Há dois dias, o Nelson Favas convidou-me para gostar da sua página de fotografia, no FB. Fiquei deslumbrada e aceitei de imediato segui-lo. Depois, associei o clima de algumas daquelas imagens à atmosfera de um ou outro dos meus contos, de resto publicado num livro intitulado A morte da Avó Cega (Planeta, 1999). A nossa parceria começa assim. Aqui.
O Comboio
FANTASMA
«Se as sepulturas e os cemitérios vomitam os que nós enterrámos, os monumentos são verdadeiros estômagos de milhafre.» Macbeth, acto 3, William Shakespeare [foto Nelson Favas] |
As linhas paralelas
dos carris brilhavam num tracejado irregular interrompido por tufos de ervas
daninhas, e acabavam subitamente metros à frente da antiga casa do guarda. Há
muito que da estação do comboio só restava aquela memória metálica, uma dezena de
metros de ferro e vigas, cravados no chão como uma esteira. Tudo o mais fora
devorado pelo tempo, roubado aos pedaços pelos últimos vagabundos, desmantelado
que fora, quase por inteiro, o ramal que em tempos levara àquele fim do mundo o
hálito ardente e ofegante da civilização. O mesmo hálito que fizera nascer, a
poucos quilómetros dali, e como por emanação de fagulhas e apitos, uma pequena
cidade que vivera, também ela, dos dias do comboio.
A cidade morreu
numa agonia breve, no dia em que o comboio deixou de aparecer, a vida
esvaindo-se num silêncio cada vez mais denso, à medida as pessoas fechavam as
portas das casas e dos estabelecimentos, e partiam como se um vento as
arrastasse. Depois, matas de silvas, arbustos e ervas daninhas trocaram de
lugar com as antigas hortas, e as raízes das árvores abriram caminho à força
por entre as estradas abandonadas.
Ele era o único e o último. Chegara quando todos estavam a partir, para
fiscalizar o encerramento do ramal com os seus gestos secos e a palavra avara.
Tinha a pele curtida e os olhos encharcados de febre de quem viveu, muito
tempo, debaixo de outros sóis. Houve quem o ouvisse rir, entre dentes, ao
passar pelas ruas desertas, como se tivesse acabado de receber um mundo
solitário de presente, uma dádiva a que se agarrou com uma persistência insana,
mesmo depois de terem cessado as suas funções.
Então, a Companhia suspendeu-lhe o salário, mas autorizou-o a permanecer na
antiga casa do guarda. E depois nunca mais ninguém se lembrou dele nem da
cidade, nem das terras em redor, como se aquelas paragens recônditas estivessem
sob uma aura de encantamento.
Nesse dia ele tinha
resolvido, pela primeira vez em largos meses, ir à vila mais próxima, porque
até a mais solitária das criaturas precisa de café e de cigarros. No seu caso
não havia muito mais motivos que o levassem a tirar o velho Ford da garagem
improvisada no antigo galinheiro. Voltou ao cair da tarde. Entre a folhagem dos
choupos e das acácias, que tinham dilatado os anteriores domínios até às
margens das desmanteladas linhas férreas, viu uma sombra branca, uma espécie de
reverberação de luz pálida e intermitente a avançar por entre ervas e ramos. Praguejando,
avançou na sua direcção, para estacar a poucos metros de uma figura de cera,
uma criatura saída de uma peanha de santa de altar, num vestido de seda murcha,
sapatos de renda ferida nas pedras do caminho, o cabelo negro apanhado numa
armação de ganchos e travessas, as mãos enluvadas a apertar uma bolsinha de
madrepérola, e o andar incerto de uma criança perdida. Ela olhou-o sem
surpresas, e abriu a boca como se quisesse dizer alguma coisa. «Parece uma
actriz de cinema mudo», pensou o homem. «Fala e mexe os lábios sem se ouvir
nenhum som.»
– O comboio. O
comboio – murmurou ela, conseguindo finalmente que um fio de voz acompanhasse a
articulação das palavras, e olhando-o com um desespero tão grande que o homem
se sentiu vacilar.
– O comboio foi-se.
Acabou. Há anos e anos e anos.
Ela estremeceu e
inclinou a cabeça sobre o peito. Ficaram os dois imóveis, e ela parecia prestes
a desfazer-se em pingos de cera.
Finalmente o homem estendeu-lhe a mão seca e segurou, entre os seus, uns dedos
de estátua que estremeciam como se a vida os percorresse aos soluços. Depois
levou-a para sua casa e sentou-a no único banco de madeira da sala, de costas
para a lareira apagada onde, por cima do tronco semicarbonizado que sobrevivera
ao último Inverno, estavam espalhados ramos de loureiro e folhas de erva-cidreira. Olharam-se
sem palavras, e o homem reconheceu-se, sobressaltado, nos olhos esbraseados de
febre com que ela o trespassou, como se a realidade do seu corpo não fosse mais
do que um véu esgaçado, sem consistência nem sentido. Lá fora o dia caíra por
completo, e o silêncio do princípio da noite dera lugar a um atordoador
concerto de cigarras.
O homem acendeu o
candeeiro de petróleo suspenso de uma argola no rebordo da lareira, e a luz
amarelada escorraçou as sombras entre os dois para os cantos da sala.
«É uma bênção que ela não queira falar», pensou, aturdido pelo absurdo da
situação. Ela lembrava-lhe um pássaro caído prematuramente do ninho, que era
preciso confortar e alimentar até o devolver ao ramo da árvore de onde um vento
mau o expulsara. Mas ao mesmo tempo, uma força estranha mantinha-o colado ao
assento improvisado num tronco de madeira, que esperava, desde a última
Primavera, pelo fogo do próximo Inverno.
Subitamente, a mulher sorriu e ergueu para ele os olhos pisados:
– O comboio. Está a
chegar – disse.
Com um lenço de
cambraia, bordado com duas iniciais entrelaçadas, que tirou da bolsinha
ridícula, limpou o rosto de porcelana. Depois, ergueu-se como se ressuscitasse,
e, em passos firmes, o corpo palpitante de vida, dirigiu-se para a porta,
deixando atrás de si um rasto de madressilva.
O homem acendeu um cigarro. «É doida», pensou. «É a única louca que existe
nesta parte do mundo tinha que ser eu a encontrá-la. Fugiu de uma procissão, de
um teatro ambulante ou de um manicómio. Só para me incomodar.» Agarrou-se
a estes pensamentos numa lucidez de náufrago, na noite subitamente rasgada pelo
som do apito de um comboio que se aproximava a resfolegar por carris
inexistentes, varrendo a escuridão com um olho vermelho e monstruoso.
Então, o homem
correu para a porta e viu-a a subir para os estribos de uma carruagem
impossível, e ela voltou-se e olhou-o com uma expressão transfigurada de
alegria, e acenou-lhe com uma mão que parecia uma asa.
– Obrigada – disse,
mas nenhum som lhe saiu dos lábios.
«Como as estrelas
dos cinemas mudos», pensou o homem, paralisado na eternidade daquele instante,
vendo o comboio desaparecer sobre o fantasma dos antigos trilhos, até se diluir
na mancha escura dos montes.
No dia seguinte
havia um pedaço de cambraia bordado com duas iniciais, leve como uma teia de
aranha, a deslizar no chão de saibro da entrada. A brisa quente da manhã
fazia-o dançar com folhas e ervas secas, numa fragrância de madressilva.
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