Em Portugal, nessa época, as únicas mesquitas de que ouvira falar estavam nas Mil e Uma Noites. Na mesma altura em que, por Moçambique, povos de diversas fés praticavam às claras as suas religiões.
A primeira sensação que recordo da chegada a Tete em 1964, para além do calor que nos fulminava mal se abriam as portas do avião, foi a multiculturalidade da cidade. Uma cidade pequena, efeverescente, mágica. Com um rio escuro e muito largo, o Zambeze, que às vezes parecia feito de lama. Um jardim tropical, quase misterioso, cujos perfumes nos entonteciam. Uma rua das lojas, a transbordar de exotismo kitsh, com todas aquelas lojas de indianos de música em altos berros e uma aluciante profusão de artigos orientais. E o hotel, as esplanadas, o restaurante do Grego, o cinema.
E o colégio/liceu, católico, que acolhia de braços abertos todos os alunos. Fossem católicos, hindus, muçulmanos ou ateus.
Foi a primeira lição de liberdade que tive, mas na altura esta constatação nem sequer tinha nome. Viver assim tornava-se absolutamente natural.
Um dia, às minhas amigas do colégio juntei uma outra, que já não estudava. Era a mulher mais bela de Tete. Chamava-se Banoo, era filha do chefe da comunidade islâmica, tinha 16 anos e falava várias línguas. Português, árabe, nhungwe, entre outras línguas nativas. Alta, esguia, coberta de jóias, com o sari e o manto de sede leve a esvoaçar à sua volta, deslizava como um cisne moreno sob o calor demencial.
Quando nos cruzámos na rua - vivíamos perto uma da outra - ficava a olhá-la fascinada. Eu, e toda a gente. Ela e as irmãs, eram as primeiras, e as únicas, princesas de contos de fadas que jamais encontrei ao vivo.
Não demorou tempo nenhum em meter conversa com ela. Não demorou tempo nenhum em tornarmo-nos amigas. Em casa dela, corríamos para as arcas de roupa e escolhíamos o sari que eu ia vestir enquanto ali estava. Noites mágicas, um Ramadão inteiro, em que mal o sol se punha, um dos seus moleques aparecia em nossa casa com a sua mensagem:
«Vens?».
E eu ia. Jantávamos em salas de refeições distintas, homens e mulheres. Depois, juntavamo-nos todos cá fora, no grande pátio com árvores velhas e grandes onde a brisa da noite arrefecia a terra. Bebíamos xarope de rosas, e petiscávamos coisas delicadas, doces ou picantes, que circulavam em bandejas enormes, de latão. E falávamos sem parar.
Saímos de Tete em 1969. Nunca mais a vi, mas tive notícias recentes dela.
O Gafar Bega, outro dos nossos grandes amigos da época, reapareceu há dias e traçou-me o seu percurso. Tem mantido contacto com toda a gente desde sempre. «Só a ti, é que nunca te descobria. Passavas o tempo a mudar de terra, de emprego e de casa!» - disse, o mesmo sorriso maravilhoso de tantos anos antes. Continua por lá, e por cá. Mulher, filhos, netos. Negócios. E muitas solidariedades que não confessa, mas que os amigos comuns me revelaram.
Almoçamos os três, ele, o Jó e eu, ao lado da mesquita de Lisboa. As pontes refazem-se nos afectos, nas memórias, nas palavras.
Deus é grande.
A primeira sensação que recordo da chegada a Tete em 1964, para além do calor que nos fulminava mal se abriam as portas do avião, foi a multiculturalidade da cidade. Uma cidade pequena, efeverescente, mágica. Com um rio escuro e muito largo, o Zambeze, que às vezes parecia feito de lama. Um jardim tropical, quase misterioso, cujos perfumes nos entonteciam. Uma rua das lojas, a transbordar de exotismo kitsh, com todas aquelas lojas de indianos de música em altos berros e uma aluciante profusão de artigos orientais. E o hotel, as esplanadas, o restaurante do Grego, o cinema.
E o colégio/liceu, católico, que acolhia de braços abertos todos os alunos. Fossem católicos, hindus, muçulmanos ou ateus.
Foi a primeira lição de liberdade que tive, mas na altura esta constatação nem sequer tinha nome. Viver assim tornava-se absolutamente natural.
Um dia, às minhas amigas do colégio juntei uma outra, que já não estudava. Era a mulher mais bela de Tete. Chamava-se Banoo, era filha do chefe da comunidade islâmica, tinha 16 anos e falava várias línguas. Português, árabe, nhungwe, entre outras línguas nativas. Alta, esguia, coberta de jóias, com o sari e o manto de sede leve a esvoaçar à sua volta, deslizava como um cisne moreno sob o calor demencial.
Quando nos cruzámos na rua - vivíamos perto uma da outra - ficava a olhá-la fascinada. Eu, e toda a gente. Ela e as irmãs, eram as primeiras, e as únicas, princesas de contos de fadas que jamais encontrei ao vivo.
Não demorou tempo nenhum em meter conversa com ela. Não demorou tempo nenhum em tornarmo-nos amigas. Em casa dela, corríamos para as arcas de roupa e escolhíamos o sari que eu ia vestir enquanto ali estava. Noites mágicas, um Ramadão inteiro, em que mal o sol se punha, um dos seus moleques aparecia em nossa casa com a sua mensagem:
«Vens?».
E eu ia. Jantávamos em salas de refeições distintas, homens e mulheres. Depois, juntavamo-nos todos cá fora, no grande pátio com árvores velhas e grandes onde a brisa da noite arrefecia a terra. Bebíamos xarope de rosas, e petiscávamos coisas delicadas, doces ou picantes, que circulavam em bandejas enormes, de latão. E falávamos sem parar.
Saímos de Tete em 1969. Nunca mais a vi, mas tive notícias recentes dela.
O Gafar Bega, outro dos nossos grandes amigos da época, reapareceu há dias e traçou-me o seu percurso. Tem mantido contacto com toda a gente desde sempre. «Só a ti, é que nunca te descobria. Passavas o tempo a mudar de terra, de emprego e de casa!» - disse, o mesmo sorriso maravilhoso de tantos anos antes. Continua por lá, e por cá. Mulher, filhos, netos. Negócios. E muitas solidariedades que não confessa, mas que os amigos comuns me revelaram.
Almoçamos os três, ele, o Jó e eu, ao lado da mesquita de Lisboa. As pontes refazem-se nos afectos, nas memórias, nas palavras.
Deus é grande.