram durante um mês e picos - regressam hoje à Livraria Alêtheia, Rua do Século nº 4, com mais escrita biográfica, o II curso de «A minha vida dá um livro». Várias pessoas que participaram em «Elegias do amor e do ódio» e em «Universos Paralelos» transitaram para este, e vão começar a mergulhar nas suas histórias de vida.


Para mim é um desvio muito bem vindo. Estou na reta final do meu próximo livro. É uma fase «álgida» esta. Estou convencida que qualquer escritor, ou pelo menos a maior parte, sente e dirá o mesmo. Assim, e por umas horas - o tempo das aulas, e o tempo, em casa, de ver, rever textos e orientar as pessoas caso a caso - salto noutras dimensões que me levam para longe daquela em que estou mergulhada até às entranhas. Sabe bem, mas tinha de ser assim, quase por obrigação. Por outro lado, é sempre com muita alegria que partilho as ferramentas da palavra, verificando a diferença, subtil ou flagrante, que causa na vida de quem se envolve de forma muito empenhada, nos caminhos da escrita.  

Entretanto, de um outro livro meu, Imperatriz Isabel de Portugal, o reconfortante e entusiasmante  comentário de Laure Collet, a tradutora que acabou de o verter para um francês puríssimo, com tamanho cuidado que parece ter sido escrito nessa língua. Mergulhando de cabeça nesta obra de 500 e tal páginas, Laure foi-me confessando ao longo do seu trabalho, que se apaixonou pela figura de Isabel de Portugal, e pela biografia que a revela. E agora, publicamente, escreveu estas linhas em inglês, idioma que também domina na perfeição:

«Between pride, joy and saudades, I happily and finally announce that the translation of Imperatriz Isabel de Portugal came to an end this week-end... As it was to be expected, she died, but it had been such a shock that it delayed the translation quite a bit... Loved it though... It was a great pleasure and honnor to meet such a wonderful woman and to help her rise out of oblivion... . [Collibris Traduction]

So, let's go, dia bonito.
 

domingo, fevereiro 02, 2014

O combóio fantasma

Há dois dias, o Nelson Favas convidou-me para gostar da sua página de fotografia, no FB. Fiquei deslumbrada e aceitei de imediato segui-lo. Depois, associei o clima de algumas daquelas imagens à atmosfera de um ou outro dos meus contos, de resto publicado num livro intitulado A morte da Avó Cega (Planeta, 1999). A nossa parceria começa assim. Aqui.
  
O Comboio FANTASMA


«Se as sepulturas e os cemitérios vomitam os que nós enterrámos, os monumentos são verdadeiros estômagos de milhafreMacbeth, acto 3, William Shakespeare [foto Nelson Favas]


As linhas paralelas dos carris brilhavam num tracejado irregular interrompido por tufos de ervas daninhas, e acabavam subitamente metros à frente da antiga casa do guarda. Há muito que da estação do comboio só restava aquela memória metálica, uma dezena de metros de ferro e vigas, cravados no chão como uma esteira. Tudo o mais fora devorado pelo tempo, roubado aos pedaços pelos últimos vagabundos, desmantelado que fora, quase por inteiro, o ramal que em tempos levara àquele fim do mundo o hálito ardente e ofegante da civilização. O mesmo hálito que fizera nascer, a poucos quilómetros dali, e como por emanação de fagulhas e apitos, uma pequena cidade que vivera, também ela, dos dias do comboio.


A cidade morreu numa agonia breve, no dia em que o comboio deixou de aparecer, a vida esvaindo-se num silêncio cada vez mais denso, à medida as pessoas fechavam as portas das casas e dos estabelecimentos, e partiam como se um vento as arrastasse. Depois, matas de silvas, arbustos e ervas daninhas trocaram de lugar com as antigas hortas, e as raízes das árvores abriram caminho à força por entre as estradas abandonadas. Ele era o único e o último. Chegara quando todos estavam a partir, para fiscalizar o encerramento do ramal com os seus gestos secos e a palavra avara. Tinha a pele curtida e os olhos encharcados de febre de quem viveu, muito tempo, debaixo de outros sóis. Houve quem o ouvisse rir, entre dentes, ao passar pelas ruas desertas, como se tivesse acabado de receber um mundo solitário de presente, uma dádiva a que se agarrou com uma persistência insana, mesmo depois de terem cessado as suas funções. Então, a Companhia suspendeu-lhe o salário, mas autorizou-o a permanecer na antiga casa do guarda. E depois nunca mais ninguém se lembrou dele nem da cidade, nem das terras em redor, como se aquelas paragens recônditas estivessem sob uma aura de encantamento.

Nesse dia ele tinha resolvido, pela primeira vez em largos meses, ir à vila mais próxima, porque até a mais solitária das criaturas precisa de café e de cigarros. No seu caso não havia muito mais motivos que o levassem a tirar o velho Ford da garagem improvisada no antigo galinheiro. Voltou ao cair da tarde. Entre a folhagem dos choupos e das acácias, que tinham dilatado os anteriores domínios até às margens das desmanteladas linhas férreas, viu uma sombra branca, uma espécie de reverberação de luz pálida e intermitente a avançar por entre ervas e ramos. Praguejando, avançou na sua direcção, para estacar a poucos metros de uma figura de cera, uma criatura saída de uma peanha de santa de altar, num vestido de seda murcha, sapatos de renda ferida nas pedras do caminho, o cabelo negro apanhado numa armação de ganchos e travessas, as mãos enluvadas a apertar uma bolsinha de madrepérola, e o andar incerto de uma criança perdida. Ela olhou-o sem surpresas, e abriu a boca como se quisesse dizer alguma coisa. «Parece uma actriz de cinema mudo», pensou o homem. «Fala e mexe os lábios sem se ouvir nenhum som.»
– O comboio. O comboio – murmurou ela, conseguindo finalmente que um fio de voz acompanhasse a articulação das palavras, e olhando-o com um desespero tão grande que o homem se sentiu vacilar.
– O comboio foi-se. Acabou. Há anos e anos e anos.
Ela estremeceu e inclinou a cabeça sobre o peito. Ficaram os dois imóveis, e ela parecia prestes a desfazer-se em pingos de cera. Finalmente o homem estendeu-lhe a mão seca e segurou, entre os seus, uns dedos de estátua que estremeciam como se a vida os percorresse aos soluços. Depois levou-a para sua casa e sentou-a no único banco de madeira da sala, de costas para a lareira apagada onde, por cima do tronco semicarbonizado que sobrevivera ao último Inverno, estavam espalhados ramos de loureiro e folhas de erva-cidreira. Olharam-se sem palavras, e o homem reconheceu-se, sobressaltado, nos olhos esbraseados de febre com que ela o trespassou, como se a realidade do seu corpo não fosse mais do que um véu esgaçado, sem consistência nem sentido. Lá fora o dia caíra por completo, e o silêncio do princípio da noite dera lugar a um atordoador concerto de cigarras.
O homem acendeu o candeeiro de petróleo suspenso de uma argola no rebordo da lareira, e a luz amarelada escorraçou as sombras entre os dois para os cantos da sala. «É uma bênção que ela não queira falar», pensou, aturdido pelo absurdo da situação. Ela lembrava-lhe um pássaro caído prematuramente do ninho, que era preciso confortar e alimentar até o devolver ao ramo da árvore de onde um vento mau o expulsara. Mas ao mesmo tempo, uma força estranha mantinha-o colado ao assento improvisado num tronco de madeira, que esperava, desde a última Primavera, pelo fogo do próximo Inverno. Subitamente, a mulher sorriu e ergueu para ele os olhos pisados:

– O comboio. Está a chegar – disse.

Com um lenço de cambraia, bordado com duas iniciais entrelaçadas, que tirou da bolsinha ridícula, limpou o rosto de porcelana. Depois, ergueu-se como se ressuscitasse, e, em passos firmes, o corpo palpitante de vida, dirigiu-se para a porta, deixando atrás de si um rasto de madressilva. O homem acendeu um cigarro. «É doida», pensou. «É a única louca que existe nesta parte do mundo tinha que ser eu a encontrá-la. Fugiu de uma procissão, de um teatro ambulante ou de um manicómio. Só para me incomodar.» Agarrou-se a estes pensamentos numa lucidez de náufrago, na noite subitamente rasgada pelo som do apito de um comboio que se aproximava a resfolegar por carris inexistentes, varrendo a escuridão com um olho vermelho e monstruoso. 

Então, o homem correu para a porta e viu-a a subir para os estribos de uma carruagem impossível, e ela voltou-se e olhou-o com uma expressão transfigurada de alegria, e acenou-lhe com uma mão que parecia uma asa.
– Obrigada – disse, mas nenhum som lhe saiu dos lábios.
«Como as estrelas dos cinemas mudos», pensou o homem, paralisado na eternidade daquele instante, vendo o comboio desaparecer sobre o fantasma dos antigos trilhos, até se diluir na mancha escura dos montes.
No dia seguinte havia um pedaço de cambraia bordado com duas iniciais, leve como uma teia de aranha, a deslizar no chão de saibro da entrada. A brisa quente da manhã fazia-o dançar com folhas e ervas secas, numa fragrância de madressilva.