terça-feira, março 31, 2020

Não posso continuar. Vou continuar

Elisabeth Carreira está umbilicalmente ligada ao Teatro, à sua escrita e imagética, pelo que este conto lhe surgiu, segundo me disse, de forma quase compulsiva. É uma narrativa muito bela e muito generosa. Num enredo perfeito, ela homenageia alguns dos monstros sagrados que lhe iluminam o percurso. Mário Viegas. Craveirinha e outros, numa antologia de poesia Moçambicana. Beckett. E deixa-nos a interrogação filosófica que assombra a humanidade desde os alvores do tempo. «É a minha situação uma metáfora da existência humana?». Aplauso. 

Manuela Gonzaga
 
Sísifo, o grande rebelde 

Não posso continuar. Vou continuar


Estendo a perna à procura da tua, o meu corpo a querer cumprir o abraço quente e reconfortante com que sempre iniciamos o dia. Dou com a parede dura e fria. Ainda de olhos fechados, tento ordenar os pensamentos. Que se passa? Chamo-te, a medo. Pressinto que algo está errado. Tateio. Esta cama estreita, não é a minha, não é a nossa. Obrigo-me a abrir os olhos. Estou só. Num quarto minúsculo, onde nunca estive. Há uma janela pequena, com uma grade em forma de cruz, por onde irrompe, tímida, a luz do amanhecer. É demasiado alta. Não chego lá. Olho em volta. Vejo uma cadeira, junto a uma pequena mesa metálica. Coloco-a por baixo da janela e subo para a inspeccionar. Não existe manípulo. Espreito. Devo estar num segundo andar a avaliar pelo edifício em frente, pontuado com pequenas janelas gradeadas, como a minha. A separar os dois edifícios, um pátio amplo, com árvores. 

Encontro-me numa prisão, portanto. Ou num hospício? Interrogações sem resposta. Que terei feito para estar aqui? Quem me quer mal? Onde estás?

Desço da cadeira. Viro-me no sentido contrário. Uma porta de ferro. Tento abri-la. Trancada. Estou evidentemente presa. Como vim aqui parar? Por que não me lembro de nada? Uma sensação de vertigem leva-me a sentar-me na cama, a cabeça entre os joelhos. «Faça isso quando sentir tonturas», disse a médica. «E respire de forma profunda até que passe o mal-estar. Esse procedimento ajuda a circulação sanguínea a chegar mais rapidamente ao cérebro.» Ao fim de uns minutos, fico mais calma, é um facto. Há coisas que aprendemos na vida que um dia se revelam úteis. Esforço-me por racionalizar. Reparo que sobre a mesa estão dois livros. Descoberta excitante. Sobre eles, os meus óculos. Excelente combinação, já que sem eles os livros se revelariam inúteis.

Pego no de cima. Beckett! Livro velhinho, comprado por mim ainda nos tempos da Faculdade! Edição portuguesa, da Arcádia, não datada. Custou-me 50 escudos, segundo se lê, a lápis, na primeira página. Imagino-me a comprá-lo com volúpia, objecto de luxo, na antiga Livraria Universitária do Campo Grande, já desaparecida. Três peças, À Espera de GodotFim de Festa e A última gravação. Vem-me à cabeça uma lembrança boa:  Mário Viegas, genial, maravilhoso, insuperável, em À Espera de Godot, na pequena sala do mais tarde apelidado Teatro-Estúdio Mário Viegas. O maior dos actores portugueses entregando-se inteiro, presumo que já doente, às palavras – e aos silêncios, que tão bem interpretava – do maior dos dramaturgos modernos. Dois enormes amores na minha vida. E Endgame (Fim de Festa), ainda tão vivo na minha memória, o espetáculo que vi recentemente em Londres, com dois colossais actores, Alan Cumming e Daniel Radcliffe, transportando o texto de Beckett às alturas do sublime. Dei comigo na plateia banhada de lágrimas, tal o êxtase. Beckett, portanto, aqui comigo, a alimentar-me a alma. Pena ser uma tradução. Em tempos tive em casa uma edição inglesa, mas dei-me conta que desapareceu, naturalmente para casa de um dos nossos filhos.

Pego no outro: Nunca mais é sábado, antologia de poesia moçambicana. Também meu, mais recente. Teatro e Moçambique. Sorrio. Sabes que são duas palavras que me definem. Terei sido eu a trazer estes livros? Não são obra do acaso. Só posso ter sido eu ou os nossos filhos. Tu não, o teu mundo é outro. Não estavam na minha mesa de cabeceira, alguém os procurou criteriosamente nas minhas estantes. Por trás  destes livros, está alguém que me conhece e se preocupa. Não estou só. Não estou só.

Há uma espessa neblina no meu cérebro, que me impede de compreender esta absurda situação. Em sonhos, já vivi esta sensação angustiante. A de não saber onde estou, como sair, que culpa estou a espiar. Olho de novo à volta. Não é sonho. Tudo demasiado real. Ou melhor, surreal.

Abro a antologia moçambicana, aleatoriamente.  Dou com o Craveirinha, um outro amor incondicional. Admirável poeta, nascido no mais pobre dos bairros pobres da capital moçambicana. Autodidacta, fez-se enorme “encontrando no amor a sublimação de tudo”, e ansiando pelo dia em que veria o seu “áfrico país” erguer-se, livre e digno, em toda a sua autenticidade. Porque é indigna a privação da liberdade, como bem me dou conta. Sentir que alguém mais forte que nós, dono da nossa vida, nos limita e nos cala. Era assim, antes. Mas a ditadura tinha um rosto. Agora desconheço quem me oprime.

Saboreio o poema Exíguas palavras:

Posso jurar que a solidão me tacteia.
Uma a uma esvaindo-se no rígido vazio
Exíguas são as palavras que me ocorrem.

Rimas de livros fitam-me indulgentes.
Desde Camões ao Eça passando por Tolstoi
São-me vãs as palavras que contêm.

Um sobressalto interrompe-me a escrita
Na maneira yankee de chamar deve ser o Hemingway.

Jamais estamos socraticamente sós. Há sempre um Chaplin.
Não são os grãos de areia um por um que povoam os desertos?

Jamais estaremos sós, portanto, enquanto pudermos escutar os grandes autores. Faltas-me, porque és metade de mim. Mas não estou só. Encosto um livro ao peito e depois o outro.  São dois livros, não são mais do que isso, dois objectos banais, mas a sua presença reconforta-me extraordinariamente.

Pouso os livros e reparo que sobre a mesa há num caderno preto, desses que tenho sempre em casa. E duas esferográficas. A coisa compõe-se! Estou trancada numa cela, não sei porquê, não sei por quanto tempo, mas poderei libertar os pensamentos, evadir-me, escrevendo, desenhando... Não estou só.

Um pequeno lavatório. Tenho água. A minha escova de dentes num copo. A pasta de dentes habitual. Pelo menos isso. Lavo a cara, escovo os dentes e limpo-me à toalha pendurada ao lado. Olho-me no espelho suspenso acima do lavatório e com dois dedos tento apagar a ruga entre os olhos. Respirar. Isto não é para sempre. É um equívoco. Vai ficar tudo bem. Estou de pijama. O meu confortável pijama camiseiro de xadrez vermelho. Outra boa escolha. Olho à volta. O meu robe branco pendurado num prego. E é tudo. Não tenho mais roupa. Não poderei ir, pelo menos, até ao pátio? E as refeições?

Como se ouvisse a minha muda interrogação, alguém destranca a porta e assoma por um momento. Pequeno almoço! Uma voz feminina entrega-me um tabuleiro. Uma farda inconclusiva. Guarda? Auxiliar de ação médica? Sai rapidamente e tranca de novo a porta, sem dar azo a perguntas. Pão com manteiga e uma caneca com café com leite. Não estava à espera de mais. Obrigo-me a debicar a carcaça deslavada e a beber o café frio.  Subjugada, mas não rendida. Resistente.

Dou voltas na pequena cela. Interrogo-me sem cessar, tentando reconstituir os últimos momentos de que me recordo. Esbarro num muro negro. Não encontro respostas. Não sei como sair desta situação. Sinto-me personagem de Beckett, mulher non-knower e non can-er, numa peça em que o absurdo impera. É a minha situação uma metáfora da existência humana? Todos nos debatemos, quando nos permitimos alguma lucidez, com questões sem resposta sobre o sentido da vida, a impossibilidade da verdadeira comunicação com os outros, a solidão em que vivemos e morremos.

E acabamos por concluir que por mais que doa, prosseguir é preciso.

I can’t go on. I’ll go on.


Elisabeth Carreira
Lisboa, 28 de março 2020

Imagem (mito de Sísifo)








1 comentário:

Elisabeth Carreira disse...

Muito obrigada pelas tuas palavras, Manuela. E pelo formidável desafio, a que tentei corresponder com imenso prazer.