domingo, março 29, 2020

Fada Azul. dá-me asas!


Misturando contextos tão presentes nos estranhos dias que vivemos, com quadros de ficção cientifica, voando sobre futuros e passados re-construídos e destruídos, numa escrita iluminado pela fantasia redentora da magia, Maria Vitória Duarte constrói uma narrativa com a sabedoria de uma criança e a maturidade de quem aprendeu a ver a irrealidade sob o que nos dizem ser  'real'. Manuela Gonzaga


Pinóquio e a Fada Azul 



Um raio de sol entrou pela janela gradeada e fez uma sombra em cruz em cima da secretária. Era das poucas coisas escuras essa cruz, naquela cela onde quase tudo era branco e asséptico, desde as paredes aos longos cabelos brancos da figura refletida no espelho oval que distorcia um pouco as imagens, pelo que o rosto da figura exibia um esgar estranho e a túnica azul-claro, de amplas mangas, fazia curvas engraçadas sobre os sapatinhos azuis turquesa.
Contrastando com a alvura do cabelo, uma mão jovem estendeu-se para o sol e brincou com os raios.  Z-3004 sorriu pela primeira vez nesse dia que era a sucessão de muitos outros dias todos iguais, sentou-se numa confortável cadeira ergonómica junto à secretária e de súbito os seus olhos quase brancos de tão transparentes e claros, encheram-se de lágrimas. Já só tinha duas folhas. Duas miseráveis folhas A4 era o que restava dos 3 maços de 100 que lhe tinham mandado. Também, das duas esferográficas que estavam perfeitamente perfiladas ao lado das folhas, uma já não escrevia e a outra estava no fim. Adorava escrever. Conectava-a com as memórias, apesar de nas últimas 5 ou 6 folhas apenas tivesse escrito “Fada Azul” e “Maria”, em todos o pedacinhos em branco do papel e depois por cima, até já nada se perceber. Fada Azul! Maria!
Prisão estranha esta, pensou Z-3004, olhando o pulso com a tatuagem com o seu nome. Como teria ido parar a tatuagem aquele sítio? Não se lembrava. As memórias iam e vinham. Era melhor até não se lembrar, achava ela. As memórias provocavam-lhe dores inexplicáveis no peito. Depois, não sabia se eram mesmo memórias ou sonhos, porque passava grande parte do tempo a dormir, há já muito tempo.

Quando sonhava, havia imagens que lhe provocavam sensações. Saudades, tantas saudades. Crianças! Há tanto tempo que não via uma criança! Ouvia-as rir e chorar, enquanto dormia. Sentia o calor dos seus abraços, o cheiro a cão molhado dos seus cabelos. Quando sonhava, tudo tinha cores vibrantes de verdes e amarelos, como os campos que conseguia ver através da janela. Quando sonhava, era como se estivesse mesmo a viver aqueles momentos, como num filme em que era a principal personagem. Também sonhava com rostos de velhos, que lhe sorriam e a amparavam. Sonhava com animais que agora apenas via ao longe, de vez em quando, pela janela.
Olhou para dois livros em cima da cama incrustada na parede branca, de coberta alva, bem esticada.
Pinochio. Adorava o Pinóquio. Um tosco menino de pau que tinha conseguido a alma por bom comportamento, através da Fada Azul. Bondosa fada Azul! Agora era a sua melhor amiga e aliada. Passara tanto tempo a imaginá-la e a falar-lhe, que ela se tinha materializado e vinha cada vez que a invocava, para lhe ajeitar o travesseiro ou para lhe dar um beijo na testa. O outro livro era um álbum de fotografias. Estava cheio de anotações e tinha a capa de couro tão velhinha! Esse era o seu inimigo dentro dessa cela. Porquê? Encolheu os ombros. Não se lembrava.
Lembrava-se que o espelho e esse tal livro faziam a dupla dos seus inimigos mortais. Detestava o que via refletido e detestava as notas a lápis nas margens do livro. Nomes e datas de há mais de 100 anos. Sonhava com as personagens das fotos, algumas chamavam-lhe mãe, outras avó, outras neta…Confundiam-na e perturbavam-na.
Olhou para a janela para seguir o movimento do sol. A janela, era o seu grito de liberdade. Daí via uma boa fatia do mundo exterior. Uma fatia ora verde ora ocre, salpicada de árvores e animais, com estradas onde ninguém circulava e caminhos de terra onde via brincar cabras e burros. Passava muito tempo a olhar para fora, ninguém a proibia. Raramente a deixavam sair da cela, mas não lhe negavam o tempo à janela, e aí respirava outro ar que não fosse branco. Queriam-na confortável, já se apercebera disso. Apenas não lhe davam papel e livros à vontade. Tinha que  escrever dentro da própria cabeça, com o reduzido material das suas memórias.

Uma pancada na porta. Uma, duas, três voltas à chave.
Uma pessoa de fato espacial branco, com uma cruz azul  na testa, entrou na cela e estendeu-lhe a medicação. Tomou-a como sempre, à mesma hora, o mesmo comprimido minúsculo, estendeu como de costume o braço para a colheita de sangue. Sem uma palavra, a pessoa do fato espacial saiu, voltou com um aparelho estranho, com um capacete cheio de fios conectados . Pôs-lhe o capacete, ajudou-a a deitar e saiu fechando a porta. Uma, duas, três voltas na chave. Um suspiro. Abandonou-se ao sono, com o calor do sol a bater-lhe nos pés.
Sonhou com uma festa. Toda a família reunida. Depois uma sirene.  Um pesadelo. Os carros na rua, com altifalantes. “Não saiam de casa, não saiam de casa”. Depois corridas desenfreadas, pessoas escondidas, crianças no seu colo, cães de focinho mimoso. Uma confusão. De repente, cheiro a hortelã. Cheiro a rosas, cheiro a relva cortada. Coisas que o subconsciente tinha guardado e libertava sob o efeito do comprimido minúsculo que lhe davam. Continuava a trote no sonho.
O capacete ia registando a actividade neural, medindo a temperatura, registando tudo no enorme cérebro comum, no centro vital do Centro de Estudos Científicos.
Tinha havido uma doença infame pelo mundo fora. Milhões de mortos. O Estado tinha o dever de proteger as crianças que foram levadas para “lugar seguro”.
Durante esse período, os velhos foram isolados e os menos velhos obrigados a tratar deles. Caixões e mais caixões. Flores pelos campos, Cheiro a álcool, cheiro a vinagre, cheiro a podre. Cheiro a rosas. Cheiro a relva cortada.
A esperança. Suspiro. Sorriso. Cheiro a relva cortada…
Começaram os testes das vacinas nos mais velhos por serem descartáveis, depois os presos… e morreram todos de complicações. Mais uma leva de vacinas e alguns curaram-se, mas ficaram loucos e foram abatidos. Mais uma leva, quando já não havia velhos para cuidar. Nessa altura Z-3004 teria 70 anos, Em 2025. Ofereceu-se como cobaia e recebeu uma primeira dose. Por engano, recebeu uma segunda e uma terceira.

Foi quando o Mundo, pouco a pouco, estava a voltar ao normal. Dizia-se que tinham resolvido o problema da pandemia e reforçado os sistemas imunitários enriquecendo a substância da vacina com um tipo especial de radiação.
Foi quando os pais se quiseram voltar a  reunir com as crianças e elas não quiseram porque se sentiram abandonadas, quando as mães espantadas gritavam de dor percebendo que os seus filhos tinham sido injectados com implantes cerebrais que os obrigavam a obedecer à nova mãe, a Pátria. Tinham sido geneticamente modificados para trabalhar com mais resistência por mais tempo.
Foi quando o Mundo inteiro enlouqueceu de vez, começaram os motins, as guerrilhas, as patrulhas do exército pelas ruas, e os aviões a pulverizar o ar com estabilizadores das emoções sobre as cidades. Então, tudo acalmou.

Foi por essa altura que o degelo levantou os mares e o frio se instalou  por toda a Terra que ela se olhou ao espelho e viu que tinha rejuvenescido. Muito. Já não tinha rugas nem dores, levantava 30 kg com uma mão, e fazia o trabalho de 10 pessoas. Sentia-se bem e prosseguiu, como tinha sido ensinada antes da grande Pandemia. Procurou os seus por toda a parte em todos os sítios possíveis. Procurou a casa que habitara e estava ocupada por gente que não conhecia.
Pouco tempo durou a ser convocada para comparecer no Centro de Estudos Científicos. Foi na expectativa de notícias. Nessa altura chamava-se Maria, tinha uma memória incrível e cognição acima do normal. Diziam que tinha superpoderes. Ela ria-se. Sabia bem que tinha sido por causa das doses triplas de vacinas….
Depois tudo ficou mais turvo. Lembrava-se de a mandarem entrar  numa sala de exames. Sentiu uma agulha num braço, um capacete estranho na cabeça…. E  uma cela. Muito branco. Pediu livros e o álbum de fotografias que trazia ao tiracolo, junto ao peito. Trouxeram-lhe o Pinóquio e outro livro qualquer que atirou janela fora. Estipularam 360 folhas e duas canetas, por ano, para poder escrever. Pediu um espelho. Gostava de se observar, notar as diferenças, apesar de odiar ver-se assim. Ninguém lhe podia tocar, estava radioativa. Tinha-se tornado albina. A cor dos olhos diluída em muitas águas, quase transparente. O cabelo branco…
Passou dias, meses e anos a escrever mensagens para os filhos e para os netos. Amarrotava as folhas e atirava-as pela janela. Às vezes, via rolar os papéis com o vento e tinha esperança que chegassem ao seu destino. Ai o vazio, a incerteza, os seus meninos…Uma palavra só que fosse, um beijo de longe, um abraço simulado. Começou a ter insónias e ver a noite pela janela. Chegava a ver a lua. Cheirava a noite como um bálsamo. Sabia o Pinóquio de cor, invocava a Fada Azul.  
— Dá-me outra alma, dá-me outra vida, deixa-me voar. Dá-me asas. Dá-me asas, dá-me asas.
A boa fada vinha, afagando e consolando, protegendo os medos, prometendo asas e Liberdade.
Nos sonhos das memórias, era feliz e fazia feliz o Grande Cérebro, sempre cheio de algoritmos, estatísticas e números. Quando o seu capacete era conectado, todo o Centro de Estudos Científicos se enchia de sons de valsas, cheiros, cores. O Grande Cérebro precisava de Z-3004 para a sua inteligência alternativa se conectar às lembranças dos seres antigos e aprender as emoções que tinham sido suprimidas, por serem um perigo para o Estado Global.
Z-3004 continuava a dormir, a sonhar com brisas, pássaros, abraços, tecidos de veludo, sabores de laranjas...

Foi quando a Fada Azul, vestida com um “fato espacial” azul claro, a foi buscar numa maca equipada com tiras de metal, a sujeitou docemente e levou por um labirinto de corredores brancos e silenciosos, sorriu e a injectou com um líquido vermelho que viu circular por baixo da sua pele quase transparente.
— Fada Azul, dá-me asas.
Sentiu calor, sentiu-se levantar voo. De súbito, todos os pequeninos dos seus sonhos correram ao seu encontro, com braçadas de flores silvestres, os rostos dos velhos lhe sorriram, sentiu os cheiros, os sabores antigos dos seus beijos. Abriu os olhos, feliz e murmurou algo incompreensível.
No relatório da sua morte, constou:

Z-3004
Individuo do sexo feminino, designado Maria, sobrevivente da pandemia de 2020,
Morte decretada pelo Estado Global por constituir perigo para o Grande     Cérebro.
Novembro de 2170

No campo, sob a janela da sua cela no Centro de Estudos Científicos, uma cabra roía uma folha de papel branco, com nomes escritos à mão e um coração desenhado, indiferente à chuva que de repente começou a cair.

Maria Vitória Duarte












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