quarta-feira, junho 26, 2013

Em África com o Negro Linga

O conto que transcrevo foi publicado na "Revista Literatas - Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona", edição n.º 59 de Junho 2013.
 A revista é um baluarte  um baluarte de cultura africana e universal, impulsionada e dirigida pelo Poeta Amosse Mucavele a quem saúdo com todo o amor, gratíssima pelo convite e pela honra.  

Em África com o Negro Linga


Vivi em Moçambique dos doze aos vinte anos. Cheguei em 1963 e parti em 1971. Depois disso, voltei várias vezes à terra que ainda hoje amo profundamente. Em sonhos. Resolvi então, em vez de um conto, ou outra narrativa mais tradicional, escolher um deles, entre tantos e tantos outros de um diário que mantenho com intermitências há bastante tempo. Porquê este? Porque a sua carga onírica ainda hoje me comove e perturba. Porque a força do que senti e vivi e que, ao acordar fixei por palavras, continua bastante misteriosa e sedutora. Podemos falar de arquétipos, podemos evocar união de opostos, equacionar a guerra como o conflito latente que visita todas as nossas almas e coração de viventes. Mas mesmo assim, acho que há mais do que isso, neste meu mágico encontro com o Negro Linga. Afinal, e no sonho, a que é sempre uma antecâmara de realidades, tivemos uma filha. Que fruto virá a ser esse? Entretanto, continuo e continuarei sempre a sonhar com Moçambique.  

Noite de 20 para 21 de Março de 1998
Regresso a África. Viajo entre duas secções do Tempo. No passado e no presente. Estou no mato, é noite, e estou a viver um episódio de guerra. Há sombras. Há homens negros em camuflado. Vai começar um tiroteio. Estamos no Norte de Moçambique.
Estou com um negro. Ele conhece os caminhos. Ele sabe por onde devemos fugir. Ele leva-me consigo. Corremos, embrenhamo-nos na selva e passamos uma noite inteira, os dois. Escondidos.
Agora, e em tempos de paz, estou a recordar aquela noite no mesmo lugar onde tudo aconteceu, e digo à pessoa que está comigo:

“Entendes porque fiquei com a filha que tive dele?”

E de novo, encontro-me junto do negro, que está também a contar o que se passou há tantos anos, aos muitos que o rodeiam. E esta transposição de momentos parece-me perfeitamente natural, porque é como se o tempo fosse um cristal de muitas faces, as quais podemos, nesta circunstância tão particular, cruzar livremente, como quem desfolha o livro de todos os instantes.  

O negro diz:
“Vocês gastam muita energia a fugir. É preciso simplificar. Traçar as metas”.
E demonstra, desenhando no pó do chão, o semicírculo perfeito que efectua, no mato, para se esconder. E demonstra, também, a série de curvas aleatórias que outros percorrem, sem lógica porque meramente instigados pelo medo, e que não os leva a lado algum. Está deitado no chão, estendido e apoiado de lado, sobre os cotovelos. Eu também estou deitada na mesma posição, mas ao contrário. As minhas pernas estendem-se ao longo das suas costas. Afago-o, numa carícia que é, também, um gesto de cumplicidade. Ele retrai-se. Percebo que não posso expressar o meu amor por ele. É como se ele fosse um princípio activo masculino em estado puro: simplesmente, não posso agir assim com ele. E contudo somos íntimos, embora eu não guarde qualquer memória da nossa intimidade.
E então, regressamos ao mato, à noite em que fugimos juntos. Ele diz-me:
“Não percebes, mulher, que nunca me posso perder. Mesmo que morra. Mesmo que o meu corpo fique pulverizado em mil pedaços. Se isso acontecer, serei recolhido, inteiramente, e todos os meus bocados serão entregues ao meu Pai, porque eu sou um Linga.”
E acrescenta:

“Aqui, todos sabem, sempre, onde estou. Aqui, todas as tribos conhecem o meu Pai, e conhecem-me a mim, porque sou um Linga.”
Eu não sei o que é um Linga, mas não quero parecer ignorante. De modo que faço um comentário, a ver se provoco nele uma reacção que me dê um indicador sobre a sua origem. Vejo umas palavras escritas, em letras grandes. Consigo decifrar a raiz do vocábulo. É SOMALI.
Volto a dizer à pessoa que está comigo:

“Percebes agora porque tinha de ter a filha deste homem? Não podia fazer de outra maneira.”

 
[Do meu Diário de Sonhos ]

 


segunda-feira, junho 10, 2013

Por pensamentos, palavras e obras

Foi a minha frase de ontem, no FB. É a minha oração de hoje, aqui nos Diários.

Gosto do cheiro das palavras logo pela manhã. E da sua consistência, e sabor e formas. Puxo-lhes os cabelos filiformes, brinco com elas, contemplo-as, afago-as e deixo que me submergam no seu fragor. Também não me importo que me bebam o sangue e se alimentem das minhas memórias. Em troca, dão-me histórias. E vida à minha vida que não seria vida sem a vida delas.

obs: imagem Lista dos reis sumérios, escrita cuneiforme, sec. XXIV a.C.