Elisabeth Carreira está umbilicalmente
ligada ao Teatro, à sua escrita e imagética, pelo que este conto lhe surgiu, segundo me disse, de forma quase compulsiva. É uma
narrativa muito bela e muito generosa. Num enredo perfeito, ela homenageia alguns dos monstros sagrados que lhe iluminam o percurso. Mário Viegas. Craveirinha e outros, numa
antologia de poesia Moçambicana. Beckett. E deixa-nos a
interrogação filosófica que assombra a humanidade desde os alvores do tempo. «É
a minha situação uma metáfora da existência humana?». Aplauso.
Manuela Gonzaga
Não posso continuar. Vou continuar
Estendo a perna à
procura da tua, o meu corpo a querer cumprir o abraço quente e reconfortante
com que sempre iniciamos o dia. Dou com a parede dura e fria. Ainda de olhos
fechados, tento ordenar os pensamentos. Que se passa? Chamo-te, a medo.
Pressinto que algo está errado. Tateio. Esta cama estreita, não é a minha, não
é a nossa. Obrigo-me a abrir os olhos. Estou só. Num quarto minúsculo, onde
nunca estive. Há uma janela pequena, com uma grade em forma de cruz, por onde
irrompe, tímida, a luz do amanhecer. É demasiado alta. Não chego lá. Olho em
volta. Vejo uma cadeira, junto a uma pequena mesa metálica. Coloco-a por baixo
da janela e subo para a inspeccionar. Não existe manípulo. Espreito. Devo estar
num segundo andar a avaliar pelo edifício em frente, pontuado com pequenas
janelas gradeadas, como a minha. A separar os dois edifícios, um pátio amplo,
com árvores.
Encontro-me numa prisão,
portanto. Ou num hospício? Interrogações sem resposta. Que terei feito para
estar aqui? Quem me quer mal? Onde estás?
Desço da cadeira.
Viro-me no sentido contrário. Uma porta de ferro. Tento abri-la. Trancada.
Estou evidentemente presa. Como vim aqui parar? Por que não me lembro de nada?
Uma sensação de vertigem leva-me a sentar-me na cama, a cabeça entre os
joelhos. «Faça isso quando sentir tonturas», disse a médica. «E respire de
forma profunda até que passe o mal-estar. Esse procedimento ajuda a circulação
sanguínea a chegar mais rapidamente ao cérebro.» Ao fim de uns minutos, fico
mais calma, é um facto. Há coisas que aprendemos na vida que um dia se revelam
úteis. Esforço-me por racionalizar. Reparo que sobre a mesa estão dois livros.
Descoberta excitante. Sobre eles, os meus óculos. Excelente combinação, já que
sem eles os livros se revelariam inúteis.
Pego no de cima.
Beckett! Livro velhinho, comprado por mim ainda nos tempos da Faculdade! Edição
portuguesa, da Arcádia, não datada. Custou-me 50 escudos, segundo se lê, a
lápis, na primeira página. Imagino-me a comprá-lo com volúpia, objecto de luxo,
na antiga Livraria Universitária do Campo Grande, já desaparecida. Três
peças, À Espera de Godot, Fim de Festa e A
última gravação. Vem-me à cabeça uma lembrança boa: Mário
Viegas, genial, maravilhoso, insuperável, em À Espera de Godot, na
pequena sala do mais tarde apelidado Teatro-Estúdio Mário Viegas. O maior dos
actores portugueses entregando-se inteiro, presumo que já doente, às palavras –
e aos silêncios, que tão bem interpretava – do maior dos dramaturgos modernos.
Dois enormes amores na minha vida. E Endgame (Fim de Festa),
ainda tão vivo na minha memória, o espetáculo que vi recentemente em Londres,
com dois colossais actores, Alan Cumming e Daniel Radcliffe, transportando o
texto de Beckett às alturas do sublime. Dei comigo na plateia banhada de
lágrimas, tal o êxtase. Beckett, portanto, aqui comigo, a alimentar-me a alma.
Pena ser uma tradução. Em tempos tive em casa uma edição inglesa, mas dei-me
conta que desapareceu, naturalmente para casa de um dos nossos filhos.
Pego no outro: Nunca
mais é sábado, antologia de poesia moçambicana. Também meu, mais recente.
Teatro e Moçambique. Sorrio. Sabes que são duas palavras que me definem. Terei
sido eu a trazer estes livros? Não são obra do acaso. Só posso
ter sido eu ou os nossos filhos. Tu não, o teu mundo é outro. Não estavam na
minha mesa de cabeceira, alguém os procurou criteriosamente nas minhas
estantes. Por trás destes livros, está alguém que me conhece e se
preocupa. Não estou só. Não estou só.
Há uma espessa neblina
no meu cérebro, que me impede de compreender esta absurda situação. Em sonhos,
já vivi esta sensação angustiante. A de não saber onde estou, como sair, que culpa
estou a espiar. Olho de novo à volta. Não é sonho. Tudo demasiado real. Ou
melhor, surreal.
Abro a antologia
moçambicana, aleatoriamente. Dou com o Craveirinha, um outro amor
incondicional. Admirável poeta, nascido no mais pobre dos bairros pobres da
capital moçambicana. Autodidacta, fez-se enorme “encontrando no amor a
sublimação de tudo”, e ansiando pelo dia em que veria o seu “áfrico país”
erguer-se, livre e digno, em toda a sua autenticidade. Porque é indigna a
privação da liberdade, como bem me dou conta. Sentir que alguém mais forte que
nós, dono da nossa vida, nos limita e nos cala. Era assim, antes. Mas a
ditadura tinha um rosto. Agora desconheço quem me oprime.
Saboreio o poema Exíguas
palavras:
Posso jurar que a solidão me tacteia.
Uma a uma esvaindo-se no rígido vazio
Exíguas são as palavras que me ocorrem.
Rimas de livros fitam-me indulgentes.
Desde Camões ao Eça passando por Tolstoi
São-me vãs as palavras que contêm.
Um sobressalto interrompe-me a escrita
Na maneira yankee de chamar deve ser o
Hemingway.
Jamais estamos socraticamente sós. Há
sempre um Chaplin.
Não são os grãos de areia um por um que
povoam os desertos?
Jamais estaremos sós,
portanto, enquanto pudermos escutar os grandes autores. Faltas-me, porque és
metade de mim. Mas não estou só. Encosto um livro ao peito e depois o
outro. São dois livros, não são mais do que isso, dois objectos
banais, mas a sua presença reconforta-me extraordinariamente.
Pouso os livros e reparo
que sobre a mesa há num caderno preto, desses que tenho sempre em casa. E duas
esferográficas. A coisa compõe-se! Estou trancada numa cela, não sei porquê,
não sei por quanto tempo, mas poderei libertar os pensamentos, evadir-me,
escrevendo, desenhando... Não estou só.
Um pequeno lavatório.
Tenho água. A minha escova de dentes num copo. A pasta de dentes habitual. Pelo
menos isso. Lavo a cara, escovo os dentes e limpo-me à toalha pendurada ao
lado. Olho-me no espelho suspenso acima do lavatório e com dois dedos tento
apagar a ruga entre os olhos. Respirar. Isto não é para sempre. É um equívoco.
Vai ficar tudo bem. Estou de pijama. O meu confortável pijama camiseiro de
xadrez vermelho. Outra boa escolha. Olho à volta. O meu robe branco pendurado
num prego. E é tudo. Não tenho mais roupa. Não poderei ir, pelo menos, até ao
pátio? E as refeições?
Como se ouvisse a minha
muda interrogação, alguém destranca a porta e assoma por um momento. Pequeno
almoço! Uma voz feminina entrega-me um tabuleiro. Uma farda inconclusiva.
Guarda? Auxiliar de ação médica? Sai rapidamente e tranca de novo a porta, sem
dar azo a perguntas. Pão com manteiga e uma caneca com café com leite. Não
estava à espera de mais. Obrigo-me a debicar a carcaça deslavada e a beber o
café frio. Subjugada, mas não rendida. Resistente.
Dou voltas na pequena
cela. Interrogo-me sem cessar, tentando reconstituir os últimos momentos de que
me recordo. Esbarro num muro negro. Não encontro respostas. Não sei como sair
desta situação. Sinto-me personagem de Beckett, mulher non-knower e non
can-er, numa peça em que o absurdo impera. É a minha situação uma
metáfora da existência humana? Todos nos debatemos, quando nos permitimos
alguma lucidez, com questões sem resposta sobre o sentido da vida, a
impossibilidade da verdadeira comunicação com os outros, a solidão em que
vivemos e morremos.
E acabamos por concluir
que por mais que doa, prosseguir é preciso.
I can’t go on. I’ll go on.
Elisabeth Carreira
Lisboa, 28 de março 2020
Imagem (mito de Sísifo)
1 comentário:
Muito obrigada pelas tuas palavras, Manuela. E pelo formidável desafio, a que tentei corresponder com imenso prazer.
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