quarta-feira, abril 21, 2010

O primeiro livro que recordo com amor profundo

Nesses tempo ainda não sabia ler. Era um livro muito grande, agigantado pelo tamanho da criança de quatro, cinco anos que eu era.
Chamo-lhe «meu» mas estava na casa de Lisboa, à minha espera quando vinha de férias. Guardado dentro de uma caixa, num armário alto. Tinham de mo ler, e ouvi-o vezes sem conta, sem nunca me cansar da história. Tinha ilustrações belíssimas, algumas pintadas com purpurinas coloridas. Passava a ponta dos dedos sobre elas, em estado de maravilha. Era uma vez um um belo principe muito mau e uma bela princesa muito boa. Penso que eram italianos. Ele gostava da guerra, da caça, e entrava a cavalo nas igrejas. Chicoteava todos os que se lhe atravessavam no caminho. Encontrou-a assim, um dia, a rezar numa catedral. O sol iluminava os cabelos de oiro dela, atravessando um vitral precioso, que os meus olhos e o meu dedo indicador, cuidadosamente, seguiam na gravura. Ele amou-a desvairadamente. Ela respondeu-lhe com uma indiferença total. Só poderia vir a amá-lo, disse, se ele mudasse completamente. Ele mudou muito, mas ela não acreditou. Só acreditaria quando ele mudasse verdadeiramente. Ou seja, no coração.
O principe pôs-se à disposição da lindíssima princesa: faria tudo o que fosse preciso para a convencer da sua mudança, tamanho era o amor que lhe tinha. Ela pediu-lhe, muito simplesmente, que fosse acender uma vela num lugar sagrado, e remoto - seria Jerusalém? - e transportar aquele fogo, sem nunca se apagar, até à catedral onde se tinham visto pela primeira vez e aí levá-lo até ao altar-mor. O principe achou que esta era a tarefa mais fácil do mundo, e não pensou duas vezes. Foi, acendeu a vela e regressou à sua pátria.
Mas aí é que a aventura se tornou emocionante. Para tomar conta daquele fogo, sofreu infinitamente. Não conseguia dormir, ou alimentar-se convenientemente, no sobressalto de deixar apagar a chama. A viagem durou muito tempo, e ele ficou magro, roto, e tornou-se alvo da chacota de todos. A história correu de boca em boca, e agora, sabendo-o vulnerável, e considerando-o louco, a chusma acompanhava-o, num alarido de escárnio, à saída e entrada das vilas e cidades e povoações. Do antigo principe arrogante e mau, restava apenas um pobre doido a proteger uma chama com a própria vida.
Quando finalmente chegou à sua cidade, dirigiu-se para a catedral, rodeado por uma multidão ululante e perigosa. Mendigos puxavam-lhe o manto e tentavam apagar a chama. Atiravam-lhe pedras. Insultavam-no. Em silêncio, uma mão nas rédeas do cavalo, exausto também ele, o principe acabou por chegar à igreja, sob a atoarda da multidão que agora o escarnecia aos gritos. Uma pedra acertou-lhe na fronte. Gotas de sangue escorreram-lhe pelo rosto. E ele sempre impávido.
Desmontou e entrou na Igreja a cambalear, as mãos em concha a proteger o fogo. Subitamente, uma pomba que vinha a fugir de um falcão vai de encontro a ele e apaga a chama.
O principe cai mesmo à entrada da igreja, ao fim de não sei quanto tempo de peregrinação -- anos, decerto! -- e começa a chorar. Subitamente ergue-se um clamor no templo. A pomba tem as asas em chamas. Enlouquecida, voa pelo templo, às cegas. Mas quanto mais voa, mais arde. Acaba por morrer sobre o altar, levando às velas que ali se encontram o fogo que o príncipe trouxe da Terra Santa.
Lembro-me das chamas, em purpurinas vermelhas e douradas. Do principe deitado no chão, vestido com uma capa escura e toda rota. Da pomba a arder. Das velas. Do rosto da princesa, a olhar para trás, o rosto iluminado de amor. Mas noutro dia, quando numa entrevista breve me perguntaram sobre os meus livros, a minha biblioteca, os que guardo e os que ando a ler, esta obra foi, naturalmente, esquecida.
Já não o tenho. Há muitos, muitos, muitos, anos que deixei de o ver. Já não existe o armário enorme onde se guardava. Ou melhor, perdi-lhe o rasto. A casa também não. Uma vez fui lá, e percebi que embora parecesse a mesma, tinha mudado de alma. Na verdade, as pessoas adoráveis que mo liam e reliam, minhas tias avós e bisavós, desapareceram há muito.
Mas uma história destes, que se guarda mesmo antes de se saber ler, pode considar-se uma referência. Acima de tudo, é o objecto livro que recordo com uma indizível saudade. Sobretudo porque, ignorando tudo o mais a seu respeito -- titulo, autor, editora -- jamais o poderei reencontrar.
A não ser na memória que ainda guardo dele.

4 comentários:

Helena disse...

que lindo, Manuela :)
beijo

Manuela Gonzaga disse...

Obrigada, Lena.

Lica disse...

Adorei a história, é de facto muito bonita e uma óptima referência.
Liliana S.

Manuela Gonzaga disse...

Obrigada...