sábado, março 28, 2020

LIBERDADE INCONDICIONAL

Já sentia a vossa falta! Os tempos em que vivemos, e a história que uma grande amiga minha partilhou comigo, serviram-me de mote para o lançamento de uma nova Oficina de Escrita. O tema, Liberdade Incondicional, vem de caminhos que trilhei há uns anos, quando fui pré-candidata pelo PAN às eleições presidenciais (2015), O meu manifesto eleitoral teve essa frase por titulo. Agora, tratou-se de outra partilha. E abri inscrições para uma oficina que já deu belíssimos resultados que partilharei aqui. Este, o primeiro, é  meu e ilustra, de algum modo, o ponto de partida. Somos sempre livres, quando somos donos da nossa imaginação criadora. 





Um admirável mundo novo só para nós


Naquele tempo, fechavam-nos num grande quarto vazio, com janelas inatingíveis, e deixavam-nos ali ficar até as visitas se irem embora. Ora acontecia que a casa, um palacete do século XVIII, recebia muitas visitas. E acontecia também que os adultos eram tão altivos e distantes, que de tão pequenos que eles eram, praticamente só os viam do joelho baixo. A começar pelo grande pai e pela linda mãe que eram, seguramente, muito apaixonados porque a relação deles já produzira 13 filhos, quase em escadinha, entre rapazes e raparigas. Eles os quatro, eram os mais novos. Tinham entre os sete e os dois anos. Todos leão de signo.

Quando, na prisão onde os encerravam, prudentemente vazia de tudo o que lhes pudesse causar dano, brinquedos, livros de colorir e lápis de cor inclusive, um deles, ou vários, precisavam de ir à casa de banho, atiravam-se todos juntos aos pontapés à porta de madeira maciça e gritavam sem parar. Ao fim de algum tempo, um dos irmãos mais velhos, ou uma das criadas, era assim que se chamavam, vinha ver o que se passava com os ‘fedelhos’ e tratava do assunto, levando-os à casa de banho e trazendo-os, sem contemplações, de volta ao isolamento. Como todos se esqueciam deles, às vezes, aquelas crianças tinham fome. Apartadas por completo do resto da casa, que, com as constantes visitas, estava sempre numa azáfama festiva, aspiravam gulosos e esfaimados o cheiro dos bolos, e ouviam o tilintar das pratas e dos cristais nas bandejas que as criadas levavam de um lado para o outro. Então, rangiam os dentes de fúria, e na sua raiva de leõezinhos enjaulados, começavam a gritar e a ferir ininterruptamente a porta, com pontapés vibrantes desferidos pelas sólidas botas de carneira. Até o bebé de dois anos entrava nesta rebelião. Por fim, um dos mais velhos lá trazia, racionadas, as bolachas maria a que cada um dos ‘fedelhos’ tinha direito. Quando vinha uma das criadas, havia lanche a sério. Mas era raro.

Foi então que ela se lembrou de lhes contar histórias. Ela tinha recursos que ninguém imaginava. Ela sempre conseguiu sair dos espaços onde a aprisionavam, pela porta grande do pensamento livre. Ela voava. E, nessa alturas, voltava a Casa, porque sempre soube que a sua morada não era aqui. Ela está cá de empréstimo, para ajudar. Silenciosamente. Discretamente. Remotamente. Mas sempre tão presente. Então, naquela prisão de crianças, começou a falar aos irmãos de um grande viagem e de um grande projeto, só deles.
«Vamos sair daqui para fora».

E ali estavam aquelas crianças deitadas no chão, de barriga para cima, a olhar para o tecto a quatro metros de altura, todo trabalhado em volutas, cornijas, florões, em gesso pintado, de uma geometria hipnótica e fascinante, por onde ela entrava e de onde partia para o outro lado de um mundo, onde tudo o que se imaginava podia ser realizado. Eles seguiam-na. E todos contribuíram para a construção de um mundo novo onde não havia absolutamente mais ninguém, a não ser eles os quatro. Pai, mãe, irmãos mais velhos, criadas, cozinheira, todas aquelas pessoas que, de modo geral, só viam dos joelhos para baixo, desapareceram de vez, porque, e de comum acordo, as quatro crianças aprisionadas resolveram matá-los, sem contemplações e com assumida satisfação. Mataram-nos até os verem mortos e bem mortos, e, depois, enterraram-nos até os verem bem enterradinhos. Começaram pelo pai e pela mãe. A seguir, pelos irmãos. Depois pelos outros adultos todos que conheciam. Não sobrou ninguém.

O mundo deles, era só deles. Quatro leõezinhos coroados e donos absolutos de um admirável mundo novo. Havia pássaros? Oh, sim. E borboletas, joaninhas, formigas, cães. gatos, vacas, coelhos carneiros. E mar, rios e peixes. Tudo o que lhes viesse à cabeça, e que gostassem de ter por perto. A história, esmaltada de cores vibrantes e figuras animadas, tornou-se de tal forma o seu refúgio encantado, que, agora, quando chegava o momento de os levarem para a prisão das crianças, em vez de serem arrastados, a espernear e aos gritos, iam aos saltos de alegria.

Sem saberem sequer o que isso era, estavam a fazer a catarse de todas as maldades de que sentiam alvos. Deitadas no chão, de barriga para o ar e a olhar para o tecto hipnótico de onde saiam para o novo mundo, as quatro crianças sentiam-se cheias de força. A irmã que os guiava, deixava-os à solta. E estas viagens empoderaram-nos para a vida. Sem mágoas, nem contas para acertar. Nunca ninguém soube do que se passava. Sei eu, agora, e vocês com quem esta narrativa é partilhada. Entretanto, a minha amiga que vive entre mundos, continua a cruzar fronteiras sem dar contas a ninguém, mas anda há anos a ensinar e a ajudar quem precisa, resgatando pessoas e já são tantas mas tantas mas tantas mesmo.


2 comentários:

Luísa Fresta disse...

A imaginação é sempre um território de liberdade e de recomeço. Quem conhece esse país, jamais poderá ser aprisionado.
Brilhante enredo, com o elemento terrífico muito presente.
Muito obrigada pela partilha deste conto arrepiante, de dor e de esperança.

Luísa

Manuela Gonzaga disse...

Grata, Luisa. Subscrevo-te inteiramente. O conto, escrevi-o em vertigem. E sinto que devo voltar a ele. A história continua-se, em espiral de libertação.

Manuela