domingo, março 29, 2020

VOANDO COM AS PALAVRAS

Mais um conto que nasceu nas nossas oficinas de escrita. Rasgando o espartilho da proposta, Clara Pedrogão voou para muito longe. Foi até à sua infancia africana, subiu para o alto de árvores protectoras, e, para se defender, entrou numa prisão perfumada e secreta que a protegeu... mas aprisionou durante muito tempo. Até ao di em que... Este, é um texto muito belo que fala de redenção.  Manuela Gonzaga



VOANDO COM AS PALAVRAS

Sergey Nivens - Russian Federation


Quando nasci, num dia quente de Maio, num local longínquo de Africa, completamente isolado, com uma única casa de cimento que era a nossa, sem hospital nem médico, não chorei de imediato: trazia o cordão umbilical à volta do pescoço. Foi com a maior dificuldade que o meu pai, fazendo as vezes de parteiro, apenas com uma assistente “as chamadas curiosas”, me trouxe à vida. Esta e outras histórias, contava-as o meu pai, olhando para mim com ar enternecido. 

E dizia: «és uma princesa! Só poderás ter uma vida linda!»

E eu cresci com o estigma da intrusa, da menina que não respirava e que o pai ressuscitou e obrigou a viver. E com responsabilidades acrescidas de viver, respirar, ser 'princesa', ter uma vida linda e ser igual aos outros. Mas nada foi fácil. Deambulei sempre entre luzes e sombras, num mar de inquietações e perguntas sem resposta. Nunca me senti pertencer a lugar nenhum e, sem falsas modéstias, sempre achei não ser boa em nada. Todos perguntavam à minha mãe: «Maria, esta é diferente das outras, não é?» E era de facto. Não alinhava nas brincadeiras dos meus nove irmãos, que me batiam para eu obedecer às suas ordens e fazer parte do clã, sujeitando-me às suas maldades e enxovalhos. Chamavam-me nomes e faziam-me partidas inconcebíveis. Eu tentava amá-los e brincar com eles, mas não conseguia ser genuinamente fútil, ao ponto de criar pactos e alinhar nos disparates que faziam. Pouco a pouco afastaram-me e fui percebendo que jamais quebraria a barreira criada entre mim e os outros, e, por mais que fizesse, nunca me aceitariam. 

Aos pouco fui-me isolando. E, quase sem me dar conta, um dia dei por mim completamente banida. A partir de então, entrei num mundo de clausura, repleto de sonhos e de travessias do irreal, onde eu própria liderava o grupo de amigos existentes apenas na minha imaginação. Finalmente em paz, acolhi-me numa prisão de onde não queria escapar.

Nessa altura, a minha cela era exígua, escura e sem janela. Era o fundo de um guarda-vestidos, onde me escondia horas sem conta, com os vestidos de tafetá da minha mãe a roçarem-me a cara, impregnando-me do seu doce perfume, de tal forma, que ainda hoje esse aroma serve-me de bálsamo em dias mais vulneráveis. Ali dentro, ouvia o sino a tocar, chamada habitual para as refeições, mas não me mexia. O meu esconderijo era tão secreto (e foi durante muitos anos) que passavam por mim chamando-me, mas nunca me encontraram. Quando por fim me apresentava na sala de refeições, acabava por jantar sozinha, sem ninguém sonhar que esse ‘castigo’ era um presente dos deuses. A seguir, encaminhavam-me logo para o quarto, onde me deixavam, de luz apagada. No dia seguinte tinha de escrever cem vezes:

Eu não posso esconder-me de ninguém.

E assim aprisionada, cresci amarrada ao estigma da menina diferente que nasceu morta. Até ao dia, muitos anos depois, em que acordei estremunhada e muito confusa num quarto todo branco, cheio de luz, despojado de móveis, que não me era nada familiar. Levantei-me num salto, respiração ofegante, e reparei que usava um fato de algodão cinzento, confortável, que não me pertencia. Estaria num hospital? Mas se não estava doente! Perturbada, olhei em redor e vi uma pequena secretária e uma cadeira mal amanhada. Sobre a secretária, papel e caneta. Havia também uma janela que, naqueles primeiros instantes nem percebi para onde dava. Bastava-me que fosse uma janela. Qualquer uma, pequena ou grande provoca em mim uma sensação de liberdade que sugeria Viagem. Além do papel e caneta que me davam a possibilidade de voar. Mas, naquele momento, a única coisa que me importava era falar com alguém e a minha ansiedade tornou-se quase insuportável. Levantava-me e sentava-me, chorava e fazia um esforço enorme para me controlar.

Entretanto, no corredor, ouviam-se muitas vozes mas não diziam nada que eu conseguisse perceber, dada a alucinação em que eu me encontrava. Sentia-me a levitar, a sair fora do meu corpo e acho até que tive febre. Então resolvi chamar alguém:
                Por favor, está aí alguém? Alguém que me ajude, por favor
— O que quer a senhorita? — respondeu-me uma voz de mulher, que continuou: — Hoje deixámo-la dormir, mas amanhã segue as regras da casa.
Então, vi-a. Era uma grotesca, mascarada de cinzento, com um enorme molho de chaves na mão.
— Diga-me por favor, onde estou, porque estou aqui?
 Está na prisão. Está numa cela! Ah, querem ver que se esqueceu…— a mulher riu-se baixinho
— Mas porquê? Como vim cá parar?
— A senhora lá saberá porquê. Eu só estou aqui para cumprir ordens. Deixo-lhe os horários dos banhos, das refeições dos recreios, e da biblioteca. Amanhã às oito começa a sua rotina.
E, saindo, fechou a porta com um grande estrondo.
Fiquei em estado de choque, tentando recordar como chegara ali, mas era tudo muito confuso e não havia ninguém com quem eu pudesse desabafar.

               Foi quando vi o espelho. Um espelho antigo, sem moldura, preso por uma corrente cromada, pendurado numa parede. A visão desse espelho abriu uma clareira na minha memória. Lentamente lembrei-me que me acostumara a ver espelhos assim nas casas de banho dos cafés manhosos, onde parava em viagem. Sorri. Fugazmente. E como relâmpagos, começaram a surgir-me pedaços de histórias, à cabeça. Viagens? Cafezinhos rascas? Mas quais viagens? Concentrando-me no eco de outras vozes de criança, gargalhadas entrecortadas pelo vento, e de um choro longínquo que parecia ser meu, deixei de ouvir as vozes do corredor. Imagens a preto e branco, passavam rapidamente. Vi – me, sentada numa prisão escura, no fundo de um guarda-fatos que cheirava ao perfume da minha mãe, cujos vestidos roçavam a minha cara.

E lembrei-me de atrocidades que os meus irmãos mais velhos me faziam e da ausência de autoridade dos meus pais, que achavam que era tudo uma brincadeira de crianças. Lembrei-me de fugir deles, instalando-me nos ramos das árvores mais altas do jardim, caladinha, noite adentro, para que não me metessem a cabeça na sanita puxando o autoclismo de seguida ou para não correrem atrás de mim, ameaçando-me de me tirarem os olhos com bambus. Das caminhadas até ao poço, onde ficava horas a falar sozinha, e com os duendes das florestas, poupando-me às inúmeras maldades a que me sujeitavam.Lembrei-me da minha enorme solidão, escondida de todos, a inventar amigas, cidades e caminhos no céu, as minhas secretas viagens que me permitiram ultrapassar pontes mágicas e tocar as estrelas mais brilhantes. Quantas vezes chorei, sentada nos braços da lua, com um anjo a enxugar-me as lagrimas. Inventei-me durante uma vida inteira deixando os meus sonhos suspensos nas asas dos pássaros, os mesmo que me ensinavam o caminho de volta, quando me perdia.

Não esqueço a amargura permanente de negar o amor, temendo a perda, e de, ao mesmo tempo, querer ser amada até ao sufoco. Incongruências para muitos, mas para mim absolutamente lógicas. Não amando, não me magoava, nem os outros me feriam.

Olhei-me ao espelho e quase não me reconheci. A idade deixa marcas e eu, com o dedo, segui as estradas abertas pelas amarguras, mas rapidamente mudei para os rios sinuosos de esperança. Ainda estava uma mulher interessante, agora com o cabelo embranquecido que gostei de ver. Fui-me revisitando e quando cheguei aos olhos confrontei-me com a outra parte de mim e pela primeira vez na vida senti-me inteira e liberta. E perdoei. De repente, um raio de sol entrou pela janela, reflectiu-se no espelho e acordou-me.

 A prisão iluminada ou escura, era o meu estigma de nascença. Morava em mim. Um baloiço entre luz e sombra. E não há presente nem futuro possível, quando caminhamos de mãos dadas com a sombra de um passado tortuoso. A escolha tem de ser de luz, se queremos viver. E luz pressupõe-se liberdade plena. Viver na luz, é viver na paz, na verdade, na justiça e no amor, com todas as possibilidades de escolhas. Pela janela entrava o sol a jorros, e de lá avistei um pátio enorme, com várias mulheres em grupos passeando ao sol. Porque estariam ali? Talvez tivessem assassinado alguém, roubado, ou tão-somente se tivessem matado a si próprias, como eu. Porque a escolha é sempre nossa. Umas continuarão presas, outras não. Tudo depende do crime, da intenção, da escolha, do comportamento. E da força. 

Ergui um pouco a cabeça e deparei-me com uma paisagem verde, maravilhosa, um céu azul cheio de promessas e aquela luz branca que abraçou de imediato a minha desventura. As grades fui eu que as inventei ao longo da minha vida, e a cela era o guarda-fatos onde me encarcerei para não me destruírem. As vozes calaram-se. O sol despedia-se. As mulheres recolheram. Fazia-se tarde, mas ainda era tempo de agarrar os sonhos suspensos. 

VIAJEI PARA LÁ DA JANELA, VOANDO COM AS PALAVRAS

Os pássaros esperam por mim.

Clara Pedrogão
Grupo B Oficinas da Escrita
27 Março 2020

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