segunda-feira, março 30, 2020

«Sou mais nova que o seu pai seis meses»

Do espartilho do enunciado de um exercício destinado a soltar a imaginação, a escritora Luisa Fresta leva-nos até uma prisão algures em Angola, onde até os cheiros conseguimos apanhar. É uma narrativa perfeita, um conto soberbo, da primeira à ultima palavra. A «apropriação» dos livros, como também foi sugerido, é integral. A Princesa, heroína deste conto, assimilou-os dando-lhes vida própria até ao último alento. Com e como ela,  respiramos  a perplexidade e angústia que assombram os dias de hoje. Que inimigo é esse que nos aprisiona, sem culpa formada? De tão perfeitamente particular, esta narrativa é universal.  Como bónus, a ilustração de Cristina Seixas.
Manuela Gonzaga

«Sou mais nova que o seu pai seis meses»


Ilustração de Cristina Seixas, professora do ensino básico, especificamente feita para este conto


Estou numa cela de doze metros quadrados com paredes sem reboco e tijolos à vista, pintados de cinza. Há duas janelas altas de sessenta por sessenta em vidro liso que dão para uma horta. As grades são em forma de xis. Quando a chuva é oblíqua e grossa faz muito barulho dentro da minha cabeça. Nas paredes leem-se frases em árabe, em francês, cheias de erros ortográficos e também em crioulo de Santiago. Alguns palavrões, duas orações, um desenho erótico feito com batom escuro, uma receita de bola de carne, outras duas de muteta[1] e de saka saka[2], com um número de zap. Em duas frases curtas recomenda-se abstinência total e mais abaixo surge o contato de uma pastora. No teto branco encardido espreitam desoladoras manchas de humidade e algumas bolhas na pintura. Está frio. O chão é do tipo industrial, brilhante e com aspeto lavado enquanto que o lavatório pequeno, o chuveiro e a sanita asseguram a nossa precária higiene. A minha cama resume-se a um colchão fino de espuma, com resguardo, e a um par de lençóis bordados com as iniciais JC. Não terá mais de noventa centímetros de largura. Há dois cobertores cambriquito[3] dobrados em quatro e encafuados numa fronha alva, fazendo as vezes de enchimento de uma espécie de almofada alta.
Tenho uma mesa-de-cabeceira metálica com uma gaveta mínima onde encontro um espelho redondo de aumentar, de base plástica, que permite apoiá-lo numa superfície horizontal, pendurá-lo num gancho ou fixá-lo à parede por uma ventosa. Sobre a mesa estão dois livros: Crónicas, de Lobo Antunes e Bestiário, de Cortázar, para além de uma esferográfica tipo Parker, com as iniciais JC gravadas. Também há uma BIC, de ponta azul. Mais do que gostar, sei que preciso dos meus livros, porque me fortalecem e me apetece tatear as capas frias, porque fico em pânico se não os encontro perto de mim; sorrio ao olhá-los: mas não me consigo lembrar de nenhum pormenor relevante, exceto da Casa Ocupada de Cortázar e do Sou mais novo que o seu pai seis meses, do Lobo Antunes. São contos ou crónicas, ou textos, sei que os li em voz alta a ambos e quando volto a eles, a elas, percebo que conheço as pessoas e os lugares. Que estive lá, vivo lá, ou muito perto.
Gosto da minha saia preta de malha e do camiseiro largo em tecido acetinado verde doirado, de um tom parecido com o das fardas militares. Julgo-me incapaz de escolher outra roupa para me dar a conhecer e descobrir-me também. Reparo com agrado numas sabrinas pretas com um lacinho fino e num colar rente ao pescoço, de pérolas de aquacultura, um pouco amarelecidas. Esta mulher morena com batom bege brilhante e eyeliner preto é ainda jovem e o seu rosto inexpugnável e reservado é-me bastante familiar. Creio que a devo conhecer e que provavelmente nos damos bem.
Mas agora preciso urgentemente de saber de que me acusam. De saber quem sou. Ainda ninguém veio falar comigo. Tenho uma companheira de cela que parece ter perturbações mentais. Quando cheguei (quando seria?) cumprimentou-me distraidamente e pôs-se a limpar freneticamente as paredes e as grades que nos separam do corredor. Depois continuou a desinfeção com um lenço velho embebido em não sei que substância de cheiro ativo que guarda num frasco sem rótulo, friccionando cada centímetro quadrado do estrado das camas, do vidro da janela, ao qual chegou empoleirada numa das mesas-de-cabeira que foram, por último, esfregadas também com muito vigor.
Instou-me rudemente a descalçar as sabrinas que passaram pela sua inspeção impiedosa e recomendou-me com um gesto sumário que andasse com uns chinelos brancos de fina entretela e tamanho único, que retirou de um plástico. Depois sossegou, enquanto entoava eternos êxitos de Bossa Nova. Não tenho medo mas estou expectante e intrigada. Ansiosa também. Sei que nunca aqui estive e não percebo porque estou confinada. Tudo isto é muito novo para mim. Haverá razões para ter medo? Nesse caso temo não as conhecer ainda. Talvez alguém lá fora se preocupe pela minha ausência. Mas quem? Não tenho aliança por isso não devo ser casada. Mas posso ter alguém na minha vida. Filhos, pais, irmãos. Um companheiro. Um confidente. Uma mentora. Amigos. Um dependente. Alunos. Mestres.
Sinto que aqui me protegem dois leais aliados: a chefe de cozinha da penitenciária, uma angolana quarentona com aspeto de Kwanyama, pele brilhante, muito alta e corpulenta, com porte altivo e olhar bondoso, de olhos pretos redondos como janelas de porão. É discreta e silenciosa. Aqui chamam-lhe Mana Mingota. E também um velho pastor belga cor de azeite, grande e meigo, com algumas ramelas coriáceas, que adora lamber as mãos das presidiárias e deitar-se no chão do pátio à espera de festas. Dizem que pertencia a uma das guardas prisionais que morreu. Já ouvi umas das mulheres chamar-lhe Mbua[4]. Sempre que me vê levanta as patas dianteiras com alegria e quase me atira ao chão, pois de pé é mais alto do que eu e quanto à força, propriamente dita, devemos andar ela por ela, embora ele não tenha mais do que o peso dos meus onze anos.
Mas também tenho sinistros e imprevisíveis inimigos; desde logo uma das guardas prisionais da minha ala: sei que é a Joana Ngandu[5] porque tem o distintivo aposto na farda. Pequena e ágil, na casa dos vinte, traiçoeira e astuta, de cabelo castanho postiço e mãos enormes, apesar da sua pequena estatura. E um dos diretores, de meia-idade, anafado, cabeça rapada e óculos de lentes espessas, que não dispensa o boné de fazenda xadrez e o relógio de ouro; tem a alcunha de Kitadi[6] e não ouvi ainda referir o seu verdadeiro nome.
Chamam-me A Princesa. Todos fogem de mim e consta que sou capaz de tocar fatalmente várias pessoas sem um único disparo. Sinto uma forte dor de cabeça, como se me tivessem agredido na nuca, com uma pancada seca e violenta. Mana Mingota dá-me um copo de água turva às refeições, talvez aí tenha dissolvido um comprimido. Serão analgésicos? E se for uma enfermeira infiltrada, o meu anjo da guarda?
Mbua trouxe-me esta manhã ao pátio um pequeno tubo dissimulado na coleira, no qual está uma nota manuscrita: “Não podes conhecer a tua identidade, por segurança. Estás aqui para te protegerem dos ataques de quem te persegue, pois julgam-te uma ameaça. Alguém pôs a circular a notícia de que todos aqueles que te tocam acabam por sucumbir. Cuidado com a Ngandu. O alheamento é o teu salvo-conduto. Livra-te deste papel”. Mbua fez menção de querer urinar junto a um muro coberto de musgo e eu coloquei estrategicamente o insólito recado na trajetória do seu fétido jato.
Joana Ngandu é líder de uma seita religiosa que preconiza o “Renascimento Sanitário” método através do qual se propõem eliminar da face da terra todos os potenciais veículos de algum tipo de doença, filosofia ou paixão contagiosa: escritores, intelectuais, filósofos, artistas. Disse-mo a minha colega de cela mas não posso fiar-me nela. Entretanto é certo que desconfia de mim e tenta armadilhar-me frequentemente.
Mas esta noite, sem que nada fizesse prever, Joana veio arrancar-me da cela enquanto a minha alienada co-locatária trauteava uma das suas canções preferidas. “(…) Acorda Amor/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora/ Batendo no portão, que aflição (…)”. Sou arrastada para a horta, em meio a empurrões e pontapés. No meio da escuridão vejo Mbua uivando à lua. Kitadi espera-nos com ar triunfante enquanto consulta o seu telemóvel.
— Ainda não tenho a transferência. Não me faças perder tempo, Ngandu.
As patas desta mulher minúscula e abjeta arremessam-me para o chão com violência. Todo o seu corpo é um mecanismo brutal de destruição, as mãos são verdadeiras pás de coveiro. Rapidamente finaliza o pagamento acordado fazendo deslizar os dedos que se mostram agora ágeis, versáteis e céleres.  
— Muito bem. És batalhadora, persistente. Gosto de ti, Ngandu   Kitadi exalava uma respiração ruidosa que lhe embaciava as grossas lentes. Ajeitou o boné e consultou o seu bonito relógio de ouro. — Chegou a hora de saberes a verdade — continuou.
Entretanto eu gemia no chão, tentando cuspir o capim da boca, com as mãos algemadas atrás das costas, cheias de escoriações. Os meus olhos cruzaram-se com os de Mbua e foi nesse momento que o velho animal saltou para o pescoço de Kitadi ferrando-o fatalmente na jugular. Ngandu disparou um tiro certeiro e Mbua apagou-se como um herói, sem um latido, com os olhos meigos cheios de ramelas.
— Mas quem és tu? Quem diabo és tu, afinal? Estúpida princesa decadente, olha para ti, não vales nem o capim nem as formigas que se vão alimentar de ti…Quem é JC, diz-me de uma vez por todas? Sabes o que é o “Renascimento Sanitário”?  — continuou.
— Quem me dera saber — murmurei. — Mas talvez estes livros possam ajudar. Não me separo deles. Veja.
Ngandu abriu violentamente o Bestiário numa página de Casa Ocupada. E leu: “Ouvíamo-nos respirar, tossir, pressentíamos o gesto que leva ao botão do candeeiro, as mútuas e frequentes insónias”. Senti o peso da sua mão na face esquerda como uma bota da tropa. Rindo, com um fio de sangue escorrendo pela boca, respondi-lhe apenas:
— Sou mais nova que o seu pai seis meses. 
E ouvi claramente Lobo Antunes rindo ao meu lado antes de me desvanecer.
Luísa Fresta
Queluz, 26/03/2020


[1] Muteta: prato tradicional angolano à base de pevides de abóbora descascadas e moídas, com tomate, alho e ovos.
[2] Saka saka: o mesmo que sacafolha, kizaka ou quizaca. Receita tradicional do Norte de Angola e Congo, nomeadamente, feita com folhas de mandioca pisadas, cozidas e refogadas em óleo de palma.
[3] Cambriquito: cobertor pequeno, em Angola. Termo relativo ao período colonial.
[4] Mbua: cão, em kimbundu.
[5] Ngandu: jacaré, em kimbundu.
[6] Kitadi: dinheiro, em kimbundu.

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