Já sentia a vossa falta! Os tempos em que vivemos, e a história que uma grande amiga minha partilhou comigo, serviram-me de mote para o lançamento de uma nova Oficina de Escrita. O tema, Liberdade Incondicional, vem de caminhos que trilhei há uns anos, quando fui pré-candidata pelo PAN às eleições presidenciais (2015), O meu manifesto eleitoral teve essa frase por titulo. Agora, tratou-se de outra partilha. E abri inscrições para uma oficina que já deu belíssimos resultados que partilharei aqui. Este, o primeiro, é meu e ilustra, de algum modo, o ponto de partida. Somos sempre livres, quando somos donos da nossa imaginação criadora.
Um admirável mundo novo só para nós
Naquele tempo, fechavam-nos num
grande quarto vazio, com janelas inatingíveis, e deixavam-nos ali ficar até as
visitas se irem embora. Ora acontecia que a casa, um palacete do século XVIII,
recebia muitas visitas. E acontecia também que os adultos eram tão altivos e distantes,
que de tão pequenos que eles eram, praticamente só os viam do joelho baixo. A
começar pelo grande pai e pela linda mãe que eram, seguramente, muito apaixonados
porque a relação deles já produzira 13 filhos, quase em escadinha, entre
rapazes e raparigas. Eles os quatro, eram os mais novos. Tinham entre os sete e
os dois anos. Todos leão de signo.
Quando, na prisão onde os
encerravam, prudentemente vazia de tudo o que lhes pudesse causar dano, brinquedos,
livros de colorir e lápis de cor inclusive, um deles, ou vários, precisavam de
ir à casa de banho, atiravam-se todos juntos aos pontapés à porta de madeira maciça
e gritavam sem parar. Ao fim de algum tempo, um dos irmãos mais velhos, ou uma
das criadas, era assim que se chamavam, vinha ver o que se passava com os
‘fedelhos’ e tratava do assunto, levando-os à casa de banho e trazendo-os, sem
contemplações, de volta ao isolamento. Como todos se esqueciam deles, às vezes,
aquelas crianças tinham fome. Apartadas por completo do resto da casa, que, com
as constantes visitas, estava sempre numa azáfama festiva, aspiravam gulosos e
esfaimados o cheiro dos bolos, e ouviam o tilintar das pratas e dos cristais
nas bandejas que as criadas levavam de um lado para o outro. Então, rangiam os
dentes de fúria, e na sua raiva de leõezinhos enjaulados, começavam a gritar e a
ferir ininterruptamente a porta, com pontapés vibrantes desferidos pelas
sólidas botas de carneira. Até o bebé de dois anos entrava nesta rebelião. Por
fim, um dos mais velhos lá trazia, racionadas, as bolachas maria a que cada um
dos ‘fedelhos’ tinha direito. Quando vinha uma das criadas, havia lanche a
sério. Mas era raro.
Foi então que ela se lembrou de lhes
contar histórias. Ela tinha recursos que ninguém imaginava. Ela sempre
conseguiu sair dos espaços onde a aprisionavam, pela porta grande do pensamento
livre. Ela voava. E, nessa alturas, voltava a Casa, porque sempre soube
que a sua morada não era aqui. Ela está cá de empréstimo, para ajudar.
Silenciosamente. Discretamente. Remotamente. Mas sempre tão presente. Então,
naquela prisão de crianças, começou a falar aos irmãos de um grande viagem e de
um grande projeto, só deles.
«Vamos sair daqui para fora».
E ali estavam aquelas crianças
deitadas no chão, de barriga para cima, a olhar para o tecto a quatro metros de
altura, todo trabalhado em volutas, cornijas, florões, em gesso pintado, de uma
geometria hipnótica e fascinante, por onde ela entrava e de onde partia para o
outro lado de um mundo, onde tudo o que se imaginava podia ser realizado. Eles seguiam-na.
E todos contribuíram para a construção de um mundo novo onde não havia
absolutamente mais ninguém, a não ser eles os quatro. Pai, mãe, irmãos mais
velhos, criadas, cozinheira, todas aquelas pessoas que, de modo geral, só viam dos
joelhos para baixo, desapareceram de vez, porque, e de comum acordo, as quatro
crianças aprisionadas resolveram matá-los, sem contemplações e com assumida
satisfação. Mataram-nos até os verem mortos e bem mortos, e, depois,
enterraram-nos até os verem bem enterradinhos. Começaram pelo pai e pela mãe. A
seguir, pelos irmãos. Depois pelos outros adultos todos que conheciam. Não
sobrou ninguém.
O mundo deles, era só deles.
Quatro leõezinhos coroados e donos absolutos de um admirável mundo novo. Havia
pássaros? Oh, sim. E borboletas, joaninhas, formigas, cães. gatos, vacas,
coelhos carneiros. E mar, rios e peixes. Tudo o que lhes viesse à cabeça, e que
gostassem de ter por perto. A história, esmaltada de cores vibrantes e figuras
animadas, tornou-se de tal forma o seu refúgio encantado, que, agora, quando
chegava o momento de os levarem para a prisão das crianças, em vez de serem arrastados,
a espernear e aos gritos, iam aos saltos de alegria.
Sem saberem sequer o que isso
era, estavam a fazer a catarse de todas as maldades de que sentiam alvos. Deitadas
no chão, de barriga para o ar e a olhar para o tecto hipnótico de onde saiam
para o novo mundo, as quatro crianças sentiam-se cheias de força. A irmã que os
guiava, deixava-os à solta. E estas viagens empoderaram-nos para a vida. Sem
mágoas, nem contas para acertar. Nunca ninguém soube do que se passava. Sei eu,
agora, e vocês com quem esta narrativa é partilhada. Entretanto, a minha amiga
que vive entre mundos, continua a cruzar fronteiras sem dar contas a ninguém, mas
anda há anos a ensinar e a ajudar quem precisa, resgatando pessoas e já são
tantas mas tantas mas tantas mesmo.
2 comentários:
A imaginação é sempre um território de liberdade e de recomeço. Quem conhece esse país, jamais poderá ser aprisionado.
Brilhante enredo, com o elemento terrífico muito presente.
Muito obrigada pela partilha deste conto arrepiante, de dor e de esperança.
Luísa
Grata, Luisa. Subscrevo-te inteiramente. O conto, escrevi-o em vertigem. E sinto que devo voltar a ele. A história continua-se, em espiral de libertação.
Manuela
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