Mais um precioso conto, produzido nas minhas últimas Oficinas de Escrita. Num estilo muito depurado, quase a aflorar a poesia, e com uma cadência que nunca perde de vista o fio condutor da narrativa, Filomena Afonso Mourinho leva-nos da opressão das trevas à jornada da luz. Um prazer de ler. Manuela Gonzaga
São três horas da manhã.
Sei-o, porque todos os dias, a esta hora, há alguém que grita ao fundo do
corredor. É um grito com hora marcada, um grito que me faz perder-me no meio
dos fantasmas que me perseguem. Olho em redor e vejo a negridão de um bando de
corvos que me consome o coração, numa luta infernal para me libertar.
Estou sozinha. Encontro-me
mergulhada num manto de breu. Perdi a noção do tempo, desde que me
fecharam neste ermo. Ao alto, junto ao teto bolorento, uma brecha minúscula a
que não se pode chamar janela deixa antever uma cruz através da pouca
luminosidade que entra. A minha cruz. Há quanto tempo a carrego. A cama onde me
deito, com lençóis que lembram serapilheira velha endurecida pela sujidade, é o
meu único porto de abrigo, o berço que me acolhe neste inferno. Durmo, acordo,
adormeço e acordo de novo, sempre com a mesma roupa, um vestido velho, coçado,
que já foi preto mas agora está cor das cinzas. Não sei como arranjar outra
roupa, não sei, sequer, se quero outros trajes . Levanto-me entorpecida e não
me reconheço no espelho que adorna a parede rachada à minha frente. A pouca luz
que existe não me permite ver o meu olhar, mas eu sinto-o. Frio. Vazio. Cheio
de nada.
À minha
esquerda, encostada à parede, uma mesa de madeira adornada com resquícios de
bicho-da-madeira, acolhe Cem Anos de
Solidão e uma primeira edição da poesia de Neruda em espanhol. À direita
dos livros, velhos e também eles bafientos, duas páginas em branco, onde me
entretenho a escrever a minha vida em letra quase ilegível, porque sou
pequenina e sei bem que a minha vida, embora já tenha sido muito grande,
é-me agora muito diminuta. O meu
tempo de solidão tem vindo a
delapidar, pouco a pouco, a minha sanidade. Acho que estou louca. Louca. Louca.
Lá fora, onde por vezes me
é permitido vaguear, há lugares e pessoas que conheço, mas não sei de onde.
Vejo-me, ali, num jardim de inverno, com árvores altas que não permitem
ver para lá do seu tronco. Estive lá ontem. Ou seria na semana passada? É lá que os encontro; aqueles, os únicos que me fazem acreditar que estou viva.
Agora, não consigo ver-lhes as caras, mas confio-lhes o meu Tempo. Não me resta
outra possibilidade.
Acordo inundada de suor, em brados:
“Morram-me!”. Parece-me ouvir passos na minha cela. Mas quando olho, não vejo
ninguém. Fugiram? O que sei é que “Eles” continuam a torturar os meus momentos
de sono, sem me deixarem descansar destas, nestas trevas. Estão sempre lá.
Estão sempre aqui. Comigo. Para me enlouquecerem. Para me fazerem morrer por
dentro. Quem sabe não seria melhor. Continuo sem saber porque
estou aqui. Continuo sem saber onde estou. Os meus cabelos longos estão desgrenhados. A minha
pele, baça. O meu corpo, trôpego. O meu choro, rouco de cansaço. Cheguei ao
ponto sem retorno. Entrego-me.
Subitamente, embalada pela
entrega do meu corpo ao chão frio, uma enxurrada leva-me aos solavancos,
rebentando com a porta que me encerra, flutuando-me pelos corredores, pelas
escadarias, pelas alas escuras e pelos pórticos centenários na direção da Luz. Embalada
pelo barulho assustador deixo-me ir e grito. Finalmente, ao entregar-me,
consegui o que ainda não me tinha sido possível. Ver a Luz.
Filomena Afonso Mourinho
março | 2020
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