Em Outubro de 1975, encontrava-me
a viver em Sines, no Palácio Pidwell, quando escrevi o meu primeiro poema,
«África». De rajada, ao longo de uma noite muito escura. Dias depois, li-o ao Al Berto e ao João do Ó. Nesses tempos, trocávamos poemas, palavras,
projectos e bebíamos o bom vinho alentejano com que brindávamos a todos os
futuros. Depois, nunca falei desses tempos, nunca escrevi sobre esses tempos, e
não mostrei o poema a mais ninguém. Retomo-o agora,
porque me parece adequado como ponto de partida para este Encontro, nas Raias Poéticas de Famalicão.
África
I
O tempo
deixou-me este gosto na pele, este calor na alma,
Um nó na
garganta, as mãos vazias, o corpo nu. Em carne viva.
Tatuagens de
recordações, espalho-as no chão, à minha volta
Há gritos de
sereia num porto e eu lambo cinzas.
Ainda estão
quentes.
Onde estão
todos?
Paredes nuas.
Colares de
missangas vermelhas, colares de missangas negras
Um bater surdo
de tambores.
Árvores dos
tempos do primeiro Tempo.
E templos e véus
e estradas escondidas sob o mato denso de silvas
Como puderam
esconder tamanho esplendor?
Fiz-me à estrada
cega e perdi-me.
Perdemo-nos
todos
Uns dos outros
II
Andamos
juntos e ainda não te vi o rosto.
Amei-te,
e eras sempre diferente.
E
contudo... se soubesses por onde te procurei.
Ouves o meu
grito?
Esperei sempre que me dissesses na concha do meu ouvido:
Somos
os marinheiros e o mar e o navio. Somos a tempestade e o sono.
Sonho.
Queria dizer-te
isto:
Viver
é amar cada segundo como se fosse o último,
Mas
não é sempre assim.
Gosto
de redes e de laços. Gosto de anéis.
Gostava
de não gostar.
Gostava de já não gostar.
III
Depois de enterrar os mortos
Esqueci o local das sepulturas.
Às
vezes ainda lá vou
Queimar
imagens de deuses
numa
lareira que nem existe,
E ouço-me
A
chamar por eles.
E
fico
De
mãos feridas a escavar palavras e silêncios.
Procuro,
procuro.
Penso:
para onde vamos meu amor?
Volto
sempre.
Da
soleira da porta vejo-te acenar-me
Quando
me viro,
Com
as mãos em concha,
Protejo-me
da luz para te ver bem
Antes
que a estrada me engula.
Penso:
porque não me prendeste
com
laços e anéis nas redes dos teus braços adormecidos?
Então,
volto
Sempre
à espera
De
ti.
Esvazio-me
E
penso: quem és tu?
IV
Mar
manso, mar manso…
Pescador
da Ilha, onde estão as minhas redes?
No
vento da tarde soltei os ramos
Na
Primavera abri a copa das árvores
Chovia
e entraste no meu tronco.
Tremias.
Disseste:
Tenho tanto medo.
Tenho tanto medo.
Adormecemos.
Quando
acordei os sons que se evaporavam da terra eram ocres,
E
havia tanto fumo.
E
havia tanto fogo.
E havia tanta dor.
E havia eu
Enredada em meus caminhos para lado
nenhum.
Amortalhando os sete sentidos incluindo
o tacto
Sondando rostos fechados diante
de casas sem portas nem janelas, nem ninguém.
Eu e o meu medo insone asfixiando-me
em abraços de amante obsessivo
Às
vezes, o som dos sinos amansava a tarde,
Mas
por muito pouco tempo.
À
noite, não conseguia ouvir bater o coração escuro do mundo:
Falavam
todos muito alto.
Pareciam
perdidos e riam
Nem perceberam que me fui embora…
V
Quero
estar só.
Quero
esta solidão indizível para te encontrar amor,
Caleidoscópio
de rostos, mil faces a tua,
quero saber o
teu nome!
Quero
rasgar tanta coisa,
Afastar
estes véus, estes véus...
Regressar aos braços negros que abraçam
a Terra inteira.
Farejar o teu cheiro nas flores
de sangue, tão vivas dentro das suas pétalas mortas,
Enrolar-me em teu regaço denso escuro e
cálido,
Oh Mãe!
Pousar o fardo das memórias de tanto desencontro
E recordar
Todos os teus nomes
Todos os teus corpos
Todos os teus cheiros E recordar
Todos os teus nomes
Todos os teus corpos
Todos os teus sabores
Todos os teus sons
E dizer-te:
Voltei de lado nenhum para entrar
na roda das antiquíssimas danças
Ao som dos tambores da noite que
tocam sob céus esmaltados de chamas.
Abraça-me muito oh Mãe de todos!
E seca o meu pranto de acabada de
nascer
Porque
pesa tanto...
pesa tanto...
O
estômago vazio,
O saco vazio
Do vagabundo,
A alma solta de quem viaja,
Este amor que sinto, esta dor que tenho,
Chamei-te tantas vezes.
Tantas vezes.
Tantas vezes.
Se ao menos
soubesses como te amo.
(Manuela Gonzaga, Sines, Outubro
de 1975.)