Mais um conto que nasceu nas nossas oficinas de escrita. Rasgando o espartilho da proposta, Clara Pedrogão voou para muito longe. Foi até à sua infancia africana, subiu para o alto de árvores protectoras, e, para se defender, entrou numa prisão perfumada e secreta que a protegeu... mas aprisionou durante muito tempo. Até ao di em que... Este, é um texto muito belo que fala de redenção. Manuela Gonzaga
VOANDO COM AS PALAVRAS
Sergey Nivens - Russian Federation |
Quando nasci, num dia quente de
Maio, num local longínquo de Africa, completamente isolado, com uma única casa
de cimento que era a nossa, sem hospital nem médico, não chorei de imediato:
trazia o cordão umbilical à volta do pescoço. Foi com a maior dificuldade que o
meu pai, fazendo as vezes de parteiro, apenas com uma assistente “as chamadas
curiosas”, me trouxe à vida. Esta e outras histórias, contava-as o meu pai,
olhando para mim com ar enternecido.
E dizia: «és uma princesa! Só
poderás ter uma vida linda!»
E eu cresci com o estigma da
intrusa, da menina que não respirava e que o pai ressuscitou e obrigou a viver.
E com responsabilidades acrescidas de viver, respirar, ser 'princesa',
ter uma vida linda e ser igual aos outros. Mas nada foi fácil.
Deambulei sempre entre luzes e sombras, num mar de inquietações e perguntas sem
resposta. Nunca me senti pertencer a lugar nenhum e, sem falsas modéstias,
sempre achei não ser boa em nada. Todos perguntavam à minha mãe: «Maria, esta é
diferente das outras, não é?» E era de facto. Não alinhava nas brincadeiras dos meus nove irmãos, que me batiam para eu obedecer às
suas ordens e fazer parte do clã, sujeitando-me às suas maldades e enxovalhos. Chamavam-me
nomes e faziam-me partidas inconcebíveis. Eu tentava amá-los e brincar com
eles, mas não conseguia ser genuinamente fútil,
ao ponto de criar pactos e alinhar nos disparates que faziam. Pouco a pouco
afastaram-me e fui percebendo que jamais quebraria a barreira criada entre mim
e os outros, e, por mais que fizesse, nunca me aceitariam.
Aos pouco fui-me
isolando. E, quase sem me dar conta, um dia dei por mim completamente banida. A
partir de então, entrei num mundo de clausura, repleto de sonhos e de
travessias do irreal, onde eu própria liderava o grupo de amigos existentes
apenas na minha imaginação. Finalmente em paz, acolhi-me numa prisão de onde
não queria escapar.
Nessa altura, a minha cela era
exígua, escura e sem janela. Era o fundo de um guarda-vestidos, onde me
escondia horas sem conta, com os vestidos de tafetá da minha mãe a roçarem-me a
cara, impregnando-me do seu doce perfume, de tal forma, que ainda hoje esse
aroma serve-me de bálsamo em dias mais vulneráveis. Ali dentro, ouvia o sino a
tocar, chamada habitual para as refeições, mas não me mexia. O meu esconderijo
era tão secreto (e foi durante muitos anos) que passavam por mim chamando-me, mas nunca me encontraram. Quando por fim me apresentava na sala de refeições, acabava por jantar sozinha, sem ninguém sonhar que esse ‘castigo’ era um presente dos
deuses. A seguir, encaminhavam-me logo para o quarto, onde me deixavam,
de luz apagada. No dia seguinte tinha de escrever cem vezes:
Eu não posso esconder-me de
ninguém.
E assim aprisionada, cresci amarrada ao estigma da menina diferente que nasceu morta. Até ao dia, muitos anos depois, em que
acordei estremunhada e muito confusa num quarto todo branco, cheio de luz,
despojado de móveis, que não me era nada familiar. Levantei-me num salto,
respiração ofegante, e reparei que usava um fato de algodão cinzento,
confortável, que não me pertencia. Estaria num hospital? Mas se não estava
doente! Perturbada, olhei em redor e vi uma pequena secretária e uma cadeira
mal amanhada. Sobre a secretária, papel e caneta. Havia também uma janela que,
naqueles primeiros instantes nem percebi para onde dava. Bastava-me que fosse
uma janela. Qualquer uma, pequena ou grande provoca em mim uma sensação de
liberdade que sugeria Viagem. Além do papel e caneta que me davam a
possibilidade de voar. Mas, naquele momento, a única coisa que me importava era
falar com alguém e a minha ansiedade tornou-se quase insuportável. Levantava-me
e sentava-me, chorava e fazia um esforço enorme para me controlar.
Entretanto, no corredor, ouviam-se
muitas vozes mas não diziam nada que eu conseguisse perceber, dada a
alucinação em que eu me encontrava. Sentia-me a levitar, a sair fora do meu
corpo e acho até que tive febre. Então resolvi chamar alguém:
— O que quer a senhorita? —
respondeu-me uma voz de mulher, que continuou: — Hoje deixámo-la dormir, mas
amanhã segue as regras da casa.
Então, vi-a. Era uma grotesca,
mascarada de cinzento, com um enorme molho de chaves na mão.
— Diga-me por favor, onde estou,
porque estou aqui?
— Está na prisão. Está numa cela! Ah, querem ver
que se esqueceu…— a mulher riu-se baixinho
— Mas porquê? Como vim cá parar?
— A senhora lá saberá porquê. Eu só
estou aqui para cumprir ordens. Deixo-lhe os horários dos banhos, das refeições
dos recreios, e da biblioteca. Amanhã às oito começa a sua rotina.
E, saindo, fechou a porta com um
grande estrondo.
Fiquei em estado de choque,
tentando recordar como chegara ali, mas era tudo muito confuso e não havia
ninguém com quem eu pudesse desabafar.
Foi quando vi o espelho. Um
espelho antigo, sem moldura, preso por uma corrente cromada, pendurado numa
parede. A visão desse espelho abriu uma clareira na minha memória. Lentamente
lembrei-me que me acostumara a ver espelhos assim nas casas de banho dos cafés manhosos,
onde parava em viagem. Sorri. Fugazmente. E como relâmpagos, começaram a surgir-me
pedaços de histórias, à cabeça. Viagens? Cafezinhos rascas? Mas quais viagens? Concentrando-me
no eco de outras vozes de criança, gargalhadas entrecortadas pelo vento, e de
um choro longínquo que parecia ser meu, deixei de ouvir as vozes do corredor. Imagens
a preto e branco, passavam rapidamente. Vi – me, sentada numa prisão escura, no
fundo de um guarda-fatos que cheirava ao perfume da minha mãe, cujos vestidos
roçavam a minha cara.
E lembrei-me de atrocidades que
os meus irmãos mais velhos me faziam e da ausência de autoridade dos meus pais,
que achavam que era tudo uma brincadeira de crianças. Lembrei-me de fugir deles,
instalando-me nos ramos das árvores mais altas do jardim, caladinha, noite
adentro, para que não me metessem a cabeça na sanita puxando o autoclismo de
seguida ou para não correrem atrás de mim, ameaçando-me de me tirarem os olhos com
bambus. Das caminhadas até ao poço, onde ficava horas a falar sozinha, e com os
duendes das florestas, poupando-me às inúmeras maldades a que me sujeitavam.Lembrei-me da minha enorme
solidão, escondida de todos, a inventar amigas, cidades e caminhos no céu, as
minhas secretas viagens que me permitiram ultrapassar pontes mágicas e tocar as
estrelas mais brilhantes. Quantas vezes chorei, sentada nos braços da lua, com
um anjo a enxugar-me as lagrimas. Inventei-me durante uma vida inteira deixando
os meus sonhos suspensos nas asas dos pássaros, os mesmo que me ensinavam o
caminho de volta, quando me perdia.
Não esqueço a amargura permanente
de negar o amor, temendo a perda, e de, ao mesmo tempo, querer ser amada até ao
sufoco. Incongruências para muitos, mas para mim absolutamente lógicas. Não
amando, não me magoava, nem os outros me feriam.
Olhei-me ao espelho e quase não
me reconheci. A idade deixa marcas e eu, com o dedo, segui as estradas abertas
pelas amarguras, mas rapidamente mudei para os rios sinuosos de esperança.
Ainda estava uma mulher interessante, agora com o cabelo embranquecido que
gostei de ver. Fui-me revisitando e quando cheguei aos olhos confrontei-me com
a outra parte de mim e pela primeira vez na vida senti-me inteira e liberta. E perdoei.
De repente, um raio de sol entrou pela janela, reflectiu-se no espelho e
acordou-me.
A prisão iluminada ou escura, era o meu
estigma de nascença. Morava em mim. Um baloiço entre luz e sombra. E não há
presente nem futuro possível, quando caminhamos de mãos dadas com a sombra de
um passado tortuoso. A escolha tem de ser de luz, se queremos viver. E luz
pressupõe-se liberdade plena. Viver na luz, é viver na paz, na verdade, na
justiça e no amor, com todas as possibilidades de escolhas. Pela janela entrava
o sol a jorros, e de lá avistei um pátio enorme, com várias mulheres em grupos
passeando ao sol. Porque estariam ali? Talvez tivessem assassinado alguém,
roubado, ou tão-somente se tivessem matado a si próprias, como eu. Porque a escolha
é sempre nossa. Umas continuarão presas, outras não. Tudo depende do crime, da
intenção, da escolha, do comportamento. E da força.
Ergui um pouco a cabeça e
deparei-me com uma paisagem verde, maravilhosa, um céu azul cheio de promessas
e aquela luz branca que abraçou de imediato a minha desventura. As grades fui
eu que as inventei ao longo da minha vida, e a cela era o guarda-fatos onde me
encarcerei para não me destruírem. As vozes calaram-se. O sol
despedia-se. As mulheres recolheram. Fazia-se tarde, mas ainda era tempo de
agarrar os sonhos suspensos.
VIAJEI PARA LÁ DA JANELA, VOANDO
COM AS PALAVRAS
Os pássaros esperam por mim.
Clara Pedrogão
Grupo B Oficinas da Escrita
27 Março 2020
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