Nesses tempo ainda não sabia ler. Era um livro muito grande, agigantado pelo tamanho da criança de quatro, cinco anos que eu era.
Chamo-lhe «meu» mas estava na casa de Lisboa, à minha espera quando vinha de férias. Guardado dentro de uma caixa, num armário alto. Tinham de mo ler, e ouvi-o vezes sem conta, sem nunca me cansar da história. Tinha ilustrações belíssimas, algumas pintadas com purpurinas coloridas. Passava a ponta dos dedos sobre elas, em estado de maravilha. Era uma vez um um belo principe muito mau e uma bela princesa muito boa. Penso que eram italianos. Ele gostava da guerra, da caça, e entrava a cavalo nas igrejas. Chicoteava todos os que se lhe atravessavam no caminho. Encontrou-a assim, um dia, a rezar numa catedral. O sol iluminava os cabelos de oiro dela, atravessando um vitral precioso, que os meus olhos e o meu dedo indicador, cuidadosamente, seguiam na gravura. Ele amou-a desvairadamente. Ela respondeu-lhe com uma indiferença total. Só poderia vir a amá-lo, disse, se ele mudasse completamente. Ele mudou muito, mas ela não acreditou. Só acreditaria quando ele mudasse verdadeiramente. Ou seja, no coração.
O principe pôs-se à disposição da lindíssima princesa: faria tudo o que fosse preciso para a convencer da sua mudança, tamanho era o amor que lhe tinha. Ela pediu-lhe, muito simplesmente, que fosse acender uma vela num lugar sagrado, e remoto - seria Jerusalém? - e transportar aquele fogo, sem nunca se apagar, até à catedral onde se tinham visto pela primeira vez e aí levá-lo até ao altar-mor. O principe achou que esta era a tarefa mais fácil do mundo, e não pensou duas vezes. Foi, acendeu a vela e regressou à sua pátria.
Mas aí é que a aventura se tornou emocionante. Para tomar conta daquele fogo, sofreu infinitamente. Não conseguia dormir, ou alimentar-se convenientemente, no sobressalto de deixar apagar a chama. A viagem durou muito tempo, e ele ficou magro, roto, e tornou-se alvo da chacota de todos. A história correu de boca em boca, e agora, sabendo-o vulnerável, e considerando-o louco, a chusma acompanhava-o, num alarido de escárnio, à saída e entrada das vilas e cidades e povoações. Do antigo principe arrogante e mau, restava apenas um pobre doido a proteger uma chama com a própria vida.
Quando finalmente chegou à sua cidade, dirigiu-se para a catedral, rodeado por uma multidão ululante e perigosa. Mendigos puxavam-lhe o manto e tentavam apagar a chama. Atiravam-lhe pedras. Insultavam-no. Em silêncio, uma mão nas rédeas do cavalo, exausto também ele, o principe acabou por chegar à igreja, sob a atoarda da multidão que agora o escarnecia aos gritos. Uma pedra acertou-lhe na fronte. Gotas de sangue escorreram-lhe pelo rosto. E ele sempre impávido.
Desmontou e entrou na Igreja a cambalear, as mãos em concha a proteger o fogo. Subitamente, uma pomba que vinha a fugir de um falcão vai de encontro a ele e apaga a chama.
O principe cai mesmo à entrada da igreja, ao fim de não sei quanto tempo de peregrinação -- anos, decerto! -- e começa a chorar. Subitamente ergue-se um clamor no templo. A pomba tem as asas em chamas. Enlouquecida, voa pelo templo, às cegas. Mas quanto mais voa, mais arde. Acaba por morrer sobre o altar, levando às velas que ali se encontram o fogo que o príncipe trouxe da Terra Santa.
Lembro-me das chamas, em purpurinas vermelhas e douradas. Do principe deitado no chão, vestido com uma capa escura e toda rota. Da pomba a arder. Das velas. Do rosto da princesa, a olhar para trás, o rosto iluminado de amor. Mas noutro dia, quando numa entrevista breve me perguntaram sobre os meus livros, a minha biblioteca, os que guardo e os que ando a ler, esta obra foi, naturalmente, esquecida.
Já não o tenho. Há muitos, muitos, muitos, anos que deixei de o ver. Já não existe o armário enorme onde se guardava. Ou melhor, perdi-lhe o rasto. A casa também não. Uma vez fui lá, e percebi que embora parecesse a mesma, tinha mudado de alma. Na verdade, as pessoas adoráveis que mo liam e reliam, minhas tias avós e bisavós, desapareceram há muito.
Mas uma história destes, que se guarda mesmo antes de se saber ler, pode considar-se uma referência. Acima de tudo, é o objecto livro que recordo com uma indizível saudade. Sobretudo porque, ignorando tudo o mais a seu respeito -- titulo, autor, editora -- jamais o poderei reencontrar.
A não ser na memória que ainda guardo dele.
4 comentários:
que lindo, Manuela :)
beijo
Obrigada, Lena.
Adorei a história, é de facto muito bonita e uma óptima referência.
Liliana S.
Obrigada...
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