sábado, março 06, 2010

Estou no Porto

As cidades são como as pessoas. Abrem-nos o coração e as portas, fazendo sentir como somos amados, ou fecham-se e deixam-nos à solta num labirinto de ruas perdidas, onde a memória joga às escondidas connosco, estendendo-nos as pequenas armadilhas da saudade.
Às vezes, as cidades são gentis e distantes. Fraqueiam-nos, simplesmente, a entrada, como se fossemos técnicos que vêm conferir os contadores da água, da luz e do gaz. Com gentileza breve: faz o que tens a fazer, e pira-te para voltar para o meu programa de televisão, para o meu livro, para a conversa que interrompi para te abrir a porta. Obrigada e até para o mês que vem.
Há cidades sedutoras como prostitutas muito caras. Deixam-nos andar pelo seu corpo deslumbrante,nas voltas de turista ávido, procurando lembrar-nos a cada momento como seria tudo muito mais maravilhoso e encantador se tivessemos a fortuna bastante para franquearmos os seus palácios remotos e os seus jardins secretos.
Em todo o caso, não há encontros fortuitos, casuais ou inocentes, com nenhuma cidade onde possamos ir ou onde já fomos. Mesmo de passagem. As cidades marcam-nos. Tocam-nos muito para além do que possamos sentir ou imaginar.
Às vezes gosto de pensar que nós também as tocamos.

Estou no Porto. Não conheço esta cidade e, porém, pertenço, de um modo indizível, a este corpo esplêndido de granito e brumas, águas e luz dourada. Há farrapos de mim presos em calçadas íngremes, em jardins de magnólias com sebes de buxo. Deslizo num tapete de luzes de Natal bebendo encantada o esplendor das montras de Santa Catarina. Há pegadas minhas, minúsculas, nas areias de Leça da Palmeira. E gritos de alegria da criança que fui a nadar nas ondas de um mar gelado onde me sentia em casa. Tão em casa como nunca mais me senti em lado nenhum do mundo inteiro.
Passeio, e movimento-me pelo Porto com o à vontade que conquistei palmo a palmo ao longo dos anos que insisto em voltar. Em tentar voltar. Encontro-me, invariavelmente, com fragmentos de memórias banais, pungentes ou exultantes. E tão antigas que posso muito bem tê-las inventado a todas. Algumas nem são do tempo em que nasci.
Mas e de todas as vezes, sinto perdi, e para sempre, a chave da minha geografia de infãncia. Algures, por aqui.

3 comentários:

Mozzaic disse...

Quel lindo!
Sei exactamente o que sentes. A minha infãncia reparte-se por memórias de uma Luanda que nunca mais voltarei a reencontar, e um rio Sado onde os meus golfinhos ainda brincam com as ondas. Algures ficou perdida aquela sensação de se pertencer a um lugar.
Quando regresso a Portugal sinto qualquer coisa pareceida como o dia em que descobrimos que estamos crescidos e afinal o pai não era aquele gigante que olhava para nós lá do alto, a mesa da cozinha encolheu, e já chego com os pés ao chão quando me sento na cadeira de baloiço da avó.
Felizmente ainda temos a imaginação que nos permite trocar umas magias por outras e alguns sonhos até se podem alcançar.

Manuela Gonzaga disse...

É isso mesmo...
E viajar torna-se a nossa segunda natureza. Mesmo quando, e por absurdo, não mudamos de lugar onde. O que nunca acontece por muito tempo. Tu entendes.

Daniel MM disse...

Lindo!!!