Do espartilho do enunciado de um exercício destinado a soltar a imaginação, a escritora Luisa Fresta leva-nos até uma prisão algures em Angola, onde até os cheiros conseguimos apanhar. É uma narrativa perfeita, um conto soberbo, da primeira à ultima palavra. A «apropriação» dos livros, como também foi sugerido, é integral. A Princesa, heroína deste conto, assimilou-os dando-lhes vida própria até ao último alento. Com e como ela, respiramos a perplexidade e angústia que assombram os dias de hoje. Que inimigo é esse que nos aprisiona, sem culpa formada? De tão perfeitamente particular, esta narrativa é universal. Como bónus, a ilustração de Cristina Seixas.
Manuela Gonzaga
Manuela Gonzaga
«Sou mais nova que o seu pai seis meses»
Ilustração de Cristina Seixas, professora do ensino básico, especificamente feita para este conto |
Estou
numa cela de doze metros quadrados com paredes sem reboco e tijolos à vista,
pintados de cinza. Há duas janelas altas de sessenta por sessenta em vidro liso
que dão para uma horta. As grades são em forma de xis. Quando a chuva é oblíqua
e grossa faz muito barulho dentro da minha cabeça. Nas paredes leem-se frases
em árabe, em francês, cheias de erros ortográficos e também em crioulo de
Santiago. Alguns palavrões, duas orações, um desenho erótico feito com batom
escuro, uma receita de bola de carne, outras duas de muteta[1] e de saka
saka[2], com um
número de zap. Em duas frases curtas recomenda-se abstinência total e mais
abaixo surge o contato de uma pastora. No teto branco encardido espreitam
desoladoras manchas de humidade e algumas bolhas na pintura. Está frio. O chão
é do tipo industrial, brilhante e com aspeto lavado enquanto que o lavatório
pequeno, o chuveiro e a sanita asseguram a nossa precária higiene. A minha cama
resume-se a um colchão fino de espuma, com resguardo, e a um par de lençóis
bordados com as iniciais JC. Não terá mais de noventa centímetros de largura.
Há dois cobertores cambriquito[3] dobrados
em quatro e encafuados numa fronha alva, fazendo as vezes de enchimento de uma
espécie de almofada alta.
Tenho uma mesa-de-cabeceira metálica com uma gaveta mínima onde
encontro um espelho redondo de aumentar, de base plástica, que permite apoiá-lo
numa superfície horizontal, pendurá-lo num gancho ou fixá-lo à parede por uma
ventosa. Sobre a mesa estão dois livros: Crónicas,
de Lobo Antunes e Bestiário, de
Cortázar, para além de uma esferográfica tipo Parker, com as iniciais JC gravadas.
Também há uma BIC, de ponta azul. Mais do que gostar, sei que preciso dos meus
livros, porque me fortalecem e me apetece tatear as capas frias, porque fico em
pânico se não os encontro perto de mim; sorrio ao olhá-los: mas não me consigo
lembrar de nenhum pormenor relevante, exceto da Casa Ocupada de Cortázar e do Sou
mais novo que o seu pai seis meses, do Lobo Antunes. São contos ou
crónicas, ou textos, sei que os li em voz alta a ambos e quando volto a eles, a
elas, percebo que conheço as pessoas e os lugares. Que estive lá, vivo lá, ou
muito perto.
Gosto da minha saia preta de malha e do camiseiro largo em tecido
acetinado verde doirado, de um tom parecido com o das fardas militares. Julgo-me
incapaz de escolher outra roupa para me dar a conhecer e descobrir-me também. Reparo
com agrado numas sabrinas pretas com um lacinho fino e num colar rente ao
pescoço, de pérolas de aquacultura, um pouco amarelecidas. Esta mulher morena com
batom bege brilhante e eyeliner preto é ainda jovem e o seu rosto inexpugnável
e reservado é-me bastante familiar. Creio que a devo conhecer e que provavelmente
nos damos bem.
Mas agora preciso urgentemente de saber de que me acusam. De saber
quem sou. Ainda ninguém veio falar comigo. Tenho uma companheira de cela que
parece ter perturbações mentais. Quando cheguei (quando seria?) cumprimentou-me
distraidamente e pôs-se a limpar freneticamente as paredes e as grades que nos
separam do corredor. Depois continuou a desinfeção com um lenço velho embebido
em não sei que substância de cheiro ativo que guarda num frasco sem rótulo,
friccionando cada centímetro quadrado do estrado das camas, do vidro da janela,
ao qual chegou empoleirada numa das mesas-de-cabeira que foram, por último,
esfregadas também com muito vigor.
Instou-me rudemente a descalçar as sabrinas que passaram pela sua
inspeção impiedosa e recomendou-me com um gesto sumário que andasse com uns
chinelos brancos de fina entretela e tamanho único, que retirou de um plástico.
Depois sossegou, enquanto entoava eternos êxitos de Bossa Nova. Não tenho medo
mas estou expectante e intrigada. Ansiosa também. Sei que nunca aqui estive e
não percebo porque estou confinada. Tudo isto é muito novo para mim. Haverá
razões para ter medo? Nesse caso temo não as conhecer ainda. Talvez alguém lá fora
se preocupe pela minha ausência. Mas quem? Não tenho aliança por isso não devo
ser casada. Mas posso ter alguém na minha vida. Filhos, pais, irmãos. Um
companheiro. Um confidente. Uma mentora. Amigos. Um dependente. Alunos.
Mestres.
Sinto que aqui me protegem dois leais aliados: a chefe de cozinha
da penitenciária, uma angolana quarentona com aspeto de Kwanyama, pele
brilhante, muito alta e corpulenta, com porte altivo e olhar bondoso, de olhos
pretos redondos como janelas de porão. É discreta e silenciosa. Aqui chamam-lhe
Mana Mingota. E também um velho pastor belga cor de azeite, grande e meigo, com
algumas ramelas coriáceas, que adora lamber as mãos das presidiárias e
deitar-se no chão do pátio à espera de festas. Dizem que pertencia a uma das
guardas prisionais que morreu. Já ouvi umas das mulheres chamar-lhe Mbua[4]. Sempre
que me vê levanta as patas dianteiras com alegria e quase me atira ao chão,
pois de pé é mais alto do que eu e quanto à força, propriamente dita, devemos
andar ela por ela, embora ele não tenha mais do que o peso dos meus onze anos.
Mas também tenho sinistros e imprevisíveis inimigos; desde logo uma
das guardas prisionais da minha ala: sei que é a Joana Ngandu[5] porque
tem o distintivo aposto na farda. Pequena e ágil, na casa dos vinte, traiçoeira
e astuta, de cabelo castanho postiço e mãos enormes, apesar da sua pequena
estatura. E um dos diretores, de meia-idade, anafado, cabeça rapada e óculos de
lentes espessas, que não dispensa o boné de fazenda xadrez e o relógio de ouro;
tem a alcunha de Kitadi[6] e não
ouvi ainda referir o seu verdadeiro nome.
Chamam-me A Princesa. Todos fogem de mim e consta que sou capaz de
tocar fatalmente várias pessoas sem um único disparo. Sinto uma forte dor de
cabeça, como se me tivessem agredido na nuca, com uma pancada seca e violenta. Mana
Mingota dá-me um copo de água turva às refeições, talvez aí tenha dissolvido um
comprimido. Serão analgésicos? E se for uma enfermeira infiltrada, o meu anjo
da guarda?
Mbua trouxe-me esta manhã ao pátio um pequeno tubo dissimulado na
coleira, no qual está uma nota manuscrita: “Não podes conhecer a tua identidade,
por segurança. Estás aqui para te protegerem dos ataques de quem te persegue,
pois julgam-te uma ameaça. Alguém pôs a circular a notícia de que todos aqueles
que te tocam acabam por sucumbir. Cuidado com a Ngandu. O alheamento é o teu
salvo-conduto. Livra-te deste papel”. Mbua fez menção de querer urinar junto a
um muro coberto de musgo e eu coloquei estrategicamente o insólito recado na
trajetória do seu fétido jato.
Joana Ngandu é líder de uma seita religiosa que preconiza o “Renascimento
Sanitário” método através do qual se propõem eliminar da face da terra todos os
potenciais veículos de algum tipo de doença, filosofia ou paixão contagiosa:
escritores, intelectuais, filósofos, artistas. Disse-mo a minha colega de cela
mas não posso fiar-me nela. Entretanto é certo que desconfia de mim e tenta
armadilhar-me frequentemente.
Mas esta noite, sem que nada fizesse prever, Joana veio
arrancar-me da cela enquanto a minha alienada co-locatária trauteava uma das
suas canções preferidas. “(…) Acorda Amor/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora/
Batendo no portão, que aflição (…)”. Sou arrastada para a horta, em meio a
empurrões e pontapés. No meio da escuridão vejo Mbua uivando à lua. Kitadi
espera-nos com ar triunfante enquanto consulta o seu telemóvel.
— Ainda não tenho a transferência.
Não me faças perder tempo, Ngandu.
As patas desta mulher minúscula e
abjeta arremessam-me para o chão com violência. Todo o seu corpo é um mecanismo
brutal de destruição, as mãos são verdadeiras pás de coveiro. Rapidamente
finaliza o pagamento acordado fazendo deslizar os dedos que se mostram agora
ágeis, versáteis e céleres.
— Muito bem. És batalhadora,
persistente. Gosto de ti, Ngandu — Kitadi exalava uma respiração ruidosa que lhe
embaciava as grossas lentes. Ajeitou o boné e consultou o seu bonito relógio de
ouro. — Chegou a hora de saberes a verdade — continuou.
Entretanto eu gemia no chão,
tentando cuspir o capim da boca, com as mãos algemadas atrás das costas, cheias
de escoriações. Os meus olhos cruzaram-se com os de Mbua e foi nesse momento
que o velho animal saltou para o pescoço de Kitadi ferrando-o fatalmente na jugular.
Ngandu disparou um tiro certeiro e Mbua apagou-se como um herói, sem um latido,
com os olhos meigos cheios de ramelas.
— Mas quem és tu? Quem diabo és tu,
afinal? Estúpida princesa decadente, olha para ti, não vales nem o capim nem as
formigas que se vão alimentar de ti…Quem é JC, diz-me de uma vez por todas?
Sabes o que é o “Renascimento Sanitário”?
— continuou.
— Quem me dera saber — murmurei. — Mas
talvez estes livros possam ajudar. Não me separo deles. Veja.
Ngandu abriu violentamente o Bestiário numa página de Casa Ocupada. E leu: “Ouvíamo-nos
respirar, tossir, pressentíamos o gesto que leva ao botão do candeeiro, as
mútuas e frequentes insónias”. Senti o peso da sua mão na face esquerda como
uma bota da tropa. Rindo, com um fio de sangue escorrendo pela boca, respondi-lhe
apenas:
— Sou mais nova que o seu pai seis
meses.
E ouvi claramente Lobo Antunes
rindo ao meu lado antes de me desvanecer.
Luísa Fresta
Queluz, 26/03/2020
Queluz, 26/03/2020
[1] Muteta: prato tradicional angolano à
base de pevides de abóbora descascadas e moídas, com tomate, alho e ovos.
[2] Saka saka: o mesmo que sacafolha, kizaka
ou quizaca. Receita tradicional do Norte de Angola e Congo, nomeadamente, feita
com folhas de mandioca pisadas, cozidas e refogadas em óleo de palma.
[3] Cambriquito: cobertor pequeno, em
Angola. Termo relativo ao período colonial.
[4] Mbua: cão, em kimbundu.
[5] Ngandu: jacaré, em kimbundu.
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