Carla Lemos, subvertendo aparentemente o modelo proposto nas ultimas oficinas de escrita, assina este belissimo conto onde a força do não-dito irrompe de forma lapidar no penúltimo parágrafo. Mais uma vez, esta é uma história fala de liberdade. E de como, mesmo nas aparentemente mais intransponíveis circunstâncias, ela, a liberdade, está, sempre, alada e feroz, ao alcance do nosso livre ser e pensar. Com gratidão, partilho este texto. Manuela Gonzaga
Se eu lhe pintar os contos no meu livro em branco
Nestes dias de
Primavera que
oscilam entre o Inverno e o Verão ainda distante, quando o sol ora se fecha em núvens espessas, ora aparece por momentos,
a espreitar através dos vidros
das janelas, que se tornaram, com o
passar do tempo, demasiado pequenas,
observo os choupos com as suas
folhas a despontar e a crescer rapidamente. No céu, o brilho intenso de um ponto traz-me
Mercúrio o planeta mais próximo do Sol,
aquele que me deixa pensar em paz.
Aqui, ainda é
cedo, mas há
todo um concerto prestes a começar. Vejo a
agitação das folhas e
sigo os grandes melros vestidos
de escuro que retomam a recolha do que podem.
— Malandros. Ainda esta madrugada
andavam na recolha, e já cá andam de novo. Larguem isso! — mas ao ver ao ver os mais pequenos a chegarem a
medo ao jardim, calo
o meu grito.
Um deles olha.-me de lado, num ar
de certeza absoluta. Desafia-me
a cada dia que passa, batendo as asas, como que a dizer-me que
eu nunca voei, e nunca fui assim como ele, forte e grande, nem nunca precisei de me alimentar muito, nem à
família, que ele sim, vai
constituir. Pois. Abraço a Happy, este peludo ser de luz que ladra às vezes, e que se mantém sempre atenta ao que vê, enquanto finge escutar, atentamente, as minhas tolices.
— Ohhh,
que lindooo! Ohhh, que voo num rasto cor
de fogo.
Parece-me um rabirruivo que veio buscar insectos.
Bem o vejo daqui, a voar direito ao relvado, apanhando um distraído
pulgão que caminhava lenta e desequilibradamente:
— Pulgão, estavas distraído. Não
fiques triste. É a vida.
Chegam os pintassilgos, esvoaçando e saltitando, em alegres
e doces trinados como um côro que desce dos céus.
— Olha
Happy, que lindas cores têm. Vês cabecitas
vermelhas, preto e branco? E olha as asas quando voam para mais
longe…vês a barra amarela?
Uma pintura perfeita.
É assim, minha amiga. A vida não pára lá fora. Mercúrio, já o perdi na claridade do dia a despontar. Abro a janela para ouvir melhor a
maior composição que a natureza nos traz . Deixo
o ar fresco bater-nos na cara. Fecho os olhos, não sem antes olhar
a minha companheira, que aproveita o ar, dando aquela lambidela de prazer. Os sons misturam-se com o sopro do vento, em melodias diferentes,
naquele pedaço de jardim que avisto dia após dia. O
sol chega hoje em todo
o seu esplendor. A Happy sente isso e
mostra-mo, deitando-se e suspirando longamente,
numa atitude de total confiança. Agarro
no meu pequeno livro em branco e desenho letras que parecem pássaros, nuvens brancas onde se leem mensagens,
núvens negras carregadas de energia e beleza, e ainda sobra espaço para o sol
que aparece para me acumular de força de vida. Reescrevo
a minha vida, à chegada de cada nova Estação. E tu Happy, trazes contigo a certeza de que tudo isto acontece ao mesmo tempo. Tal como eu, sabes que o tempo não
existe. É esta linha, Happy, que nos leva
pela vida.
«Vida?». Ela levanta-se
ela entusiasmada com mais uma vocalização que a deixa atenta.
—
É a nossa escrevedeira, pateta! — tec,
tac, tec, tac…tec…tac tac atc… — Deixa-me só transcrever este som, que
maravilha…parece quando eu escrevia à máquina. Sabes? Antes escrevia numa máquina… — e ainda hoje consigo sentir como o toque feroz dos meus
dedos nas teclas redondas, espaçadas, convocava cada
elemento metálico, onde uma letra gravada
em relevo batia numa fita de tinta,
deixando a página
em branco do papel, pintada de letras e frases. Histórias.
— Shiuuu! - parece a Happy reclamar, a olhar fixamente para o novo casal de
gaios que tem aparecido por aqui.
O som que emitem é fortíssimo e
incomoda a minha parceira, que por certo correria atrás destes passarões, sem se
preocupar em perder o voo, ou ficar frustrada
por não os conseguir apanhadar. Só para correr por correr, no puro
prazer de mexer um corpo pouco habituado à liberdade de movimentos.
—
Happy! Happy! Olha como aquele melro apanhou aquela minhoca gigante.
Tardiamente, aponto
a minha camera e perco de vista a caçada. Talvez
haja momentos mais importantes para os nossos olhos do que uma fotografia.
— Adeus minhoca, ser subterrâneo que muito
estimo.
Agarro no meu caderno e desenho
minhocas invisíveis que constroem túneis intermináveis debaixo da terra húmida
e sem luz. Às vezes, aparecem quando enterro a enxada no
meu pedaço de terra. É ali que vivem, de raízes e sobras que transformam num riquíssimo alimento
para o próprio espaço onde vivemos neste
nosso mundo. Sim. A minhoca podia ser um ser sagrado
como já foi um dia.
— Cucurrrru! Cucurrru! — é hora das rolitas conversarem.
Falam muito, estes seres alados. Vivem no pinheiro manso gigante, todo em flor
por esta altura. O sol vai alto. Percebe-se, pela azáfama que se ouve nos topos
das árvores. As primeiras a encherem-se de folhas
são os freixos, que, não tarda, vão deixar-nos descansar por baixo da sua sombra. Por
agora, dão cachos de minúsculas flores que caem e cobrem o chão como um tapete.
— Daqui a nada, chega a fada que abraça árvores,
Happy.
Há uma fada que abraça árvores e voa de
flor em flor, e fala a quem passa sobre a importância de tudo isto. A Happy e eu conhecemos a fada que habita este jardim. Ela
inspira-nos com a sua enorme sabedoria, e
torna as nossas vidas mais leves. Mais mágicas. Também conhecemos outros seres deste
pequeno jardim. Outrora corria aqui perto a água de um ribeiro,
mas o construtor não o viu, ou se o viu, não
quis saber e enterrou-o para sempre. Ao
ribeiro. Dizem que as ondinas que aí
habitavam, choraram tantas lágrimas que iam daqui até ao mar, mas também dizem que algumas ainda cá vivem,
aprisionadas em caves húmidas. Quem
nos conta isto é a fada que abraça árvores, e
até ensinou a Happy a cheirar as flores do caminho.
— Está
na hora, Happy!
Visto o meu fato branco de astronauta, e chamo-a para junto de mim. A tarde cai, o vento arrasta as
folhas e traz um cheiro a maresia. Lá
longe, o mar vai contar toda a verdade sobre sereias, ninfas, nereides, e as
pobres das ondinas transformadas
agora em ondas. Caminho vagarosamente, encerrada neste fato que me protege, mas que também
me isola dos seres que vieram pisar
a terra, sem ouvir em silêncio as histórias que a natureza tem para nos contar.
Entretanto, a Happy já avistou
a fadinha, e corre atrás dela para o jardim do duende que me prometeu contar
mais histórias… se eu escrever e pintar os seus contos no meu livro em branco.
Carla Lemos,
Oeiras, Abril de 2020