domingo, abril 26, 2020

Se eu lhe pintar os contos no meu livro em branco

Carla Lemos, subvertendo aparentemente o modelo proposto nas ultimas oficinas de escrita, assina este belissimo conto onde a força do não-dito irrompe de forma lapidar no penúltimo parágrafo. Mais uma vez, esta é uma história fala de liberdade. E de como, mesmo nas aparentemente mais  intransponíveis circunstâncias, ela, a liberdade, está, sempre, alada e feroz, ao alcance do nosso livre ser e pensar. Com gratidão, partilho este texto. Manuela Gonzaga

Se eu lhe pintar os contos no meu livro em branco



         Nestes dias de Primavera que oscilam entre o Inverno e o Verão ainda distante, quando o sol ora se fecha em núvens espessas, ora aparece por momentos,  a espreitar através dos vidros das janelas, que se tornaram, com o passar do tempo, demasiado pequenas, observo os choupos com as suas folhas a despontar e a crescer rapidamente. No céu, o brilho intenso de um ponto traz-me Mercúrio  o planeta mais próximo do Sol, aquele que me deixa pensar em paz.
         Aqui, ainda é cedo, mas há todo um concerto prestes a começar. Vejo a agitação das folhas e sigo os grandes melros vestidos de escuro que retomam a recolha do que podem.
         — Malandros. Ainda esta madrugada andavam na recolha, e já cá andam de novo. Larguem isso! — mas ao ver ao ver os mais pequenos a chegarem a medo ao jardim, calo o meu grito.
         Um deles olha.-me de lado, num ar de certeza absoluta. Desafia-me a cada dia que passa, batendo as asas, como que a dizer-me que eu nunca voei, e nunca fui assim como ele, forte  e grande, nem nunca precisei de me alimentar muito, nem à família, que ele sim, vai constituir.  Pois. Abraço a Happy, este peludo ser de luz que ladra às vezes, e que se mantém sempre atenta ao que vê, enquanto finge escutar, atentamente, as minhas tolices.
       Ohhh, que lindooo!  Ohhh, que voo num rasto cor de fogo.
         Parece-me um rabirruivo que veio buscar insectos. Bem o vejo daqui, a voar direito ao relvado, apanhando um distraído pulgão que caminhava lenta e desequilibradamente:
       — Pulgão, estavas distraído. Não fiques triste. É a vida.
         Chegam os pintassilgos, esvoaçando e saltitando, em alegres e doces trinados como um côro que desce dos céus.
       Olha Happy, que lindas cores têm. Vês cabecitas vermelhas, preto e branco?  E olha as asas quando voam para mais longe…vês a barra amarela?
         Uma pintura perfeita.
         

        É assim, minha amiga. A vida não pára lá fora. Mercúrio, já o perdi na claridade do dia a despontar. Abro a janela para ouvir melhor a maior composição que a natureza nos traz . Deixo o ar fresco bater-nos na cara.  Fecho os olhos, não sem antes olhar a minha companheira, que aproveita o ar, dando aquela lambidela de prazer. Os sons misturam-se com o sopro do vento, em melodias diferentes, naquele pedaço de jardim que avisto dia após dia. O sol chega hoje em todo o seu esplendor. A Happy sente isso e mostra-mo, deitando-se e suspirando longamente, numa atitude de total confiança. Agarro no meu pequeno livro em branco e desenho letras que parecem pássaros, nuvens brancas onde se leem mensagens, núvens negras carregadas de energia e beleza, e ainda sobra espaço para o sol que aparece para me acumular de força de vida. Reescrevo a minha vida, à chegada de cada nova Estação. E tu Happy, trazes contigo a certeza de que tudo isto acontece ao mesmo tempo. Tal como eu, sabes que o tempo não existe. É esta linha, Happy, que nos leva pela vida.
       «Vida?». Ela levanta-se ela entusiasmada com mais uma vocalização que a deixa atenta.
         É a nossa escrevedeira, pateta! — tec, tac, tec, tac…tec…tac tac atc…  — Deixa-me só transcrever este som, que maravilha…parece quando eu escrevia à máquina. Sabes? Antes escrevia numa máquina e ainda hoje consigo sentir como o toque feroz dos meus dedos nas teclas redondas, espaçadas, convocava cada elemento metálico, onde uma letra gravada em relevo  batia numa fita de tinta, deixando a página em branco do papel, pintada de letras e frases. Histórias.
         Shiuuu! - parece a Happy reclamar, a olhar fixamente para o novo casal de gaios que tem aparecido por aqui.
         O som que emitem é fortíssimo e incomoda a minha parceira, que por certo correria atrás destes passarões, sem se preocupar em perder o voo, ou ficar frustrada por não os conseguir apanhadar. Só para correr por correr, no puro prazer de mexer um corpo pouco habituado à liberdade de movimentos.
         Happy! Happy! Olha como aquele melro apanhou aquela minhoca gigante.
         Tardiamente, aponto a minha camera e perco de vista a caçada. Talvez haja momentos mais importantes para os nossos olhos do que uma fotografia.
       — Adeus minhoca, ser subterrâneo que muito estimo.
         Agarro no meu caderno e desenho minhocas invisíveis que constroem túneis intermináveis debaixo da terra húmida e sem luz. Às vezes, aparecem quando enterro a enxada no meu pedaço de terra. É ali que vivem, de raízes e sobras que transformam num riquíssimo alimento para o próprio espaço onde vivemos neste nosso mundo. Sim. A minhoca podia ser um ser sagrado como já foi um dia.
       — Cucurrrru! Cucurrru!  — é hora das rolitas conversarem.
         Falam muito, estes seres alados. Vivem no pinheiro manso gigante, todo em flor por esta altura. O sol vai alto. Percebe-se, pela azáfama que se ouve nos topos das árvores. As primeiras a encherem-se de folhas são os freixos,  que, não tarda, vão deixar-nos descansar por baixo da sua sombra.  Por agora, dão cachos de minúsculas flores que caem e cobrem o chão como um tapete.


       — Daqui a nada, chega a fada que abraça árvores, Happy.
         Há uma fada que abraça árvores e voa de flor em flor, e fala a quem passa sobre a importância de tudo isto. A Happy e eu conhecemos a fada que habita este jardim.  Ela inspira-nos com a sua enorme sabedoria, e torna as nossas vidas mais leves. Mais mágicas. Também conhecemos outros seres deste pequeno jardim. Outrora corria aqui perto a água de um ribeiro, mas o construtor não o viu, ou se o viu, não quis saber e enterrou-o para sempre. Ao ribeiro. Dizem que as ondinas que aí habitavam, choraram tantas lágrimas que iam daqui até ao mar, mas também dizem que algumas ainda cá vivem, aprisionadas em caves húmidas. Quem nos conta isto é a fada que abraça árvores, e até ensinou a Happy a cheirar as flores do caminho.
Está na hora, Happy!
         Visto o meu fato branco de astronauta, e chamo-a para junto de mim. A tarde cai, o vento arrasta as folhas e traz um cheiro a maresia. Lá longe, o mar vai contar toda a verdade sobre sereias, ninfas, nereides, e as pobres das ondinas transformadas agora em ondas. Caminho vagarosamente, encerrada neste fato que me protege, mas que também me isola dos seres que vieram pisar a terra, sem ouvir em silêncio as histórias que a natureza tem para nos contar.
Entretanto, a Happy avistou a fadinha, e corre atrás dela para o jardim do duende que me prometeu contar mais histórias se eu escrever e pintar os seus contos no meu livro em branco.

Carla Lemos, 

Oeiras, Abril de 2020

sexta-feira, abril 24, 2020

Das sombras para a Luz

Mais um precioso conto, produzido nas minhas últimas Oficinas de Escrita. Num estilo muito depurado, quase a aflorar a poesia, e com uma cadência que nunca perde de vista o fio condutor da narrativa, Filomena Afonso Mourinho leva-nos da opressão das trevas à jornada da luz. Um prazer de ler. Manuela Gonzaga






São três horas da manhã. Sei-o, porque todos os dias, a esta hora, há alguém que grita ao fundo do corredor. É um grito com hora marcada, um grito que me faz perder-me no meio dos fantasmas que me perseguem. Olho em redor e vejo a negridão de um bando de corvos que me consome o coração, numa luta infernal para me libertar.
Estou sozinha. Encontro-me mergulhada num manto de breu. Perdi a noção do tempo, desde que me fecharam neste ermo. Ao alto, junto ao teto bolorento, uma brecha minúscula a que não se pode chamar janela deixa antever uma cruz através da pouca luminosidade que entra. A minha cruz. Há quanto tempo a carrego. A cama onde me deito, com lençóis que lembram serapilheira velha endurecida pela sujidade, é o meu único porto de abrigo, o berço que me acolhe neste inferno. Durmo, acordo, adormeço e acordo de novo, sempre com a mesma roupa, um vestido velho, coçado, que já foi preto mas agora está cor das cinzas. Não sei como arranjar outra roupa, não sei, sequer, se quero outros trajes . Levanto-me entorpecida e não me reconheço no espelho que adorna a parede rachada à minha frente. A pouca luz que existe não me permite ver o meu olhar, mas eu sinto-o. Frio. Vazio. Cheio de nada.
À minha esquerda, encostada à parede, uma mesa de madeira adornada com resquícios de bicho-da-madeira, acolhe Cem Anos de Solidão e uma primeira edição da poesia de Neruda em espanhol. À direita dos livros, velhos e também eles bafientos, duas páginas em branco, onde me entretenho a escrever a minha vida em letra quase ilegível, porque sou  pequenina e sei bem que a minha vida, embora já tenha sido muito grande, é-me agora muito diminuta. O meu tempo  de solidão tem vindo a delapidar, pouco a pouco, a minha sanidade. Acho que estou louca. Louca. Louca.
Lá fora, onde por vezes me é permitido vaguear, há lugares e pessoas que conheço, mas não sei de onde. Vejo-me, ali, num jardim de inverno, com árvores altas que não permitem ver para lá do seu tronco. Estive lá ontem. Ou seria na semana passada? É lá que os encontro; aqueles, os únicos que me fazem acreditar que estou viva. Agora, não consigo ver-lhes as caras, mas confio-lhes o meu Tempo. Não me resta outra possibilidade. 
Acordo inundada de suor, em brados: “Morram-me!”. Parece-me ouvir passos na minha cela. Mas quando olho, não vejo ninguém. Fugiram? O que sei é que “Eles” continuam a torturar os meus momentos de sono, sem me deixarem descansar destas, nestas trevas. Estão sempre lá. Estão sempre aqui. Comigo. Para me enlouquecerem. Para me fazerem morrer por dentro. Quem sabe não seria melhor. Continuo sem saber porque estou aqui. Continuo sem saber onde estou. Os meus cabelos longos estão desgrenhados. A minha pele, baça. O meu corpo, trôpego. O meu choro, rouco de cansaço. Cheguei ao ponto sem retorno. Entrego-me.
Subitamente, embalada pela entrega do meu corpo ao chão frio, uma enxurrada leva-me aos solavancos, rebentando com a porta que me encerra, flutuando-me pelos corredores, pelas escadarias, pelas alas escuras e pelos pórticos centenários na direção da Luz. Embalada pelo barulho assustador deixo-me ir e grito. Finalmente, ao entregar-me, consegui o que ainda não me tinha sido possível. Ver a Luz. 
Filomena Afonso Mourinho
março | 2020