Com uma grande economia de palavras, Luis Duque Possante desenha em pinceladas enérgicas o ambiente opressivo de uma prisão, onde observa o dentro e o fora de grades, medita, joga xadrez quando tem parceiros, recordando estilhaços de um passado fugidio, até se encontrar consigo mesmo num desfecho que é quase uma surpresa anunciada. Parabéns por mais este contributo das minhas Oficinas de Escrita. Manuela Gonzaga
A Utopia da Realidade
O
espelho, quebrado e suspenso numa destas quatro paredes que me cercam,
devolve-me uma imagem que não conheço e que me não é familiar. Irrito-me a
observá-la e regresso à janela de grades imaginárias, mas que não ouso
atravessar e sondo o horizonte até onde a minha vista alcança. Fecho os olhos
atento ao mundo que quero ver, idealizado pelos meus sentidos e, num horizonte
não muito longínquo, o campo que se espraia está esgotado de árvores frondosas
talhadas de várias formas e efeitos e de homens e mulheres, que não quero conhecer,
mas que me acompanham nestes dias imemoráveis, únicos, incompreensíveis. Não
sei o que faço aqui, nem porque aqui estou. Muito do que vejo é-me
impenetrável, disperso e obriga-me a cerrar os olhos, mas cansam-me as imagens
que se perfilam na minha imaginação. Regresso à cama, exígua, onde me deito, de
pernas cruzadas e braços sob a nuca, cravando o olhar no tecto cinzento, baço,
sujo e húmido. Não quero voltar a murar os olhos para não viajar para além
deste cárcere, procurando as razões que aqui me prendem… enfraqueci-me de as
nãos encontrar, e sem obter uma resposta plausível cansei-me de contar os dias
e já me perdi nessa resenha.
Espreitei
desinteressadamente os dois livros que tenho na pequena mesa-de-cabeceira: O
que escrevi – Até Que o Teu Sorriso se Apague, que já reli até o saber
de cor e O Perfume, História de Um Assassino, escrito por Patrick
Süskind que me roubou a ideia original e, por isso, matei-o… Será por isso que
estou aqui??? Será por isto que aquele maldito espelho não me devolve uma
imagem coerente???
Reescrevo
vezes sem conta o que encontro nas minhas reminiscências. As folhas de papel
estão-se-me a acabar e nada úbere encontro nestas linhas. Sobressaem nomes
cansadamente repetidos, que não relaciono com quem me cruzo nos momentos em que
me exercito no exterior destas quatro paredes. Um homem e uma mulher que povoam
os meus frequentes e repisados sonhos e que não percebo o que são ou o que
fazem neste lugar. E é deles que recebo algum apoio moral e por vezes físico e
são eles, com quem não me identifico, que me amparam e socorrem perante as
investidas dum tal Manel e Fred, dois brutamontes que, também não sei porquê,
me injuriam, perseguem e maltratam, chegando ao ponto de tentarem sodomizar-me.
E
o espelho, quebrado, reenvia-me imagens inconstantes: ora sou mulher jovem,
bela, formosa e sensual, abafada de vetustas e coloridas roupagens; ora sou um
velho quebrado, usado até à exaustão pela carga dos dias amargurados,
maltrapilho e enrugado; ora sou uma simbiose entre um animal imaginário e um
homem incompleto, que se me afigura como resultado desta permanência inusitada
neste estado de ansiedade, frustração e ambiguidade.
Desço
até ao salão de convívio disposto a jogar um pouco de xadrez e não encontro
quem se disponha a competir comigo. Sento-me numa mesa. Preparo-me para focar a
minha mente num pensamento que se me aflora recorrente e insistentemente
quando, num impulso, o trangalhadanças do Fred se senta à minha frente, com o
seu inseparável Manel, que apelidam de tomba-lobos — não consegui perceber
porquê, se o homem é gordíssimo, pequenino e com ar aprumado, apesar do seu
aspecto rude. Desafiam-me para uma partida exigindo jogar com as peças
brancas!!! Preparo-me para ser, uma vez mais, humilhado e intimidado. Rodo o
tabuleiro e aguardo que iniciem a primeira jogada. Os meus joelhos tremem, a
minha fronte goteja e a quietude do momento é bruscamente interrompida pelo
forte e assustador troar do meu peito. Sinto-me desfalecer, mas, do nada,
surgem os meus dois anónimos cúmplices e, de repente, a relação de forças
altera-se e passamos a ser três indulgentes em oposição àqueles dois meliantes.
A
tensão dissipou-se e, num ápice, o meu corpo viaja até à despótica cela em que
me encerram.
O
espelho, quebrado, envia-me uma estranha mensagem numa cifra que me apresso a
descodificar. Restam-me duas folhas e o último lápis está ao nível da minha
falange. Procuro sintetizar o que necessito escrever… vem-me à memória, escassa
e difusa, o contexto, vago, desta minha captura…Não sou eu quem está aqui … O
espelho, quebrado, só existe na minha imaginação.
Faro, primavera 2020
Luís Duque Possante
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